As guerras mexicanas
Batalhas intestinas convulsionam o México, movidas pelos grandes cartéis que abastecem o vizinho Estados Unidos. A população, principal vítima, aguarda ansiosamente o desfecho dessa briga, que envolve o exército, a polícia e até o presidente do país
Juan e Paco percorrem em alta velocidade as ruas de Culiacán, a capital de Sinaloa, um estado da costa pacífica mexicana, em frente à Baixa Califórnia. São quase 23h00 quando, sem diminuir a velocidade, eles ultrapassam um carro da polícia local. Juan está ao volante, Paco leva o walkie-talkie, e os dois ajeitam a gravata. O walkie-talkie anuncia: “Paco, são quatro mortos, estão perto da igreja, num Chevrolet vermelho”. Até se parecem com uma radiopatrulha, mas, os dois colegas, na verdade, exercem outra profissão: são papa-defuntos. Em seu cartão de visitas está inscrita a expressão “especialistas em tiroteio”.
O trabalho não é fácil: eles têm de chegar primeiro – em Culiacán existem, pelo menos, seis agências “especialistas em tiroteio” – e oferecer o serviço aos parentes da vítima entre um e outro interrogatório da polícia. “O pessoal nos chama de ‘urubus’, nos acusa de assediar a família quando o cadáver ainda está no chão, mas o nosso trabalho é útil. Não somos vagabundos”, diz Paco. E, de fato, assim que chegam ao lugar, os dois se apressam a descobrir o nome das famílias, a identificar os parentes entre as pessoas chorando e a ajudar a carregar os corpos. Nessa noite, os quatro mortos tinham menos de 25 anos de idade. Foram abatidos no carro, e os assassinos fugiram sem deixar pista. “Como sempre. É o dia-a-dia de Culiacán. Com estes, já são 13 mortos hoje”, constata Juan. Os comparsas estão em outro bairro, cuidando de “mais um acerto de contas entre os narcotraficantes”, como noticiarão os jornais no dia seguinte.
Serão narcos mesmo? Talvez. Mas como as investigações nunca levam a nada, é impossível saber. Paco e Juan não têm a menor dúvida que os quatro mortos do Chevrolet só podiam estar metidos com o tráfico: “A gente vê pela roupa e pelos carros das famílias. Eles têm grana. E como arranjar dinheiro num bairro pobre de Culiacán?” insinua Paco, olhando de esguelha.
Culiacán é conhecida no México por ser o “berço do narcotráfico”. Os barões das drogas da cidade sempre prosperaram em paz: calcula-se que 60% da economia local tem vínculo com o dinheiro sujo. A presença das drogas deixa traços evidentes, desde os cemitérios, muito bonitos, onde os pedreiros são tão numerosos quanto os mortos. Lá os túmulos são verdadeiros mausoléus de dois andares, equipados com ar-condicionado, telefone, geladeira e espaçosos sofás. Uma “ostentação” típica do México.
Peleja interna
Como no resto do país, toda noite Culiacán veste luto por causa da guerra intestina do cartel de Sinaloa. O conflito, já bastante sangrento, é agravado por outra “guerra”, a do governo federal contra o narcotráfico, empreendida, desde 2006, pelo presidente Felipe Calderón.
A peleja interna no maior cartel mexicano é conseqüência da cisão entre vários líderes. Em maio passado, os irmãos Beltrán mandaram matar o filho de “Chapo” Guzmán, o chefe da organização, no estacionamento de um dos centros comerciais mais chiques da cidade. Segundo os bilhetes deixados nos cadáveres, os irmãos Beltrán se vingaram da prisão de Alfredo Beltrán Leyva, mais conhecido como “El Mochomo”, que Guzmán teria “dado de presente” às autoridades. Os confrontos diários entre essas duas facções produzem uma média de 100 mortos por mês.
Porém, num passado não muito distante, os inimigos já foram próximos. Seus chefes cresceram juntos no célebre “triângulo de ouro” mexicano, onde as frias montanhas da Sierra Madre ocidental fazem a fronteira dos estados de Sinaloa, Durango e Chihuahua. Na década de 1940, os americanos descobriram nesse local o clima ideal para o cultivo da papoula. Na época, eles precisavam produzir uma quantidade enorme de morfina para enviar aos soldados nas frentes de batalha da Segunda Guerra Mundial, e os mexicanos, sempre dispostos a satisfazer os desejos do grande vizinho do Norte, aceitaram a empreitada. Ninguém desconfiou que aquela cultura, rapidamente associada às plantações de maconha, viria a ser o maior problema do México contemporâneo. E que, naqueles lugarejos acessíveis apenas por avião ou depois de muitas horas de uma estrada péssima, iriam nascer os maiores capos do país.
Um camponês, que prefere o anonimato, conta como é sua vida na Sierra: “O exército destrói as plantas, e tornamos a plantá-las. Os compradores nos ameaçam, pagam mal. Os vizinhos apodrecem na cadeia, e convivemos com o medo constante de acabar perdendo tudo”. Pergunto se os narcos não são generosos com eles e recebo uma gargalhada como resposta: “Generosos, eles? Nunca. Cada peso que emprestam precisa ser devolvido. E no prazo”. Indago se não financiam a construção de estradas e a instalação de eletricidade, e deixo o entrevistado irritado: “Isso é conversa. Quando eles pagam por uma rodovia é porque beira a terra deles. Só a Igreja ganha dinheiro dos narcos para pagar as festas. Nós, pobres, não recebemos nada”.
A vida na Sierra ficou ainda mais difícil quando a luta contra o narcotráfico passou a ser a prioridade do presidente. Em fevereiro, o exército confiscou 227 aviões pequenos que serviam para o transporte de drogas, mas também de passageiros. A partir daí, tornou-se impossível chegar rapidamente à capital do estado para um atendimento médico de urgência ou um parto. A situação é ainda pior nas cidadezinhas que não têm “a sorte” de abrigar os amigos dos capos.
É o caso do vilarejo El Pozo, por exemplo, que fica a meia hora da estrada de Culiacán. Nos últimos meses, cerca de 50 homens armados executaram habitantes locais sem qualquer motivo aparente, entre os quais duas crianças. Por quê? Ninguém sabe. Nem a polícia, nem a Justiça, nem os moradores que, desarmados e sem proteção, não têm outra saída senão fugir.
O prefeito, don Manuel, conta as casas vazias: são 70 desde os primeiros assassinatos. Os que ficaram não têm dinheiro ou lugar para ir. “Quem vai querer comprar terras aqui depois do que aconteceu?”, questiona don Manuel. Ele resolveu ficar no vilarejo com a esposa, mas, tal como os outros, mandou os dois filhos para Culiacán. Confessa que só sai de casa para cuidar do gado, o mais depressa possível. Lá perto, um homem constrói uma barricada em frente à própria casa. Garante que não fez nada de errado e nem tem relações com o mundo das drogas. “Mas os que morreram também não tinham nada com isso. Todo mundo tem medo de que os matadores voltem.” O arame farpado que ele manuseia parece insuficiente diante da violência que o vilarejo presenciou. Quando das duas chacinas, a polícia achou cerca de 500 balas na cidade.
Redator-chefe do semanário local Río Doce, Ismael Bojórquez é o único que quer saber o que aconteceu. No entanto, ao voltar à cena do crime para investigar, descobriu muito pouco. Segundo testemunhas, os matadores estavam atrás de uma família desaparecida há algum tempo, que possuía uma casa bem mais luxuosa que as outras. Parece que os assassinos, frustrados pela busca infrutífera, resolveram atacar o primeiro que cruzasse seu caminho. “Daí a morte daqueles garotos e o terror que seus rostos estampavam”, conta Bojórquez. “Em Sinaloa, há centenas de vilarejos abandonados como Pozo. À medida que o narcotráfico penetra nesses lugares, criando problemas, e o exército chega, também ele com o seu quinhão de injustiças e maus-tratos, as pessoas fogem. O fenômeno aumentou nos últimos anos, porque as forças da ordem são incapazes de proteger os cidadãos”, relata.
O exército é onipresente nos eixos rodoviários e nas ruas da capital do estado. Seus veículos blindados já não surpreendem ninguém, mas sua presença suscita críticas. “Eles não servem para nada, só para complicar as coisas” é uma afirmação ouvida com freqüência. Para Bojórquez, o exército é impotente diante da amplitude do problema: “É verdade que eles nunca prendem ninguém, é verdade que sempre chegam depois dos fatos. Mas, no fundo, o problema é que o presidente manda a artilharia pesada para a rua sem mexer com a economia nem com a política. Na atual conjuntura e com as eleições legislativas do ano que vem, é delicado perder um ou dois pontos de crescimento no PIB. Também é difícil mexer com as relações entre narcos e políticos. Aqui todo mundo recebe dinheiro sujo. Todos os partidos políticos estão com o rabo preso”.
Policiais assassinados
O Rio Doce é o semanário mais crítico da região, que publicou as pesquisas mais incômodas, tanto para os narcos quanto para as forças da ordem. Na matéria “A Farsa da Polícia Federal Preventiva (PFP)”, destrincha o esquema do principal bastião da segurança mexicana e suas mentiras. Também foi esse jornal que revelou, por exemplo, que a polícia federal não matou quatro “bandidos” em julho, como alardeou a grande imprensa. Os traficantes já estavam mortos quando os oficiais chegaram, sem dúvida assassinados por outros narcos. Esse episódio patético revela como as forças federais precisam construir uma imagem positiva, e ao mesmo tempo repressora, aos olhos da população.
Nada menos que 87 policiais foram mortos em Culiacán desde o começo do ano. As forças da ordem são o alvo privilegiado quando os traficantes querem “dar um recado” às autoridades ou se vingar de uma operação policial. A impunidade com a qual agem quase sempre humilha a imaginação. Um exemplo: o assassinato de uma patrulha inteira, com seis policiais, em junho passado. Alguns segundos antes de matá-los, os assassinos invadiram as ondas de rádio da polícia para anunciar: “O primeiro tira que cruzar nosso caminho vai morrer!”. Promessa cumprida. Surpreendidos num sinal fechado, os seis policiais não tiveram tempo de dar um único tiro para se defender.
No dia seguinte, o discurso da ministra do Interior de Sinaloa, Josefina de Jesús García dizia que eles tombaram por excesso de confiança, o que causou indignação nas famílias. Três delas recusaram a homenagem oficial. “Todos sabem que os narcos têm uma força de ataque muito superior à da polícia. O assassinato deles nada teve a ver com excesso de confiança, e tudo a ver com a precariedade dos recursos ao seu dispor”, revolta-se Vicente Amaral, pai do policial assassinado, Ivan Amaral. De fato, a patrulha circulava sozinha, sem possibilidade de reforços, e alguns policiais estavam sem colete à prova de bala. A escassez de recursos para comprar armamentos é um problema grave para as forças policias, mas não para os traficantes.
No México, não é segredo para ninguém que os narcos se abastecem nos Estados Unidos. Apesar de todos os esforços, o governo é incapaz de mudar essa situação. “Os americanos reconheceram sua co-responsabilidade nesta guerra. Foi um primeiro passo, mas insuficiente, pois não saiu do discurso”, estima Alejandro Díaz de León Carrasco, diretor de cooperação internacional do Ministério da Justiça do México. Os narcos se aproveitam com facilidade da “sacrossanta” liberdade americana, que permite a qualquer um se armar até os dentes – coisa inexistente do lado mexicano. “Nós sabemos, como sabe o governo americano, que os traficantes se abastecem nas 100 mil lojas de armas instaladas ao norte da fronteira, ou em uma das 3 mil feiras de armamento promovidas anualmente no Texas, no Arizona e na Califórnia. Basta ter uma cédula de residente para adquirir uma, dez ou 25 metralhadoras AK-47. Não há limite de compra nem controle de sua destinação”, acrescenta Diaz.
Pelos números do Ministério da Justiça mexicano, 90% das armas confiscadas dos narcos provêm do “grande vizinho do Norte”. Para Diaz, “o pior é que o dinheiro da droga é lavado na indústria de armamento americana. A rota da droga e das armas é exatamente a mesma”. Esse discurso surpreende: até agora, o governo mexicano nunca tinha feito confissão pública semelhante. Mas, diante da pouca cooperação americana no assunto, as línguas se soltam. Nem mesmo o conservador presidente Calderón hesitou em dizer: “É prioritário frear o tráfico de milhares de armas provenientes dos Estados Unidos que entram no nosso território, pois elas contribuem para o aumento da violência e da criminalidade e custaram a vida de dezenas de policiais e soldados mexicanos só no último ano1”.
Armas e drogas estão intimamente ligadas. O encontro das duas se dá na fronteira dos dois países, uma região quase toda desértica e com mais de 3 mil quilômetros de comprimento. Entretanto, apesar da crença generalizada, não é essa paisagem árida a mais usada pelos narcos para inundar de drogas o mercado americano, e sim as zonas urbanas. Em Mexicali, a capital da Baixa Califórnia, a fronteira fica a algumas centenas de metros do centro da cidade. Uma imponente barreira de metal de vários metros de altura separa os dois países. Um obstáculo destinado a impedir tanto o tráfico de drogas quanto a passagem de migrantes.
Os policiais dos dois lados da fronteira vêm descobrindo, geralmente por acaso, os chamados “narcotúneis”. Um princípio simples e dificílimo de desarticular: uma casa ou entreposto do lado mexicano, outra residência ou prédio do lado americano. Entre os dois, um túnel que se estende por várias centenas de metros e zomba de qualquer muro fronteiriço. Às vezes, os narcos nem se dão ao trabalho de cavar: utilizam a rede de esgotos, como ocorreu na cidade fronteiriça de Nogales, no estado de Sonora.
Em Mexicali, Alfredo Arenas é o responsável pela unidade policial que trabalha em colaboração com os Estados Unidos. A troca de informações com os colegas americanos já lhe permitiu descobrir diversos túneis. Ele patrulha diariamente as zonas residenciais ao longo do muro. Em cerca de 10 km, os policiais tentam detectar toda atividade inusual. “Claro, nem toda casa é suspeita. Além disso, aqui há milhares de residências e nós não temos o direito de entrar.”
Passagem para o Tio Sam
O último túnel descoberto, em 2008, foi cavado com 4 metros de profundidade e 120 metros de comprimento. Dispunha de um sistema de ventilação e iluminação bem menos sofisticado que os anteriores descobertos pela Drug Enforcement Administration (DEA), o órgão antidroga americano. De 1990 para cá, descobriram-se 37 túneis na fronteira, principalmente nos estados da Califórnia e do Arizona. O mais comprido, de 441 metros, ficava a algumas centenas de metros do Aeroporto Internacional de Tijuana. “O custo de um túnel varia, conforme o comprimento, de US$ 1 milhão a US$ 5 milhões. Calcula-se que os traficantes recuperam, em média, dez vezes o investimento inicial e nós sabemos, com certeza, que só a passagem da droga não rentabiliza esses túneis. A passagem dos migrantes também é importante e, acima de tudo, a das armas.”, explica Arenas. Como muitos policiais, ele detesta abordar o tema da corrupção nas fileiras da sua profissão. Segundo o governo mexicano, a passagem da droga e das armas também se faz à luz do dia e graças à cumplicidade das forças da ordem, seja a polícia local ou a alfândega2. Arenas não nega os fatos, mas se irrita quando só se evoca um lado do problema: “Sempre dizem que apenas os policiais mexicanos são corruptos. Evidentemente, a coisa não é tão simples. Vários colegas dos EUA acabam de ser presos por ter recebido dinheiro dos narcos”. A diferença é que custa muito mais caro corromper do lado americano, cerca de dez vezes mais. De qualquer forma, a droga ou as armas precisam ser liberadas nos dois lados da fronteira.
E o que pensar da Iniciativa Mérida, o programa assistencial americano de combate ao narcotráfico, que destina US$ 500 milhões anuais ao México e US$ 50 milhões para a América Central? Com o objetivo de melhorar a formação e o armamento dos policiais, a Iniciativa Mérida não é bem-vista pelo seu público-alvo. “Mais uma vez os Estados Unidos se recusam a enxergar o que acontece em sua própria casa. Antes de virem nos ensinar, eles que reduzam seu consumo de droga!” protesta Arenas. Maiores consumidores de drogas do mundo, os EUA destinam três vezes mais verba à detenção de consumidores e traficantes do que à prevenção3.
*Anne Vigna é jornalista.