As armadilhas do neoliberalismo
A opção do Conselho Europeu, já traduzida em plano de ação, consiste em afirmar que a grande prioridade, nos próximos quinze anos, é a construção da “e-Europa” para que, em 2015, ela se torne a “e-economia” mais competitiva do mundoRicardo Petrella
A esfera educativa está diante de cinco grandes armadilhas, resultado das mudanças políticas, sociais e econômicas dos últimos trinta anos, que viram o modo de vida ter como centro o hiper-consumo e a mercantilização generalizada de qualquer bem ou serviço, a explosão das tecnologias e a globalização liberal.
A primeira dessas armadilhas é a instrumentalização crescente da educação a serviço da formação de “recursos humanos”. Essa função toma o lugar da educação para e pela pessoa e origina-se na redução do trabalho a um “recurso” organizado, gerenciado, valorizado, rebaixado, reciclado e, eventualmente, abandonado em função de sua utilidade para a empresa. Como qualquer outro recurso material ou imaterial, o recurso humano é considerado como uma mercadoria econômica que deve estar disponível em qualquer lugar. [1] Não tem direitos cívicos nem outros direitos quaisquer, sejam eles políticos, sociais ou culturais, e os únicos limites à sua exploração são de natureza financeira (os custos). Seu direito à existência e à renda depende de seu desempenho, de sua rentabilidade. Deve demonstrar que é empregável, de onde decorre a substituição do “direito ao trabalho” por uma nova obrigação: demonstrar sua “empregabilidade”.
A educação como mercado
Isso é o que alguns dirigentes chamam de uma “política social ativa do trabalho”. Para eles, se a educação tem um papel maior, este, é, principalmente, em relação a essa obrigação de “empregabilidade”. E por toda a vida, graças à formação contínua cuja função é manter os recursos humanos do país utilizáveis e rentáveis. Porém, desde então, o trabalho deixou de ser uma questão social.
A segunda armadilha é a passagem da educação do campo não mercantil ao mercantil. Desde que se lhe confere como tarefa principal formar os recursos humanos a serviço da empresa, não é surpreendente que a lógica mercantil e financeira do capital privado queira lhe impor a definição de suas finalidades e suas prioridades. A educação é cada vez mais tratada como um mercado. [2]
As “universidades virtuais”
Na América do Norte, fala-se permanentemente de “mercado da educação”, de “business da educação”, de “mercado de produtos e de serviços pedagógicos”, de “empreendimentos educativos”, de “mercado de professores e alunos”. Não é por acaso que se realizou, de 23 a 27 de maio de 2000, em Vancouver, no Canadá, o primeiro Mercado Mundial da Educação [3] (World Education Market). Para a grande maioria dos participantes, públicos e privados, [4] a mercantilização da educação é indiscutível, a questão principal é saber quem vai vender o quê num mercado mundial regulamentado por quais regras.
O “quem” já começa a delinear-se bem: são os editores de produtos multimídia, de criadores e fornecedores de serviços on line, ou de ensino à distância, operadores de telecomunicações, empresas informáticas, todos setores nos quais as fusões, absorções e alianças sucederam-se em ritmo frenético nos últimos anos. Essas empresas já investiram muito no “quê”: muitas têm, à mão um catálogo de programas-chave de formação on line — pronto para ser oferecido. As “universidades virtuais” multiplicam-se como cogumelos através das fronteiras “nacionais”. Segundo um estudo do banco de investimentos norte-americano Meryll Lynch, [5] o número de jovens que seguirão cursos superiores, em todo o mundo, aumentará para, aproximadamente, 160 milhões até 2025. Atualmente, são 84 milhões — dos quais, 40 milhões cursam um ensino on line. É fácil imaginar o que poderá representar esse mercado em um quarto de século.
Liberalização e desregulamentação
A tendência em todos os países “desenvolvidos” dirige-se a um sistema de educação organizado sobre uma base individual, à distância (via Internet), variável no tempo, por toda a vida e à la carte. [6] Quanto às regras, o fracasso das negociações da Rodada do Milênio da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Seattle, em dezembro de 1999, impediu, provisoriamente, que os princípios do livre comércio sejam também aplicados à educação: eles estavam presentes nos itens do Acordo geral sobre o comércio de serviços (AGCS). Como as negociações sobre serviços foram retomadas na sede da OMC, em Genebra, nada garante que a liberalização e a desregulamentação do setor educativo não estejam novamente inscritas na ordem do dia.
Efetivamente, são cada vez mais numerosos os dirigentes políticos dos países desenvolvidos prontos a aceitar que o mercado decida as finalidades e organização da educação. As organizações sindicais (principalmente a Internacional da Educação), as organizações governamentais e o movimento de cidadãos deveriam redobrar seus esforços de oposição a esse roteiro. [7]
Tecnologias e progresso
Terceira armadilha: a educação é mostrada como instrumento indispensável à sobrevivência de cada indivíduo e, ao mesmo tempo, de cada país, na era da competitividade mundial. Desse modo, a esfera educacional tende a transformar-se em um “lugar” onde se aprende uma cultura da guerra (cada um por si, conseguir mais do que os outros e o lugar deles) ao invés de ser uma cultura da vida (viver em conjunto com os outros, segundo o interesse geral). As universidades, os poderes públicos, os estudantes, os pais — e até muitos sindicatos — têm, de modo geral, aceitado tal cultura. O sistema, dessa forma, é levado a privilegiar a função de selecionar os melhores — apesar dos esforços de boa parte dos educadores — muito mais do que cumprir sua função de valorizar as capacidades específicas de todos os alunos.
Quarta armadilha: a subordinação da educação à tecnologia. Os dirigentes, por acreditarem desde a década de 70 que a tecnologia é o principal motor das mudanças da sociedade, impuseram a tese de sua primazia e da urgência de adaptação a ela. Qualquer que seja seu campo de aplicação (a energia, a comunicação, a saúde, o trabalho), tendem a considerar como inevitável e irresistível qualquer mudança econômica e social ligada às novas tecnologias, já que as inovações por elas provocadas são consideradas como contribuição ao progresso do homem e da sociedade.
Rumo à “era do conhecimento”
Para a grande maioria dos dirigentes, a globalização atual é filha do progresso tecnológico. Opor-se a isso é insensato. O principal papel da educação seria, então, dar às novas gerações a capacidade de compreender as mudanças em curso e as ferramentas de adaptação.
Quinta armadilha: o uso do sistema educacional como meio de legitimação das novas formas de divisão social. A acreditar-se no discurso dominante, as economias e as sociedades dos países desenvolvidos passariam da era industrial, fundamentada em recursos materiais e em capitais físicos (terra, energia, aço, cimento, trilhos) para a era do conhecimento, baseada, principalmente, em recursos e capitais não-materiais (os conhecimentos, a informatização, a comunicação, a logística).
O novo proletariado mundial
O conhecimento tornar-se-ia o recurso fundamental da “nova economia”, nascida da revolução multimídia, das redes informatizadas, de seus derivados, como o e-comércio, o e-transporte, a e-educação, a e-empresa e o e-trabalhador. [8] Dentro dessa ótica, a empresa é vista como o sujeito e o principal lugar da promoção, da organização, da produção, da valorização e da difusão do “conhecimento que vale”.
Promover a difusão do espírito empresarial e a criação de empresas no meio científico e nos estabelecimentos secundários e superior e redinamizar o sistema educacional para transformá-lo em terreno privilegiado da formação das gerações jovens na construção de uma “sociedade de conhecimento” constituem uma das principais receitas das políticas públicas de ensino e pesquisa. Ora, essa receita é posta em prática no momento em que, pelo mundo inteiro, uma nova divisão social instaura-se entre os “qualificados” (que têm acesso ao “conhecimento que vale”) e os não-qualificados (que estão excluídos de tal acesso, ou não conseguem preservá-lo). Essa divisão vem agravar as já existentes, que se devem, entre outras razões, às desigualdades de acesso à alfabetização básica. O conhecimento torna-se o principal material de construção de um novo muro (o “muro do conhecimento”) entre os recursos humanos nobres (organizados nas novas corporações profissionais planetárias) e os recursos humanos do povo, novo proletariado do capital mundial.
Prioridade é a informática
Certamente não será pela escolha feita pelos chefes de Estado e de governo dos 15 países da União Européia por ocasião da reunião do Conselho Europeu em Lisboa, [9] em março de 2000, que os europeus se irão libertar dessas cinco armadilhas. A escolha, já traduzida em plano de ação pelo Conselho de Feira, em junho de 2000, consiste em afirmar que a grande prioridade dos próximos quinze anos é a construção da “e-Europa” para que, em 2015, ela se torne a “e-economia” mais competitiva do mundo.
O objetivo primordial dessa finalidade é dar a todos os europeus, desde a escola maternal e primária, o acesso à alfabetização informática para que se tornem uma quantidade de “recursos humanos” capazes de concorrer com os da América do Norte, que já teriam dezoito anos de vantagem. [10]
Computador substitui laços afetivos
Neste campo, o consenso é muito grande entre os dirigentes europeus. Não teriam ainda compreendido, depois de vinte anos de políticas a serviço da competitividade, ao sabor do mercado, que nessa lógica há poucos ganhadores — e isso em todos os campos, inclusive no da educação? Como podem eles ignorar que os Estados Unidos — o país mais “desenvolvido” do mundo nas tecnologias de informação e da comunicação, de multimídia, Internet etc. — têm um nível de instrução particularmente deplorável, segundo um estudo da Organização pela Cooperação de Desenvolvimento Econômico (OCDE)? [11]
Por que fecham os olhos diante do estado miserável da educação de base e às grandes desigualdades sociais que caracterizam atualmente o acesso ao ensino superior na Grã-Bretanha? Como podem ignorar os resultados de anos de pesquisas multidisciplinares sobre o desenvolvimento das crianças, mostrando que elas têm uma necessidade fundamental de laços pessoais profundos com os adultos, e que enfatizar o computador nas escolas, desde a mais tenra idade, pode privá-las desses laços essenciais? [12]
A contribuição à vida em comum
Proposições pertinentes e realistas para uma outra política educativa não faltam: há, por exemplo, as anunciadas pela Oxfam Internacional e pela Internacional da Educação, em março de 1999, para “Uma educação pública de qualidade para todos”. [13] Aprender a saber dizer bom-dia ao outro representa o ponto de partida decisivo para uma “outra” educação. Isso significa que o sistema educacional confere a si mesmo a função original de ensinar todo cidadão a reconhecer a existência do outro como base fundamental de sua própria existência da vida em conjunto.
Dialogar diretamente, de pessoa a pessoa, é aprender que a alteridade é central na história das sociedades humanas, em meio a tensões criadoras e conflituosas, entre a unicidade e a multiplicidade, a universalidade e a especificidade, a globalidade e a localidade. É também aprender a democracia e a vida. É aprender a solidariedade, a capacidade de reconhecer o valor de toda contribuição — ainda que seja pouco qualificada em relação aos critérios de produtividade e de rentabilidade — de todo ser humano à vida em comum.
O direito à vida
Ao partir desse princípio geral, uma política da educação centralizada sobre o desenvolvimento, a preservação e a partilha dos “bens comuns” [14] que são os conhecimentos e os saberes, poderia contribuir para um desenvolvimento mundial solidário, no plano econômico; eficaz, no plano social e democrático, no plano político. Aplicado à “e- Europa”, priorizaria a formação de uma geração de cidadãos possuidores de competências e qualificações que requerem novas lógicas: as da economia social, da economia s