Aparências, nada mais
A saída de Moro leva a base lavajatista de Bolsonaro e atualiza a ideia de um governo de juízes para 2022
No day after do rompimento entre o ex-juiz e ministro da Justiça Sérgio Moro e o presidente da República Jair Bolsonaro dois, tipos de consequências se apresentam na mesa: uma relativa à base eleitoral e outra às engrenagens institucionais. As perguntas a serem feitas são: qual o tamanho da base lavajatista no apoio ao governo Bolsonaro? Com sua saída, quanto desse apoio Moro leva consigo? Como as declarações sobre as tentativas de interferência do presidente nas investigações da Polícia Federal podem movimentar os processos em curso que têm Bolsonaro na mira? Como se vê, há aspectos simbólicos e discursivos e outros de natureza jurídica e institucional. Contudo, a dicotomia é só para efeito de explanação. Na prática, ambos caminham juntos.
Não é preciso explicar que o básico de qualquer cartilha política está no apoio popular. É esse o argumento que muitos analistas usam para justificar a permanência de Bolsonaro no poder, tendo como sustentação uma espécie de núcleo duro de apoiadores. Muitos falam em 30%, um terço fiel que usa bandeiras do Brasil, camisas verde e amarelo, aglomera-se em meio à pandemia do coronavírus pedindo o fim da quarentena e, sobretudo, entoa mantras como #BolsonaroTemRazão, nos mesmos moldes de #OlavoTemRazão. O uso da hashtag não é meramente ilustrativo. São marcadores como esses que mobilizam uma parte importante da sustentação do governo, em especial nas redes sociais..
Adeus Lava Jato
Desde ontem, sexta, 24 de abril, entre os destaques nos Trends Topics brasileiros estavam as expressões #FechadoComBolsonaro e #MoroTraidor. Há também, claro, menções de apoio a Sérgio Moro, mas esse espaço de disputa discursiva parece marcar a resistência dos bolsonaristas mais ferrenhos. E quem são eles? Foi o próprio Bolsonaro quem deu a senha, no seu pronunciamento de ontem, ao se definir como militar e cristão. Sem dúvida, essas são as duas bases de apoio que sustentam o governo e dão um certo escopo ao conservadorismo a la Bolsonaro.
Há divergências dentro desse grupo. Os olavistas e os militares costumam andar às turras, e é aí que a saída de Moro tem um diferencial. Além de levar o espólio lavajatista, ele também pode angariar uma fatia menos ideológica desse núcleo. A julgar pela menção feita a Abraham Weintraub, ministro da Educação, como referência de quem “apanha”, mas segue sendo fiel, é provável que, na medida em que a gestão se desgaste, sobre apenas a, digamos, ala psiquiátrica do grupo.
O adjetivo aqui não é usado à toa. Em uma imagem da maioria do staff que compôs o quadro do pronunciamento de Bolsonaro ontem, temos figuras que sustentam em público que a pandemia da Covid-19 é uma invenção comunista, que o aquecimento global é uma quimera globalista, que não se devem seguir as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) etc. São pautas importantes que indicam a cisão. Moro não só leva sua turma como é peça-chave a mostrar que um grupo que sempre preferiu se manter distante dessas “palavras de ordem” e aderiu ao bolsonarismo de forma tardia deve pular do barco na mesma toada em que ele for afundando.
Essa fratura na base de apoio vai acontecer por dentro, mas também por fora. Joice Hasselmann, deputada federal pelo PSL de São Paulo e líder do partido, que era apoiadora ferrenha de Bolsonaro e depois rompeu com o governo de maneira ruidosa, foi a primeira a ecoar o grito de “Moro presidente!”, assim que o ex-ministro terminou a coletiva em que se desligava do governo. Próxima ao PSDB de João Dória, governador de São Paulo, Hasselmann representa a ala de ex-bolsonaristas “arrependidos” que vai tentar se recompor politicamente tendo como foco as eleições de 2022. Vale lembrar que Moro, segundo pesquisa do Datafolha de dezembro de 2019, era mais bem avaliado que Bolsonaro. O passe do ex-juiz e ministro está à solta para uma candidatura e ele mesmo fez questão de dizer que sai do governo, mas que está à disposição do país para que o que for preciso.
O presidente da República, Jair Bolsonaro, faz Pronunciamento no Palácio do Planalto em resposta à Sergio Moro (Marcello Casal Jr/Agência Brasil)
Gatilhos institucionais
Até o quadro da eleição presidencial se montar, a preço de hoje, a saída de Moro também joga gasolina numa fogueira institucional já armada. O cenário da pandemia mostrava, há poucos dias, os seguintes movimentos: governadores e prefeitos rompidos com o governo federal, fazendo a gestão mais autônoma possível; um grupo no Legislativo representado por Rodrigo Maia, que arregimenta os acordos políticos a despeito do Executivo (lembrando que o auxílio emergencial de R$ 600 reais se deve a esse grupo, e não ao governo, que queria dispor de apenas R$ 200 reais), e um Supremo Tribunal Federal com dois inquéritos que podem atingir frontalmente o governo.
Ambos os inquéritos estão sob a relatoria de Alexandre de Moraes e versam, respectivamente, sobre apuração de fake news contra o STF e manifestações pró-AI-5. Quando Moro disse que Bolsonaro tentava interferir nas investigações da PF, Alexandre de Moraes determinou a permanência dos delegados que conduziam as duas investigações. Na prática, o governo Bolsonaro está ficando cada vez mais isolado, e as conversas entre Supremo, Legislativo e governadores – que já se estreitavam, indicando a falta de governabilidade – podem, sim, ter um peso importante para se conflagrar um processo de impeachment, por exemplo, caso perca os votos do centrão. Ressalte-se: não faltam pedidos chegando às mãos de Rodrigo Maia.
Um dia antes da coletiva de Moro, Celso de Mello, decano do STF, uma das vozes mais críticas do governo no Tribunal, pediu para ouvir Maia sobre um dos pedidos de impeachment protocolados na Câmara. Especificamente, o pedido feito, em março, é dos advogados José Rossini Campos e Thiago Santos de Pádua. Além de escutar Maia, Celso de Mello incluiu formalmente o presidente na ação, que também tem como objeto a divulgação do exame de Bolsonaro para covid-19. É um cerco que se fecha e, nesse contexto, Augusto Aras pede a abertura de inquérito ao STF para investigar declarações de Sérgio Moro. É juntar esses gatilhos institucionais à perda de apoio popular e fazer as contas. A fogueira já estava montada e parece que Moro foi lá jogar um pouco de gasolina e riscar o fósforo.
De volta à pauta anti-corrupção
O apoio popular e os gatilhos institucionais são os pontos principais para a análise das consequências da saída de Moro do governo. Mas, visto no plano atual, no desenrolar do jogo político, no fundo, estamos falando de quem leva como prêmio a bandeira do “combate à corrupção”: se Moro, cuja fala acusava Bolsonaro de ter interesse político na Polícia Federal, ou se Bolsonaro, cujas afirmações atribuíam a Moro a prevalência dos seus próprios interesses ao visar uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF). Ao fim e ao cabo, essa era a disputa das acusações feitas ao longo dos pronunciamentos de ontem. A permanência de Maurício Valeixo como diretor-geral da Polícia Federal era mera desculpa. O confronto é entre a ideia de quem traiu quem. O herói versus o mito. O compromisso com a biografia confrontado com o compromisso com o Brasil.
A distinção perseguida é a imagem idílica de quem é o verdadeiro combatente da corrupção. Em que pese um debate sério sobre esse ponto, parece que estaremos presos in looping nessa pauta, como num refrão de “Aparências”, de Márcio Greyck, até a disputa presidencial de 2022. Isso diz muito além da análise factual. A ideia que os brasileiros têm de justiça (a instituição e o valor em si) continuará sendo muito importante para decidir nossos caminhos entre o ressentimento e a reparação.
Um detalhe: tanto o Colégio Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça (CNPG) como os Procuradores da República da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba lançaram uma nota pró-Moro ontem. Quando surgiram os primeiros boatos da saída de Moro, Carlos Fernando, procurador aposentado do grupo da Lava Jato em Curitiba, deu uma declaração na qual acusava Bolsonaro de não ser correto e não ter palavra. É a Lava Jato se descolando formalmente do bolsonarismo.
Há, como se pode ver, diversos interesses no mercado de apoio institucional, mas nem todos são favoráveis a Moro, deve-se frisar. No Supremo, por exemplo, ele tem a rejeição de parte do colegiado. De toda forma, atualiza-se a ideia do peso da Justiça na disputa política. Se Moro se confirma como candidato da direita e, em outra margem, temos o também ex-juiz Flávio Dino como candidato da esquerda, esta será uma oportunidade ímpar para se confrontar duas ideias de Justiça em projetos completamente distintos para o Brasil.
Grazielle Albuquerque é jornalista e cientista política, pesquisa Sistema de Justiça, em especial sua interface com a mídia e foi visiting doctoral research no German Institute of Global and Area Studies (Giga), em Hamburgo.