As bases sociais da explosão
Menina dos olhos do Ocidente, o Quênia vive uma crise que envolve velhos atores políticos e contrapõe as etnias luo e kikuyo. Mais que uma disputa meramente eleitoral, o conflito é consequência da profunda desigualdade de classes no Leste Africano
Três dias após eleições históricas realizadas num clima de perfeita calma – nas palavras do embaixador norte-americano em Nairóbi, Michael Ranneberger –, o Quênia pegou fogo.
O anúncio dos resultados, manipulados em favor do presidente Mwai Kibak,1 provocou imediatamente mais de setecentos confrontos. O incêndio espalhou-se rapidamente e a violência cresceu. A polícia, autorizada a “atirar para matar”, também contribuiu com a hecatombe.
Quem poderia imaginar que aquele país tranquilo do leste da África viveria uma convulsão dessas? O grande público ocidental certamente não. Na véspera das eleições, as imagens que se perpetuaram para quem acompanhava de longe a situação foram de um Quênia de grandes paisagens oníricas, entre as fotos do renomado Peter Beard e as imagens do Rei Leão. Na televisão francesa, o país apareceu resumido à cidadezinha de Tungai e suas trinta mulheres da etnia masai que decidiram levar a vida distante dos homens. Mais uma bela história da África eterna, colorida por um feminismo sólido cuja versão em papel luxuoso foi amplamente difundida pelas publicações europeias, preocupadas em não perder as verbas do Departamento de Turismo queniano.
Jardim do continente e “modelo de prosperidade econômica e estabilidade” preferido das instituições financeiras internacionais, o Quênia é ponto de encontro humanitário (abriga as sedes regionais das agências das Nações Unidas e de organizações internacionais), midiático (a mais importante concentração de jornalistas estrangeiros da África) e econômico (cerca de cem multinacionais se instalaram ali para se lançarem à conquista dos mercados emergentes do Leste Africano). Em 2007, contabilizou um crescimento de 6% e uma valorização da Bolsa de mais de 800% em seis anos. A agitação que eclodiu parecia algo mais reservado aos seus vizinhos do Chifre da África que a esse país próspero. Agora, os bangalôs das reservas e os hotéis da costa do Oceano Índico, infraestruturas que recebem mais de 1 milhão de visitantes por ano, não passam de um mundo distante da realidade.
Mas os últimos acontecimentos não são exatamente novidade. Como observou a professora Jacqueline M. Klopp, da Universidade Colúmbia: “Desde a época colonial, a história do país foi marcada pela violência e pela repressão. Na maioria dos lugares onde o conflito eclodiu, como Eldoret, Molo e Narok, também ocorreram confrontos durante as eleições de 1992 e 1997”.2 Em maio de 2007, quando o candidato oposicionista Raila Odinga era o favorito nas pesquisas, o país acabava de sair de um período sangrento de disputa entre as milícias das etnias luo, chamada taliban, e kikuyu, conhecida como mungiki, pelo controle do comércio clandestino do changaa, bebida alcoólica tradicional. Em algumas zonas de Nairóbi, os resquícios desse período ainda estavam frescos quando as execuções sumárias começaram. Praticadas pelas forças especiais governamentais do esquadrão Kwe Kwe, tinham como alvo os jovens das favelas suspeitos de pertencer à mungiki. Cerca de quinhentas pessoas foram eliminadas. Denunciada pela Comissão Queniana dos Direitos Humanos, a crueldade com os mungiki também contribuiu para reforçar o sentimento anti-kikuyu – a etnia do presidente – entre os 60% de habitantes de Nairóbi comprimidos em 143 favelas e bairros periféricos. Bombas-relógio sociais, essas zonas abandonadas são famosas por figurar entre as mais explosivas da África Subsaariana.3
Deslocamentos forçados da população
Durante esse período, na província de Rift Valley, onde a questão fundiária e os deslocamentos forçados da população atiçaram o rancor entre os agricultores kikuyu e a minoria de pastores kalejin, as milícias, “manipuladas pelos políticos poderosos, semearam o terror para provocar a instabilidade através da violência e alterar assim a demografia política e a multietnicidade dos distritos”.4
Ao mesmo tempo, constatava-se que a gestão de Mwai Kibaki, eleito em 2002 com pretensões de mudança social, não atendeu a todas as expectativas da população. Suas promessas de justiça, que previam a criação de comissões anticorrupção, assim como a verdade sobre os atentados aos direitos humanos cometidos durante os 24 anos de governo de Daniel Arap Moi e seu partido, a União Nacional Africana do Quênia (Kanu), foram reduzidas a nada.
Na impossibilidade de condenar os culpados, John Githongo, chefão da comissão anticorrupção, foi obrigado a se exilar em Londres, em fevereiro de 2005. Nesse momento, Odinga, um luo considerado artífice da vitória de Kibaki em 2002, decidiu deixar a coalizão governamental dominada pelo círculo kikuyu do presidente. Aos 62 anos, Odinga se tornou um demagogo sem escrúpulos, “mestre na instrumentalização do caos para levar à mudança”. Seu corpo de conselheiros parece tão confuso e explosivo como o de seu antigo padrinho, Musalia Mudavati, ex-ministro das Finanças de Arap Moi, a quem o líder da oposição prometeu a vice-presidência em caso de vitória. O próprio Mudavati já esteve implicado em um dos piores escândalos de desvio de fundos públicos: o caso Goldenberg.5 Do mesmo modo, William Ruto, barão kalenjin de Rift Valley, à frente da juventude da Kanu, utilizou parte das centenas de milhões de shillings6 impressos pelo Banco Nacional queniano e destinados a garantir a reeleição de seu mentor em 1992, e hoje está próximo a Odinga.
Apesar desses figurões de passado complexo, o líder da oposição construiu um eleitorado considerável. Tanto que Kibaki é hoje rejeitado pelos mais pobres de sua base étnica, que não hesitaram em votar contra ele, a pedido de Odinga, no referendo constitucional de 22 de novembro de 2005.7
O oposicionista se fortalece a cada movimento equivocado de Kibaki: em setembro de 2007, os rumores de corrupção se propagaram pelo Quênia, e o presidente adotou uma “reforma” administrativa que multiplicou as sessões eleitorais presumivelmente favoráveis a ele. Os membros da comissão eleitoral (ECK) foram parcialmente substituídos. Com um “complexo de alianças e traições em busca de fortunas pessoais, maquiado inescrupulosamente como confrontos étnicos”,8 a campanha eleitoral foi marcada pelo uso de dinheiro sujo. Diante da ECK, todos os candidatos à presidência assinaram um acordo de boa conduta, se comprometendo solenemente a não recorrer à violência. Mas a tragédia já estava a caminho. Durante os períodos de transição democrática, os riscos de tensões são mais fortes, sobretudo em um contexto de globalização acelerado que exige adaptações rápidas. Cinco anos de kibakismo contribuíram para acentuar a ruptura social entre ricos e pobres em uma sociedade na qual 50% da população tenta sobreviver com menos de US$ 2 por dia.9 Em Nairóbi, a maioria da comunidade de refugiados – o Quênia recebeu mais de 500 mil deles vindos de conflitos em outros países da região durante a década de 1990 –, segregada atrás da arquitetura segura dos belos bairros da capital, privilegiou um silêncio prudente e fingiu que nada acontecia. A violência iria se desenrolar justamente nos distritos eleitorais em que “a conjunção de um fosso social cada vez maior e uma miséria crescente conduzia à revolta originada em esperanças frustradas”.10
Exploração ilegal de banheiros
Divididos entre partidários de Kibaki e Odinga, e seguros de sua impunidade, os mandantes da violência passada se mobilizaram novamente para conduzir uma campanha sorrateira: semear dinheiro e ressentimento em uma população dividida entre um excesso de esperança e de cólera nas favelas de Mombasa, Nairóbi e Kisumu. Lá vegeta uma população jovem, com menos de 40 anos, fora do jogo da globalização. Espectadores do mercado da fragilidade que regula os bairros pobres, eles vivenciam a insegurança das ruas, aluguéis extorsivos, chantagem dos transportes coletivos, fornecimento clandestino de eletricidade e a exploração ilegal dos raros banheiros. Preocupada, a socióloga Awinda Atieno, que realizou um trabalho de base com os jovens kikuyu das favelas de Nairóbi, se perguntava às vésperas das eleições: “Pelo amor do Quênia, esperamos que os mungiki sejam apenas o sintoma de uma febre eleitoral passageira e não um aviso violento de algo mais brutal ainda”.11
Enviada à região após os incidentes, Jeandayi Frazer, encarregada dos Negócios Africanos do Departamento de Estado norte-americano, convocou Kibaki e Odinga para resolver os conflitos, “trabalhando em conjunto para reforçar as instituições quenianas”. Afinal, o Quênia é parceiro “estratégico-chave” de Washington, que lhe concedeu US$ 500 milhões de ajuda bilateral em 2007, além de ser posto avançado da luta dos Estados Unidos contra o terrorismo no Chifre da África. O país deve abrigar a sede da Africom, o comando militar que os estadunidenses estão a ponto de instalar no continente. As ondas provocadas pela desestabilização da principal saída marítima de Uganda, de Ruanda, do Burundi, do sul do Sudão e do leste do Congo, já afetadas pela alta dos preços da gasolina e dos produtos de primeira necessidade, contribuem um pouco mais para enfraquecer a economia do Leste Africano.
O Movimento Democrático Laranja (ODM), de Odinga, controla a maioria do Parlamento. O minigoverno de abertura nomeado por Kabiki, em 7 de janeiro, é povoado de duvidosos e antigos conhecedores do poder, tais como o ministro da Segurança Interior, Georges Saioti, que em 2006 renunciou ao seu posto de ministro da Educação após envolvimento no caso Goldenberg; e Kiraitu Murungi, ex-ministro da Energia, que foi obrigado a deixar seu cargo há dois anos por ter obstruído as investigações relativas a outro caso de corrupção, o anglo leasing Finance.12
Kibaki insiste em minimizar a crise. Promete abrir ainda mais seu governo. Mas a oposição laranja recusa-se a participar dele. Assim, o país vai se tornando ingovernável. Todos os olhares estão voltados para as ruas, onde reina uma calma precária.
“Quando dois elefantes lutam na savana, só o capim sofre”, diz um célebre provérbio kikuyu. “Dessa vez”, lembra a senhora Klopp, “é hora de pedir que a justiça seja feita. Não se deve repetir os erros do passado. Caso contrário, contribuiremos para obstruir ainda mais a frágil estrada da democracia no Quênia.”