As eleições do medo
O primeiro turno das eleições presidenciais afastou o fantasma da eleição do general Efraín Rios Mont, acusado de ser responsável por 20 mil mortes nos dois anos que se seguiram ao golpe de Estado por meio do qual tomou o poder em 1982Stéphanie Marseille
Ex-professor primário, originário da região de Cobán, capital do departemento de Alta Vera Paz, a quatro horas de carro da capital, Ciudad Guetemala, Hector Rolando Cobqim retomou os estudos de direito e se formou em direitos humanos trabalhando durante anos como intermediário para a fundação Myrna-Mack1
. Posteriormente, ele abriu o Serviço de Direitos Humanos dos Povos Indígenas, engajando-se na “defesa étnica2
e na formação de “promotores de justiça”.
A iniciativa não é isolada. A região montanhosa de Ixcán, no norte do país, foi particularmente atingida pela repressão durante o conflito que, em 36 anos, fez 200 mil mortos (segundo a Comissão da Verdade, criada sob a égide da Organização das Nações Unidas). Os “promotores de justiça” são escolhidos pelas comunidades, entre seus membros, para promover os direitos de todos. Estes “defensores populares” devem combater a discriminação de que estas populações indígenas são sistematicamente alvo, sem depender de advogados da capital. Bilíngüe em quíchua e espanhol, Cobqim trabalha tanto na identificação de conflitos dentro da comunidade e na sua resolução, quanto na reivindicação do acesso à saúde, à justiça, à educação.
Impunidade é onipresente
Segundo Alberto Cabellero, responsável regional pela Missão das Nações Unidas para a Guatemala (Minugua), a região de Ixcán é o espelho da guerra civil e de suas conseqüências: “20% de sua população foi deslocada durante a guerra, 15% dos habitantes são ex-guerrilheiros e a região conheceu cerca de 50 massacres. As viúvas e os órfãos são uma legião”. Herança da oposição armada e das experiências de organização comunitária, a consciência política é aguçada3
. Muitos dirigentes municipais foram quadros na guerrilha – a União Revolucionária Nacional Guatemalteca (URNG) -, habituados a buscar soluções locais. Mas a ausência do Estado se faz sentir em todos os níveis: “A resolução de todos os conflitos passa sistematicamente pela violência.”
Os ex-milicianos das Patrulhas de Auto-defesa Civil (PAC), instituídas pelo exército em 1981 para controlar as populações e responsáveis, segundo a Comissão da Verdade, por 12% das violações dos direitos humanos durante o conflito, permaneceram no interior das comunidades. Nunca foram punidos. “O sentimento de impunidade que daí decorre é onipresente. Um roubo de galinha pode ocasionar a um linchamento. Não existe instância de resolução de conflitos ou de mediação. A punição dos criminosos não é uma prioridade para o Estado.” Por isso, a missão da Minugua evoluiu sensivelmente: ela relata também as violações de direitos humanos cometidas dentro das comunidades.
Democracia existe, no papel
Bilíngüe em quíchua e espanhol, Hector Cobqim atua na solução de conflitos dentro da comunidade e na reivindicação de acesso à saúde, justiça, educação
A cultura da impunidade que reina nas montanhas não é nada mais que o reflexo local de uma situação nacional. Ao invés de programas para a saúde mental e da indenização das vítimas do conflito, previstos pelos acordos de paz (1996) e pelo plano nacional de ressarcimento das vítimas (2001), os milicianos das ex-PAC é que foram agraciados financeiramente este ano por “serviços prestados durante o conflito”…
No papel, porém, a Guatemala está em vias de reconstrução: a Constituição de 1985 garante os direitos de todos e preconiza a igualdade entre mulheres e homens; os acordos de paz e o plano nacional de ressarcimento das vítimas da guerra civil prenunciam as condições para uma volta à normalidade; o sistema judiciário é dotado de uma Procuraduría de Direitos Humanos, organismo encarregado de verificar se o Estado respeita os direitos de seus cidadãos.
Desde sua chegada à presidência, no dia 14 de janeiro de 2000, Alfonso Portillo se comprometeu a prosseguir com a aplicação dos acordos de paz e a dissolução do Estado-Maior presidencial (EMP), unidade militar de informação muito envolvida na repressão4
. Também pediu a permanência da Minugua, encarregada de verificar a aplicação dos acordos de paz até 2004. Na época em que chegou ao poder, a Minugua avaliava que cerca de um terço desses acordos, na realidade haviam sido respeitados. Três anos mais tarde, toda a parte dos acordos referente à reinserção econômica, ao acesso aos serviços sociais, aos financiamentos e aos créditos continuava letra morta.
“Quinta-feira negra” e “Sexta-feira de luto”
Muitos dirigentes municipais foram quadros na guerrilha – a União Revolucionária Nacional Guatemalteca (URNG) -, habituados a buscar soluções locais
Por detrás da presidência de Portillo, da Frente Republicana Guatemalteca (FRG), o verdadeiro poder permaneceu nas mãos do dirigente desse partido, general Efraín Ríos Montt, autor do golpe de Estado de 1982. O ex-ditador é tido como responsável pela intensificação das atrocidades durante sua presidência, de março de 1982 a agosto de 1983: cerca de 20 mil mortes lhe são atribuídas. Presidente do Congresso desde 14 de janeiro de 2000, Ríos Montt disputava a presidência pela terceira vez. Proibido de se candidatar às eleições presidenciais de 9 de novembro pela Constituição5
, ele respondeu com uma demonstração de força.
Após a recusa da Corte Suprema de Justiça em reconhecer sua candidatura, ele declarou numa entrevista coletiva que não poderia ser responsabilizado pela violência de seus partidários. Com esse pretexto, nos dias 24 e 25 de julho – rebatizados, desde então, como “quinta-feira negra” e “sexta-feira de luto” – uma horda de quatro a cinco mil baderneiros encapuzados, que chegaram ao centro da cidade em ônibus, desde as primeiras horas do dia, bloquearam a capital. Armados com bastões, facões, mas também com armas de fogo, invadiram diversos lugares simbólicos – a Corte Constitucional, a Corte Suprema de Justiça, o Supremo Tribunal Eleitoral – cercando as sedes dos jornais e as casas dos adversários de Ríos Montt. No meio da multidão, políticos da FRG foram reconhecidos dando ordens. Nem o governo nem as forças de polícia intervieram.
Ação judicial por genocídio
Por detrás da presidência de Portillo, da Frente Republicana Guatemalteca, o poder permaneceu nas mãos do chefe desse partido, general Efraín Ríos Montt
Cinco dias mais tarde, numa reviravolta espetacular, a Corte Constitucional reconhecia a candidatura de Ríos Montt às eleições presidenciais. Havia o risco de vê-lo chegar ao posto supremo, pois, além de sua obsessão pelo poder, a presidência lhe ofereceria uma forma de escapar às acusações de crime contra a humanidade das quais é objeto. Mas o recado das urnas foi claro. Passaram para o segundo turno a ser disputado no dia 28 de dezembro Oscar Berger, da Grande Aliança Nacional (Gana), com 46% dos votos, e Álvaro Colom, da Unidade Nacional da Esperança (Une), com 26%.
Esta derrota de Rios Montt pode ser atribuída ao movimento nacional “dos direitos humanos” se formou há cerca de um ano e meio. Ninguém, na Guatemala, se pergunta qual adjetivo a ser atribuído a estes “direitos”: o movimento desenvolve, alternadamente, uma luta contra a impunidade, pela recuperação da memória, pelo respeito às vítimas da guerra civil, pelo desenvolvimento econômico e social das populações indígenas, contra a ausência do Estado, pelo desenvolvimento das infraestruturas fora da capital, pelo respeito às mulheres e contra a violência específica de que estas últimas são alvo etc… Ganhou uma função estruturante, num país onde a violência se tornou modo de comunicação e de vida.
A ação por genocídio contra o general Ríos Montt interposta pela organização Justiça e Reconciliação do Centro de Ação Legal pelos Direitos Humanos (CALDH), em nome de cerca de 22 comunidades vítimas de massacres, unifica os esforços de todos. “É um espaço de diálogo e articulação necessário entre as organizações de base, que fazem um trabalho sistemático cotidiano, e as organizações da capital, que têm condições de realizar um trabalho de lobbying e romper o silêncio. Uma das conseqüências visíveis, é que o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) ampliou as licitações para as organizações de base: as necessidades concretas das populações indígenas se tornaram visíveis”, comemora Cobqim.
“Solução é educar”
Após a recusa da Justiça em reconhecer sua candidatura, Ríos Montt declarou que não poderia ser responsabilizado pela violência de seus partidários
Essa ação está tramitando no Ministério Público, que conduz as investigações em conjunto com a Justiça e Reconciliação. “Identificamos mais de uma centena de testemunhas diretas, recorremos a exumações, recolhemos depoimentos de mulheres vítimas de violência”, declara Cristina Laur, responsável pelo programa do CALDH. Resta garantir a proteção das vidas das testemunhas: como no momento da volta dos refugiados, os observadores internacionais vivem no meio das comunidades, encarregados de reportar qualquer tentativa de intimidação ou agressão contra as testemunhas, freqüentemente mulheres.
Na realidade, há três anos que militantes de direitos humanos, jornalistas, sindicalistas e magistrados são alvo de uma onda de agressões e intimidações. Os mais aguerridos chegam a uma situação insustentável e alguns chegam a prometer retomar as armas. Mas em Ixcán, antes das eleições, a maioria da população tinha medo: “Todos os dias, cinco ou seis pessoas passavam na Pastoral Social para nos dizer que estavam pensando em partir para o exílio. Estavam persuadidos de que Ríos Montt vai recomeçar os massacres”, explica Sergio, jovem militante de um organismo vinculado à Igreja.
Apesar dos dispositivos de observação criados, principalmente pela União Européia, esperava-se que “mortos e militares” votassem. O Supremo Tribunal Eleitoral já havia constatado a inscrição, nas listas eleitorais, de 45% dos militares, assim como o fato de que 238 municípios não terem comunidado os nomes dos eleitores falecidos desde a última eleição. “A candidatura de Ríos Montt era uma violação à Constituição, mas ninguém reagiu. A única solução foi educar as pessoas.” Disse Reina, inscrita nas eleições municipais de Playa Grande, em Ixcán, nas listas da URNG, a ex-guerrilha convertida em partido político.
“Passar do discurso à ação”
O segundo turno das eleições presidenciaisserá disputado entre Oscar Berger, da Grande Aliança Nacional e Álvaro Colom, da Unidade Nacional da Esperança
Essa vitória frente à FRG ocorreu apesar das dificuldades que a oposição teve para se federalizar. Desde a “quinta-feira negra” e a “sexta-feira de luto”, os membros da oposição haviam se coligado numa Frente Cívica pela Democracia que pretendia organizar uma demonstração de massa: mas sua manifestação reduziu-se a alguns milhares de pessoas nas ruas da Ciudad Guatemala. Cerca de dez partidos políticos, todos de direita ou de centro-direita, com exceção da URNG, têm discursos afinados com programas e práticas pouco convincentes.
O amplo “movimento dos direitos humanos”, que engloba tudo e mais um pouco, serve de agenda política, na medida em que nenhum partido apresenta reivindicações concretas das populações vítimas da guerra. De todo modo, apesar dos espaços de diálogo, como o Fórum Guatemala, nenhuma figura carismática emerge para fazer a ligação entre as aspirações destas organizações e um programa político. “Toda a questão, para as organizações locais guatemalteca, é passar do discurso à ação, da informação sobre os direitos humanos à sua defesa ativa pelas comunidades. De um estatuto de vítima, assistida por programas de cooperação internacional, ao de atores”, observa Amandine Fulchiron, dirigente do programa Conselhos em Projeto, plataforma de organizações não-governamentais que apóia tecnicamente as organizações locais. Uma questão de dimensão, um processo lento e frágil. O fim do mandato da Minugua acrescenta uma incógnita a esta situação: a missão da ONU se esforça para auxiliar as organizações locais, com a esperança de que estas últimos continuem o trabalho de vigilância do Estado.
(Trad.: Fabio de Castro)
1 – Uma das organizações de defesa dos direitos humanos mais respeitadas, fundada pela irmã do antropólogo Myrna Mack, assassinado em 1990 porque estudava os efeitos do conflito armado sobre as populações rurais refugiadas.
2 – Trata-se de fazer reconhecer a existência de regras específicas de funcionamento das comunidades indígenas. Este conceito dá lugar a várias interpretações: entre as mais radicais, encontra-se a defesa de um espaço jurídico indígena separado do direito nacional guatemalteco, o que levaria, na opinião de algumas pessoas, à criação de uma nação indígena. Entre os mais moderados, trata-se de construir passarelas entre os dois universos jurídicos. Não podemos falar realmente de uma doutrina jurídica, trata-se mais propriamente de uma prática.
3 – Ler, de Maurice Lemoine, “Os irredutíveis índios