As duas faces da corrupção no Brasil
Tanto nos grandes jornais quanto nas manifestações dos “juristas políticos” perduram os dois eixos da linguagem lacerdista da corrupção, ora retratada como prática de elites moralmente degeneradas, ora como um mal intrínseco ao Estado, sobretudo quando este se imiscui em terrenos do mercado
Um dicionário da política brasileira no século XX deve reservar lugar de destaque para o vocábulo “corrupção”. Nunca faltaram vozes numerosas a clamar que, ao lado da pouca saúde e do excesso de saúvas, do famoso dito de Mário de Andrade, a corrupção se destaca entre os males do Brasil. Seja como arma política nos embates mais imediatos ou como ideia-chave de grandes interpretações sobre o país, o conceito sempre ocupou lugar de destaque em nosso debate público.
A aparente continuidade do discurso esconde, entretanto, variações importantes. Primeiramente, em razão dos muitos sentidos possíveis do termo “corrupção”, profundamente ligado ao conceito de ordem de quem o mobiliza. Para cada ordenação desejável imaginada há mais de um caminho corrompido possível. Por outro lado, as narrativas sobre a corrupção variam significativamente de intensidade, de modo que a frequência e a agressividade da retórica servem como chave interessante para compreender os movimentos de contestação da ordem política no Brasil. Quando esse tema ocupa o grande centro do debate público é sinal de crise de legitimidade e possível prenúncio de mudanças sociais, de modo que o uso do termo diz tanto sobre o presente quanto sobre o futuro. Também é relevante questionar quem são os principais protagonistas do e no discurso sobre a corrupção, ou seja, quem usa a acusação como arma política e quem dela padece.
Qualquer observador minimamente atento da conjuntura brasileira percebe a intensificação dos discursos sobre a corrupção nos anos 2000. Como já dito, não se trata de fenômeno inédito, mas é importante perceber os eventos e crenças relacionados a essa inflexão. Observando as rupturas em meio às continuidades, talvez cheguemos a algumas pistas. Para tanto, façamos um breve retorno ao passado.
Um dos momentos de forte presença do tema da corrupção na arena política foi nossa primeira experiência histórica de democratização com eleições de massa: a República de 1946. A significativa ampliação do eleitorado e a inédita incerteza dos resultados eleitorais nos faziam estar mais próximos do que nunca de uma prática política democrática, apesar das restrições aos analfabetos. Uma das reações a esse movimento foi um evidente crescimento dos discursos em torno da corrupção, sobretudo por parte da União Democrática Nacional (UDN), principal partido de oposição do período. Os udenistas foram protagonistas de uma narrativa anticorrupção semelhante à que fora anteriormente brandida por tenentes e opositores da ordem varguista.
Entre as lideranças do partido se destacavam em tal padrão retórico os bacharéis que compunham a chamada Banda de Música e, sobretudo, aquele cujo nome veio a criar um neologismo relacionado ao discurso de forte histrionismo e densos tons morais: Carlos Lacerda. Homens do Parlamento, os bacharéis também atuavam na imprensa, mas viam nas tribunas do Congresso o terreno mais confortável. Lacerda era diferente. O jornalista teve papel de grande destaque como deputado, mas foram sobretudo os jornais, a rádio e a nascente televisão os meios responsáveis por torná-lo um grande protagonista.
Lacerda foi um modernizador do jornalismo brasileiro não somente pelo estilo mais coloquial e direto, mas também por uma particular forma de utilizar o humor e a ironia. O político udenista percebeu como o processo de transformação do país em uma sociedade de massas trazia consequências profundas para a política e a imprensa. Ele renovou a longa tradição brasileira dos panfletos políticos e consolidou uma narrativa política sobre a corrupção no Brasil.1 Lacerda construiu seu discurso sobre o tema em torno de dois eixos: a ilegitimidade das lideranças e os excessos do Estado. Ambos os tipos de corrupção se fundamentavam, sobretudo, no terreno de uma concepção de moral segundo a qual o mundo se dividiria entre opostos absolutos, bem e mal, sem nenhuma possibilidade de composição ou transigência.
As lideranças ilegítimas se definiam, nessa perspectiva, por sua qualidade moral inferior e adesão a interesses e valores rebaixados. Vargas, os trabalhistas e os comunistas não ocupavam ilegitimamente seus postos apenas pelo que faziam, mas pelo que eram. Os traços aristocráticos, como o reconhecimento de lideranças naturais, aqui se somam a um discurso do inimigo típico da Guerra Fria. Contra os que alcançaram sem justiça o poder, surgiam as acusações de corrupção ou de subversão, ambos contraconceitos de uma ideia de ordem idealizada. A crítica aos excessos do Estado encontrava, por sua vez, expressão mais nuançada no político udenista. Se por um lado ele defendia um Estado técnico e gestor e criticava o “aparelhamento” do Estado por interesses popularescos, dispostos a implantar uma “república sindicalista” no Brasil, por outro ainda reservava um espaço para a decisão do líder nato, no caso ele próprio, na organização estatal. Lacerda antecipava, em muitos aspectos, a tendência, claramente concretizada na ditadura militar, de afirmação da economia como linguagem política hegemônica no Brasil. O jornalista também cunhava os novos traços de um discurso demofóbico, ou seja, temeroso do protagonismo do povo, em tempos de sociedade de massas. Os acenos excessivos ao povo, mesmo por membros da oligarquia, como Vargas e Goulart, não podiam ser tolerados e mereciam restrições por parte dos interesses econômicos e mesmo das Forças Armadas.
Essa narrativa sobre a corrupção, estruturada em dois eixos que muitas vezes se sobrepunham, não se limitou a Lacerda ou se encerrou com sua morte, em 1977. O lacerdismo perdurou como marca do mundo público brasileiro, sempre presente, em maior ou menor grau, na imprensa e no Parlamento. A ideia de narrativas sobre a corrupção não indica a imutabilidade dos conteúdos, que mesmo ante algumas continuidades também passam por mudanças, mas uma permanência de estilo e de meios. Nem todos os traços constituem peculiaridades nacionais. A imprensa norte-americana, por exemplo, comumente se arroga o papel de guardiã da moralidade pública. Particular talvez seja a forte convicção, bem presente em nosso debate público, de que há algo de específico na corrupção brasileira, frequentemente relacionada à própria essência de nossa nacionalidade.
O regime autoritário imposto de 1964, instaurado em nome da abolição da corrupção, foi bem-sucedido em proibir menções a esta. Os inúmeros casos, alguns bem expostos no trabalho de Pedro Campos,2 mesmo quando descobertos, acabavam relegados ao silêncio, seja pela violenta censura ou pelo bom trânsito dos empreiteiros em meio à grande imprensa. O termo retornaria com a democracia. Durante boa parte da década de 1980, seu principal representante entre os partidos políticos era – o que soa irônico a olhos contemporâneos – o PT, então apelidado por Leonel Brizola de “UDN de macacão”. Foi com Fernando Collor, entretanto, que o tema retornou definitivamente ao centro da arena pública. Com a bizarra alcunha de “caçador dos marajás”, um político de pouca expressão nacional ganhou a eleição presidencial com significativo apoio da grande mídia. O aprendiz de feiticeiro seria vítima de suas artes, logo alvejado e derrubado, ao menos formalmente, por denúncias de corrupção. O tema permanece, todavia, sempre na ordem do dia.

Algo se transformou, contudo, após 2005, ano em que o PT foi atingido pela Ação Penal 470, o “Mensalão”. Vimos, por um lado, o sensível crescimento do tema da corrupção na grande imprensa. De assunto constante, ele se tornou o centro do debate público. Não importavam os interesses, as ideias ou os compromissos do candidato, mas sua imagem de inabalável honestidade.
A corrupção continua a ser tratada com base em “casos”, constructo social bem definido por Marcos Otávio Bezerra,3 e a ter sua cura associada à terapêutica do direito penal. Os casos, assim como nos idos da República de 1946, parecem se suceder indefinidamente, como se nunca terminassem, em dinâmica que frequentemente cria a sensação, para mencionar uma clássica expressão udenista, de que vivemos chafurdados em um “mar de lama”. A sensação, entretanto, ganha ainda maior intensidade em um mundo onde as redes sociais são responsáveis pela constante circulação e consumo de informação. Nesse cenário, a todo momento ressoam acusações e escândalos em telas de celulares e meios midiáticos.
Outra mudança passa pelo destaque e notoriedade dos “salvadores”. Em meio às suas muitas diferenças, Joaquim Barbosa, Sérgio Moro, Luís Roberto Barroso e Deltan Dallagnol compartilharam prêmios de “personalidade do ano” e capas com roupa de super-herói em jornais e revistas. Constroem-se, assim, atores capazes de extirpar definitivamente esse mal: o Judiciário, o Ministério Público e a Polícia Federal. Como escrevi em texto ao lado de Pedro Lima,4 emerge a figura do “jurista-político”, personagem que retira sua força política de seu papel como intelectual público na grande mídia. Mais importantes que suas manifestações nos autos processuais são seus constantes pronunciamentos na imprensa, na qual ele ora assume as vestes de grande intérprete do país – ou de “vanguarda iluminista”, segundo Luís Roberto Barroso –, ora o papel de salvador da pátria atacada pelos corruptos.
Tanto nos grandes jornais quanto nas manifestações dos “juristas políticos” perduram os dois eixos da linguagem lacerdista da corrupção, ora retratada como prática de elites moralmente degeneradas, ora como um mal intrínseco ao Estado, sobretudo quando este se imiscui em terrenos do mercado. Em relação ao primeiro eixo, as continuidades se destacam de forma impressionante. Algumas décadas atrás, o ataque contra os “corruptos” e “subversivos” atingia em um primeiro momento trabalhistas e comunistas, mas acabava, logo depois, colocando em xeque todo o sistema político. Algo muito semelhante ocorre agora contra os “petistas” e “esquerdistas”, culpados a priori não tanto pelo que fizeram, mas pelo que são, e cujo ataque questiona toda a ordem da Nova República. A corrupção não se define pela lei, mas por razões morais superiores. Justamente por isso as ilegalidades denunciadas pela Vaza Jato são plenamente justificáveis e distantes do terreno da corrupção: contra o mal absoluto, tudo compensa, até mesmo o crime. As transformações se concentram, sobretudo, em torno do segundo eixo.
A identidade entre corrupção e Estado ganhou corpo ao longo das últimas décadas não apenas no Brasil. Fernando Filgueiras5 aponta como boa parte da literatura da Ciência Política sobre o tema vincula a corrupção à política e ao Estado, ignorando o papel das grandes empresas na construção do direito e do Estado contemporâneo. Mesmo ante a força de tal discurso, impressiona a hegemonia dessa narrativa tanto na imprensa quanto no Judiciário brasileiro.6 É justamente a forte presença desse componente pró-mercado o problema da comparação entre os novos protagonistas do Judiciário e do Ministério Público e o tenentismo, realizada por intelectuais como Luiz Werneck Vianna e Christian Lynch. Entre os fins aptos a justificar os meios autoritários dos tenentes não estava o mercado, mas a demofobia, a corrupção e uma forte concepção de bem público. Há semelhanças, mas também diferenças essenciais.
Se há certa resistência na grande mídia às ideias neoconservadoras e reacionárias que ganham crescente força no mundo, o mesmo não se pode dizer em relação a discursos pró-mercado, merecedores de versões cada vez mais extremadas. Décadas de narrativas neoliberais e a recente onda de ideários ultraliberais construíram um amplo consenso em torno do caráter neutro, técnico e honesto do mundo do mercado, retratado como exato oposto da torpeza do Estado e da política.
Tal crença não se restringe aos editorais ou à escolha dos colunistas, mas também se alastra para as reportagens, recheadas de “especialistas” escolhidos a dedo. Recente matéria da Folha de S.Paulo sobre a decisão do STF que considerou inconstitucional a redução de salário de servidores, por exemplo, reuniu uma heterogênea plêiade de “especialistas” – entre os quais está o presidente da célebre Instituição Fiscal Independente, criada com o intuito de combater o excesso de gastos do Estado – para “lamentar” a decisão do tribunal.7
A adesão a uma lógica do mercado segue o mesmo procedimento da crítica às lideranças ilegítimas, operando por meio de uma radical moralização do mundo político, dividido em dualismos de qualidades distintas, como bem e mal absolutos. O instrumento para resolver os problemas seculares do país, representados em uma das partes do dualismo, é o direito penal, em versão profundamente moralizada. As pretensões de neutralidade, sempre formais e distantes da realidade, mas relevantes para evitar que o processo jurídico democrático descambasse em evidente lógica inquisitória, são tratadas como excessos de direitos, favoráveis à manutenção de uma sociedade degradada.
O diagnóstico de uma infiltração da corrupção em todas as práticas e instituições dispensa maior preocupação com a comprovação da culpa. Há um perfil de culpado a priori, para o qual não se exigem tantas formalidades. O maior rigor não demanda cuidado na seleção dos culpados e aumenta a arbitrariedade dos acusadores na definição dos inimigos do país. Caso as evidências apontem para lados indesejados, vale a menção aos criminosos de sempre, de modo a preservar a “neutralidade” das “equivalências”.8
A análise dos editoriais dos três mais influentes jornais do país – Folha, Estado de S. Paulo e O Globo – às vésperas da derrubada da presidenta Dilma Rousseff, em 17 de abril de 2016, aponta para uma narrativa bem semelhante. Ao lado da preocupação em defender a legalidade e legitimidade do processo, há o diagnóstico de que, para além das “pedaladas”, o afastamento tem duas grandes justificativas: a má condução da política econômica e, nos exatos termos do Estadão, “a corrupção endêmica”. Ambos os eixos estão, como espero ter demonstrado, mais próximos do que parecem. Também não é por simples coincidência que eles coincidem com duas narrativas centrais do discurso vitorioso de Jair Bolsonaro, representadas pelo “Posto Ipiranga” Paulo Guedes e pelo “justiceiro” Moro.
Jorge Chaloub é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e doutor em Ciência Política pelo Iesp-Uerj.
1 Escrevi sobre o lacerdismo em “A banalidade do mal na política”, Insight Inteligência, n.84, jan.-mar. 2019, p.32-41; e “O liberalismo de Carlos Lacerda”, Dados, v.61 n.4, Rio de Janeiro, out.-dez. 2018.
2 Pedro Henrique Pedreira Campos, Estranhas catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar, 1964-1988, Eduf, Niterói, 2014.
3 Marcos Octávio Bezerra, Corrupção: um estudo sobre poder público e relações pessoais no Brasil, Papéis Selvagens, Rio de Janeiro, 2018.
4 Jorge Chaloub e Pedro Lima, “Os juristas políticos e suas convicções: para uma anatomia do componente jurídico do golpe de 2016 no Brasil”, Revista de Ciências Sociais, v.49, n.1, mar.-jun. 2018.
5 Fernando Filgueiras, Corrupção, democracia e legitimidade, UFMG, Belo Horizonte, 2006.
6 Jorge Chaloub e Pedro Lima, op. cit.
7 Eduardo Cucolo, “Especialistas lamentam maioria no STF contra redução de salário de servidores”, Folha de S.Paulo, 23 ago. 2019.
8 Tratei do tema em “O abismo das falsas equivalências: divagações sobre a comparação entre as esquerdas e Bolsonaro”, Escuta. Revista de Cultura e Política, set. 2018.