Arroz: uma crise anunciada
O governo e representantes de entidades do agronegócio costumam comemorar as safras recordes de grãos do Brasil. Mas não há o que celebrar, já que a produção nacional está concentrada em duas commodities, enquanto alimentos que fazem parte do dia-a-dia das famílias brasileiras, como arroz, trigo e feijão, são residuais
Em março, com o início do surto de Covid-19, a ministra Teresa Cristina afirmou que não havia risco de desabastecimento. Agora que este passou a ser um problema político central, o governo busca se eximir de qualquer responsabilidade por uma crise anunciada, que poderia ter sido evitada.
O país já vinha enfrentando um problema estrutural de suprimento de arroz, em razão da estagnação da produção nos últimos 20 anos e do aumento das exportações na última década. Com mais intensidade a partir de 2014, o suprimento de arroz no mercado interno vem se reduzindo, ampliando a suscetibilidade do país e estabelecendo um contexto explosivo para uma crise de desabastecimento. No mesmo período, o declínio dos estoques públicos deteriorou a capacidade de intervenção do Estado.
Gráfico – Arroz: exportações e estoques públicos (mil toneladas)
Elaboração: Porto (2020) – Fonte: Conab; MDIC (2020)
Em 2019, os estoques públicos de arroz chegaram a representar 0,22% do consumo médio anual. Mesmo com a crise atual, o presidente da Conab segue rejeitando a política de estoques, na contramão do que praticam os principais países produtores de arroz: em 2019, a China manteve estoque de 80% do consumo médio anual do país, os EUA 31% e a Tailândia 33% (CONAB, 2019). Estoque público é o principal mecanismo de gestão de crises de abastecimento, servindo como reserva técnica para suprir o mercado, nos casos em que a elevação dos preços passa a impactar a inflação e comprometer a capacidade de compra. Quando o governo abdica de seu papel regulador, entrega ao mercado o destino do abastecimento alimentar da população.
Ao mesmo tempo em que os estoques públicos caíam paulatinamente, o Brasil começou a aumentar as exportações de arroz, mesmo em momentos em que os preços não estavam em alta. Contou, inclusive, em 2018, com apoio público na forma de pagamento de prêmio para assegurar o Preço Mínimo, facilitando as exportações, em detrimento da segurança alimentar e nutricional das famílias brasileiras.
O governo e representantes de entidades do agronegócio costumam comemorar as safras recordes de grãos do Brasil. Mas não há o que celebrar, já que a produção nacional está concentrada em duas commodities (soja e milho, representando na última safra 89%), enquanto alimentos que fazem parte do dia-a-dia das famílias brasileiras, como arroz, trigo e feijão, são residuais, diminuindo, juntamente com mandioca, batata, cebola e tomate, área plantada na última década. No caso específico do arroz, a concentração geográfica da produção no Rio Grande do Sul (70% da safra nacional), resultante de políticas equivocadas e do avanço da soja no Centro-Oeste, gera diversas suscetibilidades ao abastecimento interno.
A inação do governo diante da crise
As áreas técnicas do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), ainda em 2019, indicavam que o cenário interno para o arroz, em 2020, era de baixa produção nacional; redução dos estoques de passagem (inicial); e preços com tendência de elevação. No âmbito internacional, havia um cenário fértil para queda de suprimento e aumento dos preços, com projeção do aumento da demanda mundial; redução de produção nos Estados Unidos; possível quebra de safra na Tailândia devido à estiagem. Ainda, a redução dos estoques de passagem tailandês, por ser este país asiático um dos principais exportadores, poderia vir a impactar o aumento dos preços nos mercados internacionais, incentivando o apetite exportador do agronegócio brasileiro.
O governo não estabeleceu quando pôde, por exemplo por meio do Plano Safra, instrumentos dirigidos a reverter esse quadro de forma a garantir o aumento da produção de arroz. Ao contrário, há uma clara ênfase em promover o aumento das exportações, como em fevereiro deste ano, quando houve uma missão do governo brasileiro ao México para tratar de possíveis acordos comerciais para o estabelecimento de uma cota para o Brasil exportar 300 mil toneladas de arroz para o México, implementada a partir de março.
O diagnóstico apontava para um cenário desfavorável ao suprimento nacional de arroz em 2020, mas a crise econômica, o alto nível de desemprego e de pessoas na informalidade minimizaram, em um primeiro momento, potenciais pressões sobre os preços no mercado interno. Mas, com o auxílio emergencial, milhões de pessoas tiveram a possibilidade de adquirir arroz e feijão, entre outros alimentos. Essa demanda extra não surgiu com a pandemia, e sim estava reprimida, já que corresponde a necessidades básicas de uma parcela importante da população até então privada do acesso a alimentos por falta de renda.
O governo talvez esteja apostando que os preços dos alimentos perderão força nos próximos meses em decorrência da redução do auxílio emergencial, levando à retração do consumo. A ação para conter a crise de abastecimento seria, neste caso, uma política de fome.
Mesmo neste cenário, o governo segue dizendo que não pretende promover outras medidas para aumentar a oferta além da retirada da Tarifa Externa Comum (TEC) para uma cota de 400 mil toneladas de arroz até dezembro de 2020, incentivando as importações como único instrumento de resolução da crise. Há, no entanto, diversas possibilidades de ação.
De imediato, o governo deveria suspender os efeitos da Lei Kandir (retirando a renúncia fiscal sobre as exportações) a título do interesse público de regular o abastecimento alimentar. Além de minimizar as exportações, de forma a reter estoques para o mercado interno, contribuiria para o equilíbrio fiscal e a manutenção do pagamento do auxílio emergencial de R$ 600 reais. Deveria, ainda, promover estímulos para o aumento da produção de alimentos básicos da próxima safra, por meio da revisão dos Preços Mínimos e de lançamento imediato de Contratos de Opção, visando a recomposição dos estoques reguladores.
Essas são algumas ações conjunturais que poderiam se somar a medidas estruturantes, especialmente no sentido de apoio à agricultura familiar e camponesa. O que falta é vontade política de colocar o abastecimento alimentar da população como prioridade.
Sílvio Isoppo Porto é professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e ex-diretor da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).