As controvérsias de Washington
Em oposição à política de Bush, há uma corrente que tem por alvo o Iraque e outros países árabes, origem dos homens de Bin Laden e de outros grupos terroristas. É, portanto, no Oriente Médio que os Estados Unidos devem travar e ganhar essa guerraPaul-Marie de La Gorce
A longa série de bombardeios sobre o Afeganistão, iniciada no domingo, 7 de outubro, marcava o início do que os Estados Unidos chamam de uma “guerra”. O que está em jogo, nesta primeira fase, são as opções estratégicas feitas, de saída, pelo presidente George W. Bush. Imediatamente contestadas, elas poderiam ser questionadas por eventuais fracassos sofridos ou pelas vitórias obtidas.
Essas decisões, tomadas nos três dias que se seguiram aos atentados de 11 de setembro, foram aprofundadas durante reuniões feitas em Campo David. Foi dada prioridade absoluta a uma ação de força contra o Afeganistão, santuário da organização Al-Qaida e de seu líder, Osama bin Laden. A ação se daria em três etapas: um ultimato ao regime dos taliban, que já se previa que seria rechaçado; a sua queda e substituição por um novo poder, constituído por representantes da comunidade pachtun e capaz de permitir a neutralização da rede Al-Qaida e, se possível, a captura de seu chefe; e uma operação militar que poderia provocar, acelerar ou concretizar a mudança de regime. A ação realizada no Afeganistão seria apenas a primeira fase de uma ação geral de eliminação do terrorismo mundial, mas as etapas seguintes seriam postergadas para não atrapalhar o êxito da primeira etapa.
O papel crucial de Powell
Essas opções desencadearam imediatamente uma controvérsia que ainda continua. Mas o presidente norte-americano as defendeu, e para compreender a sua posição, é preciso conhecer o tabuleiro de xadrez dos poderes em Washington.
O general Colin Powell já desempenhara um papel essencial, em março, na solução do complicado caso da apreensão de um avião norte-americano pela China
O papel de Colin Powell, secretário de Estado, na gestão da atual crise surpreendeu. Sua nomeação tinha o objetivo, dizia-se, de fornecer o álibi racial e social de que o novo governo precisava. Pessoalmente sem experiência internacional, o presidente Bush buscava um homem com essa experiência, mas independente do Departamento de Estado, para que pudesse ter mais autoridade sobre este. Durante a guerra do Golfo, de 1990-1991, o general Powell não hesitou em se opor aos desejos do presidente Bush pai, exigindo tempo para reunir todas as forças necessárias para vencer o Iraque, e mesmo transferindo as operações para janeiro de 1991. “Espírito racional”: essa é a expressão recorrente das pessoas que lhe são próximas1.
Entretanto, a impressão que prevaleceu durante os oito primeiros meses foi a de que sua autoridade não se afirmara. Partidário da normalização entre Washington e Pyongyang, ele viu o presidente Bush se pronunciar, num primeiro momento, contra tudo que pudesse reforçar o regime norte-coreano. Em compensação, Powell jogou um papel essencial, em março, na solução do complicado caso da apreensão de um avião norte-americano pela China. E conseguiu, principalmente, imprimir sua marca na gestão da política norte-americana no Oriente Médio.
Carro-chefe do governo Bush
Convencido de que a herança recebida do governo anterior não permitia, de imediato, qualquer oportunidade de novas iniciativas pela paz, o secretário de Estado não quis comprometer sua autoridade empenhando-se de forma imprudente nesta questão sempre explosiva no contexto da política interna norte-americana. Não conseguiu do presidente muitas declarações condenando a implantação de novas colônias israelenses. Assim mesmo, interveio, após o atentado contra a discoteca de Tel-Aviv, no dia 1º de junho, para impedir a operação preparada pelo chefe do Estado-Maior Shaul Mofaz, que se preparava para retomar à força os territórios palestinos e liquidar a Autoridade Palestina. Em seguida, Powell incentivaria a missão do ex-senador George Mitchell e a de George Tenet, diretor da CIA ? este último confirmou a Yasser Arafat que a Casa Branca sempre o considerara o único representante da causa palestina, embora a imprensa e mesmo ministros de Israel questionassem sua liderança.
O território afegão, palco da revolta da Aliança do Norte, ficaria estrategicamente isolado com a garantida de neutralidade ou apoio de seus vizinhos
Quando começa a atual crise, o peso do secretário de Estado no executivo é, portanto, considerável. Até porque, como ex-presidente do comitê de chefes do Estado-Maior, ele não teme a tradicional rivalidade com a Secretaria da Defesa. Nem a do Conselho de Segurança Nacional, pois embora Condolezza Rice mantenha relações pessoais com o presidente e sua competência seja reconhecida2, ela reconhece, assim mesmo, o secretário de Estado como carro-chefe.
Uma intervenção ameaçadora
Powell estava, portanto, em condições de impor as opções estratégicas pós-atentado. Bin Laden foi identificado como inspirador do atentado que falhou, em 1993, contra o World Trade Center, bem como os de 1998, contra as embaixadas norte-americanas de Nairobi e Dar-es-Salaam. Na ausência de prova formal, vários indícios levavam a envolvê-lo nos do dia 11 de setembro. Há muito tempo, procurava-se determinar sua posição exata no Afeganistão e também neutralizar seu potencial financeiro. Além disso, em um conflito é sempre vantajoso “personalizar” o inimigo, mesmo que se saiba que a Al-Qaida tem uma direção colegiada. Quanto ao regime taliban, a impopularidade universal faz com que sua derrubada seja quase unanimemente desejada. Finalmente, o território afegão, palco da revolta armada da Aliança do Norte, ficaria estrategicamente isolado desde que garantida a neutralidade ou o apoio de seus vizinhos. As condições políticas e militares para o sucesso pareciam estar reunidas e o risco de alguma derrapagem afastado.
Foi com base nesses dados que o presidente Bush, apoiado pelo vice-presidente Dick Cheney, tomou sua decisão, e que Powell, o secretário de Estado, pôs em ação. A prioridade era a adesão do Paquistão: foi conseguida com uma intervenção ameaçadora junto ao presidente Perez Musharraf. Ninguém duvidava que essa intervenção seria criticada por muitas forças no país, mas podia-se contar com a disciplina do exército e da polícia, reforçada por mudanças espetaculares em seu comando. Quanto mais cedo o regime de Cabul fosse substituído, mais frágeis seriam os riscos de uma derrapagem que, se questionasse a autoridade presidencial, poderia comprometer toda a operação.
As restrições dos aliados
A principal prioridade era a adesão do Paquistão: foi conseguida com uma intervenção ameaçadora junto ao presidente Perez Musharraf
Por isso, era importante dispor de outras bases de apoio, em particular no Tadjiquistão, intermediário dos territórios afegãos controlados pela Aliança do Norte, cuja base é tadjique. Ora, a influência de Moscou continua forte junto ao governo desse país: não só se apoiou no exército russo para derrotar a oposição armada dos movimentos fundamentalistas islâmicos, como a segurança de suas fronteiras é garantida pela Divião 501 (russa). Para não depender completamente da Rússia, o governo norte-americano decidiu deslocar outras forças para o Uzbequistão, uma República muito mais independente, cujo território vai até a divisa com regiões povoadas pela comunidade uzbeque do Afeganistão, também dissidente. Em Washington, sabe-se que as facilidades oferecidas pelo presidente Vladimir Putin tinham como contrapartida a não-intervenção direta, a suspensão de qualquer tipo de ajuda indireta à rebelião chechena e a colocação “entre parênteses” da política visando a reduzir sistematicamente as posições russas na Ásia central.
Com a garantia do compromisso dos países europeus na coalizão anti-terrorista, Washington tomou o cuidado de que suas futuras decisões não fossem entravadas pela objeção de governos aliados que não se submetessem a todos os seus objetivos. Basta lembrar que o presidente Jacques Chirac, por exemplo, por ocasião do bombardeio da Sérvia, levantou objeções quanto à escolha de certos alvos, como a sede da televisão de Belgrado. A diplomacia norte-americana fez uma triagem entre seus interlocutores. Na reunião dos ministros de defesa da Organização do Atlântico Norte (Otan), no dia 26 de setembro de 2001, o representante norte-americano não solicitou praticamente nada, mas foi anunciado que unidades britânicas já se encontravam no local. A Grã-Bretanha, cuja aviação já participa dos bombardeios norte-americanos sobre o Iraque, é uma aliada da qual a América não espera objeções, nem reticências. Dos outros, só se espera um apoio simbólico… e algumas informações.
Guerra contra os árabes
No Oriente Médio, a realização das escolhas estratégicas da Casa Branca exige maiores precauções. É preciso impedir qualquer explosão, e, se possível, abrir caminho para um acordo em torno do conflito. Washington começou por tentar conseguir que os governos da região condenassem os atentados e aprovassem uma represália ao Afeganistão. Por enquanto, isso é o suficiente. Em contrapartida, nenhum novo ataque deve ser feito contra o Iraque. E, para reduzir o máximo possível os riscos de provas de força, iniciativas enérgicas foram tomadas para pôr fim à escalada de violência entre israelenses e palestinos. O secretário de Estado Powell propôs; o presidente Bush aprovou.
Era importante dispor de outras bases de apoio, em particular no Tadjiquistão, intermediário dos territórios afegãos controlados pela Aliança do Norte
Contra essas opções, imediatamente se manifestou uma oposição. O Afeganistão não ocupa, no cenário do terrorismo internacional, apenas uma posição marginal, afirmam os opositores. Bin Laden fez seu recrutamento para a Al-Qaida nos países árabes, que também estão na origem de todos os outros grupos terroristas hostis aos Estados Unidos ? alguns, inclusive, apoiados por governos árabes. É, portanto, nessa região que os Estados Unidos devem travar e ganhar a nova guerra. Os defensores destas teses receiam ver os interesses israelenses, tais como concebidos pelo próprio governo israelense, sacrificados pela nova estratégia dos Estados Unidos.
Comparação com Hitler
Essa preocupação poderia dar aos “dissidentes”, à medida que se desenrolam os acontecimentos, um peso que nunca tiveram até aqui. Seu objetivo imediato é o Iraque, que deveria ser liquidado o mais cedo possível, de forma a modificar a fisionomia do Oriente Médio. Mas eles são minoritários. No Departamento de Estado, afirma-se que todos os serviços são favoráveis ao executivo, e um único alto funcionário é contra. No Pentágono, o secretário de Defesa Donald Rumsfeld é considerado hesitante, mas seu número dois, Paul Wolfovitz, lidera a contestação, chegando até a se manifestar publicamente em favor do confronto com o Iraque. Essa idéia recorre, quase diariamente, sob a pena de um ou outro jornalista famoso. E é alimentada também por informações difundidas propositadamente sobre contatos que teriam tido alguns dos organizadores dos atentados com os serviços iraquianos, de cuja implicação, entretanto, não há qualquer prova. Outros retomam as acusações sistemáticas da fabricação, por Bagdá, de armas de destruição em massa.
Não há qualquer dúvida de que é sobre a questão Israel-Palestina que a oposição às opções do executivo começou a se manifestar com certo ruído. No dia 1º de outubro, o presidente Bush pronunciou-se abertamente em favor de um Estado palestino e no dia 5, o primeiro-ministro israelense Ariel Sharon comparou seu comportamento ao das democracias européias recuando diante de Hitler, em Munique. Opinião “inaceitável”, replicou a Casa Branca. As desculpas de Sharon não serviram para nada. Ainda mais que em Washington sabe-se que o presidente, depois de expor suas opiniões sobre o Estado palestino, deu a entender, oficiosamente, que sua proposta incluía uma divisão de Jerusalém.
Oriente Médio, a questão-chave
Com o apoio dos países europeus à coalizão anti-terror, foi tomado o cuidado de evitar que futuras decisões fossem entravadas por governos aliados
A controvérsia iniciada continuou. O Departamento de Estado mobilizou 28 ex-altos funcionários ou embaixadores, entre eles o ex-diretor da CIA Richard Helms, e ex-subsecretários de Estado, como Joseph Sisco e Thomas Pickering. Estes enviaram ao presidente Bush uma carta aberta solicitando a manutenção dos laços estabelecidos com os Estados árabes e muçulmanos numa guerra que tende a durar muito tempo. Mas, o hóspede da Casa Branca, diante das pressões exercidas pelos adversários de sua estratégia, qualificou o presidente Saddam Hussein de evil man (homem diabólico). Da mesma forma, o prefeito de Nova York Rudolph Giulani recusou brutalmente, no dia 12 de outubro, um auxílio de 10 milhões de dólares do príncipe saudita al-Walid bin Talal, que ousava chamar os Estados Unidos a “tirarem ensinamentos” da situação na Palestina: o Departamento de Estado declarou que compreendia a reação de Giulani.
O principal fator que poderia reforçar ou debilitar as chances da estratégia norte-americana é, evidentemente, o desenrolar dos acontecimentos no Oriente Médio. O Departamento de Estado pediu a Yasser Arafat, com insistência, que provasse sua vontade e sua capacidade de colocar um ponto final na violência de origem palestina. O presidente da Autoridade Palestina, em resposta, desarticulou uma manifestação do Hamas e duas pessoas morreram. Em troca, a diplomacia norte-americana conseguiu que Sharon retirasse forças israelenses dos bairros que ocupavam em Hebron e, mais discretamente, a suspensão de assassinatos de dirigentes palestinos.
Aumentando os bombardeios
Como outros dois dirigentes fundamentalistas foram assassinados, poderia pressentir-se que a “pacificação” norte-americana corria o risco de fracassar. A renúncia de dois ministros israelenses, representantes de partidos de extrema-direita, salientou, no dia 17 de outubro, a fragilidade do governo Sharon. O assassinato, no mesmo dia, de um deles, Rehavam Zeevi ? em represália ao de Abu Ali Moustapha, dirigente da Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP), no dia 27 de agosto ?, agravou dramaticamente a crise. Mais uma vez o desejo de unir a maioria dos governos do Oriente Médio na coalizão anti-terrorista chocava-se contra o sangrento ressurgimento do conflito israelo-palestino.
No Oriente Médio, as opções estratégicas norte-americanas exigem maiores precauções: uma nova explosão deve ser impedida a qualquer custo
A seqüência dependerá dos resultados obtidos com esta estratégia. Ela poderá fracassar, primeiramente no Afeganistão, se a instauração de um novo regime demorar muito. A cada dia aumentam os bombardeios contra um país que tem poucos objetivos militares. O objetivo é político: “Se queremos formar um novo poder e, portanto, enfraquecer o dos taliban”, afirma Washington, “não devemos diminuir a pressão por um único dia3“. Daí a organização de uma operação terrestre, para evitar, ao mesmo tempo, a fuga de Bin Laden e o risco de desestabilizar o regime paquistanês.
O difícil caso da Arábia Saudita
Mesmo que Washington tenha êxito na operação afegã, sua guerra certamente não parará por aí. O Conselho de Segurança das Nações Unidas já foi advertido: “Nós poderemos concluir que nossa auto-defesa necessita uma ação suplementar, visando a outras organizações ou países4.” Contrariamente ao que a maioria dos observadores dizia, seus próximos objetivos poderiam se situar no Sudeste da Ásia. Depois da execução recente de um dos reféns de Abu Sayyaf, os Estados Unidos exigirão a eliminação desse grupo pelo governo filipino, ao qual dariam os meios de o fazer. Agirão da mesma forma na Malásia, origem de alguns grupos terroristas. Também irão apelar ao governo indonésio para combater o crescimento de correntes fundamentalistas islâmicas, que já manifestaram sua oposição à intervenção no Afeganistão e poderiam expandir sua base popular ? uma missão de longo alcance.
Num prazo mais curto, Washington solicitará aos governos do Iêmen e do Sudão (com o qual agora mantém boas relações) que liquidem o que resta dos campos de treinamento, bases e recursos que antes serviram a grupos considerados “terroristas”. Bem mais difícil será o caso da Arábia Saudita. A revelação da verdadeira identidade dos terroristas de 11 de setembro prova que a maioria deles era saudita. Nos Estados Unidos, 173 imigrantes desse país foram presos após o dia 11 de setembro e, um mês depois, 54 continuavam detidos para interrogatório. Os dirigentes norte-americanos não têm dúvidas de que Riad, no mais alto nível, deixou funcionar redes financeiras que permitiram aos grupos atualmente chamados “terroristas”, agirem no exterior. Como, por exemplo, no Afeganistão, no Egito, na Argélia, ou, com a simpatia de países ocidentais, na Bósnia e no Cáucaso. Em contrapartida, esses grupos se comprometeram a não reproduzirem jamais feitos comparáveis à revolta de Meca que, em 1979, fez o reino tremer nas bases.
Tentando manter a influência
O principal fator que poderia reforçar ou debilitar as chances da estratégia norte-americana é, evidentemente, a evolução da situação no Oriente Médio
Washington já decidiu não tolerar mais o comportamento da dinastia wahabita. O sentimento que prevalece manifesta-se neste artigo, obviamente induzido, do New York Times5: “Com o consentimento de Riad, dinheiro e homens da Arábia Saudita contribuíram para a criação e manutenção da organização terrorista de Osama bin Laden. (…) Riad rejeitou os apelos de Washington para que fossem congelados seus bens e os de seus parceiros (…) e, até hoje, recusou-se a cooperar nos interrogatórios sobre os suspeitos dos seqüestros de aviões. (…)Washington deve abrir os olhos (…) Fingir que a Arábia Saudita não é um dos pontos de apoio do terrorismo só agrava os problemas.”
Seriam simplesmente facilidades que, por precaução, a dinastia concede a grupos que aceitam operar fora do reino, ou, atualmente, uma oposição nacional contestando a subordinação do país às exigências estratégicas e econômicas dos Estados Unidos ? e que poderiam um dia vir a se manifestar mesmo no interior dessa peça-chave da estratégia norte-americana?
Seja a leste do Golfo ? no Afeganistão e no Paquistão ? ou a oeste ? na Arábia Saudita e no Iêmen ? ou até mesmo no norte, no Iraque, os Estados Unidos, desafiados pelo novo terrorismo, tratam de manter sob seu controle países que escapam, ainda que parcialmente, à sua influência, eliminando qualquer força política e social suscetível de se oporem pela violência a seus interesses. Essa é a “guerra” que decidiram travar. Por mais racionais e calculistas que sejam suas opções estratégicas, são os imprevistos desse combate que darão as cartas. Eles já não admitiram, antecipadamente, q