Antonio Candido: oito anos de uma ausência presente
Ao olhar para um romance, o crítico literário enxergava o país inteiro. Não como alegoria, mas como experiência
Não é fácil falar dos que seguem vivos mesmo depois da morte. Há oito anos Antonio Candido nos deixou – ou pareceu deixar. No entanto, há ausências que pesam como presenças. Sua crítica continua agindo. Nas escolas silenciosas onde ainda se lê um livro, nos cantos de bibliotecas onde um sublinhado tenta entender o Brasil. Candido não saiu: se transformou em método, em escuta, em atenção. Em compromisso com o que ainda falta realizar.
Antonio Candido de Mello e Souza nasceu em 24 de julho de 1918, no Rio de Janeiro, e faleceu em 12 de maio de 2017, em São Paulo. Formado em Direito e Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), dedicou sua vida ao magistério, à crítica literária e à militância política. Atuou como professor na USP e na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sendo uma das figuras centrais da formação dos estudos de literatura no Brasil. Sua trajetória intelectual sempre esteve entrelaçada com um compromisso ético e político inegociável.
Entre suas obras mais influentes estão Formação da literatura brasileira (1959), Literatura e sociedade (1965), O discurso e a cidade (1993) e Na sala de aula (2006). Em Formação, propôs uma leitura da literatura como sistema, mostrando como a constituição de uma tradição literária no Brasil esteve intrinsecamente ligada à formação social do país – uma tese que funde crítica estética e análise histórica num mesmo movimento dialético. Influenciado pelo marxismo, pelo historicismo alemão e pela crítica sociológica de Lukács, Candido via a literatura como um fenômeno enraizado nas condições concretas da vida, mas dotado de autonomia relativa e complexidade formal. Em Literatura e sociedade, consolidou essa abordagem ao examinar como as formas literárias expressam contradições sociais – não de maneira mecânica, mas como síntese simbólica, onde o estético e o histórico se entrelaçam. Seu método, marcado pela escuta paciente e pela recusa a modelos rígidos, fez da crítica um exercício de mediação, atento ao movimento das formas e às tensões constitutivas da cultura. Com isso, sua obra permanece como uma referência incontornável para compreender a literatura como forma viva de pensamento social.

A delicadeza do seu gesto não enganava ninguém. Por trás da leveza havia rigor. Por trás da serenidade, uma paixão que jamais se permitiu arrogante. Quando escrevia, não queria brilhar – queria clarear. Sua crítica era uma espécie de candeeiro aceso no meio do mato: iluminava aos poucos, com calor humano, sem jamais ferir os olhos. E ainda assim – ou por isso mesmo – era contundente, era militante, era comprometida com os condenados da terra.
Na sua escrita não havia medo do Brasil. Havia enfrentamento. O país das desigualdades, das injunções coloniais, da dor transformada em paisagem – esse país era objeto de estudo, mas também de lamento e de luta. A crítica não era neutralidade, era trincheira. E a literatura, longe de ser luxo, era direito: o direito de experimentar o mundo para além do necessário. O direito ao supérfluo que nos humaniza.
Contudo, sua grandeza não vinha só daquilo que dizia, mas de como dizia. Nenhum arroubo de vaidade, nenhuma fome de autoridade. Só o ensaio, como forma tateante de pensar. Uma crítica que girava em torno do objeto, que o rodeava até que ele se revelasse por suas fissuras. Nada de fórmulas prontas, nenhuma teoria imposta como camisa de força. Apenas a disposição de escutar os textos como quem escuta um povo.
Sua dialética não era ostentação, mas prática silenciosa. Estava no gesto de alternar os polos – local e universal, ordem e desordem, cultura e barbarização – não para conciliá-los, mas para mostrar que é da fricção que nasce a forma. Pensar dialeticamente, para ele, era recusar as falsas harmonias. Era compreender que os contrários não se anulam: se atravessam, se transformam, se disputam. Sua crítica era uma coreografia do conflito – um modo de pensar o Brasil sem amputar suas tensões constitutivas. Uma dialética de baixa voz, mas de alta potência.
Havia, ali, um sentimento íntimo dos contrários. Como quem vive num país onde tudo o que é estrangeiro parece familiar e tudo o que é próprio parece fora do lugar. A crítica aprendia a respirar entre opostos: o local e o universal, o rústico e o culto, o dado e o sonhado. A cada página, desvelava-se um dilema: o de uma formação inacabada, o de uma identidade sempre a um passo da dissolução, o de um povo que se procura entre espelhos partidos.
E o que faz o crítico nesse cenário senão nomear as forças em tensão? Mais do que julgar, ele organizava o caos. Mais do que classificar, ele aproximava. A literatura não era um jogo de gêneros, mas um sistema em lenta articulação, onde a história se insinuava mesmo nas frases mais distraídas. E por isso, ao olhar para um romance, enxergava o país inteiro. Não como alegoria, mas como experiência.
Mesmo sua memória – quando escrevia sobre a infância, sobre a roça, sobre os mestres e os amigos – não era simples nostalgia. Era documento. Era política. A lembrança, em suas mãos, era uma forma de resgate: do que se perdeu, do que foi calado, do que nunca teve tempo de se realizar. Havia verdade nos detalhes. E havia esperança, ainda que silenciosa, no gesto de lembrar.
Não se trata, hoje, de canonizá-lo. Candido nunca quis ser monumento. Seu lugar é o da crítica viva, que se deixa ferir pelo tempo. Que não teme a controvérsia, mas a morte do pensamento. E o pensamento, para ele, só valia se estivesse a serviço da dignidade humana.
Oito anos se passaram. E seguimos no labirinto. O país se estreitou, a linguagem se embruteceu, o riso foi capturado, a crítica tornou-se algoritmo. Mas ainda há leitores – e onde houver leitura, haverá rastros dele. Porque sua obra não foi feita para ser apenas lida: foi feita para formar. E formar, aqui, é verbo revolucionário.
Candido não nos deu respostas. Nos deu um modo de perguntar. E é esse modo – lúcido, sereno, apaixonado – que nos falta. Não como ausência melancólica, mas como horizonte possível. Um horizonte onde a literatura seja um gesto de justiça, onde a crítica seja um modo de cuidar, e onde o pensamento não sirva ao mercado, mas à liberdade.
Ele segue entre nós. Nas páginas de um livro esquecido. Na sala de aula mal paga. No caderno do estudante que sublinha em silêncio. E na voz de quem ainda insiste em fazer da crítica uma forma de resistência.