As ideias prontas sobre a desindustrialização
A contribuição da indústria na economia está dividida em duas, às vezes três, no conjunto dos países ricos a partir dos anos 1970. Para uns, o fenômeno é uma evolução natural: como uma borboleta emerge da crisálida, a economia passaria espontaneamente da fábrica para o escritório. Outros sugerem que a desindustrialização é uma decisão política: deslocalizar as plantas em direção aos países do Sul, mais baratos para os empresários. Enquanto a indústria permanece sendo uma das principais fontes de emprego, sua retomada destaca oposições ideológicas (abaixo), ambientais (págs. 12-14) e técnicas (pág. 15)
“A INDÚSTRIA ACABOU, AGORA É A HORA DOS SERVIÇOS”
De que adianta ir contra o sentido da história? A indústria simplesmente seguiu o caminho percorrido pela agricultura antes dela. Como o desenvolvimento consiste em passar do setor primário para o setor secundário, depois do secundário para o terciário, os países do Norte se encaminhariam rumo a uma economia imaterial, baseada nos serviços e impulsionada por “empresas sem fábricas” (segundo as palavras ditas em 2001 pelo CEO da Alcatel, Serge Tchuruk), ao passo que a produção industrial – poluente e penosa – seria deslocalizada para países com baixos salários.
Indústria e serviços não são opostos: são setores de atividade imbricados e complementares. Nos últimos vinte anos, a terceirização de funções até então realizadas no interior das empresas industriais (alimentação, limpeza e até contabilidade) explica, em parte, a queda do número de empregos diretos no setor industrial e sua elevação no setor de serviços. Por outro lado, as empresas industriais oferecem cada vez mais serviços, como instalação e manutenção, além de locação.
A Michelin, por exemplo, oferece o aluguel de seus pneus por quilômetro rodado. Ocorre que, no Ocidente, ramos produtivos inteiros entraram em colapso, sobretudo nas áreas têxtil, química, de calçados, eletrodomésticos, madeira, plástico e borracha. Trinta anos de passividade política tiveram um resultado menos alegre do que o prometido pelos poetas da feliz desindustrialização.
Na França, o comércio exterior é deficitário desde 2004, pois o saldo positivo dos serviços não compensa o saldo negativo do comércio de bens manufaturados; o fechamento das fábricas causou a desertificação de regiões inteiras; esse mesmo processo significou também perda de know-how técnico – tudo isso enquanto a remuneração salarial no setor de serviços, que deveria substituir o crescimento, é 20% mais baixa do que na indústria.1
O caso da Alemanha, maior economia da zona do euro e grande potência industrial, basta para demonstrar esse ponto: essa evolução não é inevitável nem desejável. Na França, as relocalizações (volta das plantas para o país de origem) – da fabricante de esquis Rossignol, da marca de chá Kusmi Tea, dos fabricantes têxteis Paraboot e Le Coq Sportif – também mostram um movimento inverso. Embora o fenômeno permaneça minoritário na França, ele ganha força nos Estados Unidos, em decorrência da queda no custo da energia, da valorização dos circuitos curtos e da orientação para produtos de alto conteúdo tecnológico e pouca necessidade de mão de obra. Apple, General Electric, Caterpillar, Lenovo e Whirpool nem esperaram as medidas protecionistas de Trump para repatriar suas atividades, diante da elevação dos salários observada nos países emergentes, os quais, por sua vez, já não se contentam em ser as “fábricas do mundo”, investindo em pesquisas e patentes.
O ESTADO NÃO TEM DE SE METER NISSO
Nem bom acionista nem gestor competente, o Estado deveria abrir mão de qualquer direcionamento à indústria. No máximo, deveria encarregar-se de garantir o respeito às regras da livre concorrência e de proporcionar um ambiente favorável ao crescimento, financiando a infraestrutura, a educação dos futuros trabalhadores e a pesquisa básica, enquanto a lei do mercado permitiria selecionar os atores capazes de ser competitivos e inovadores o suficiente para sobreviver.
Apegados a essa crença na livre concorrência, erigida em princípio constitucional da União Europeia, sucessivos governos abandonaram, desde meados dos anos 1980, todas as suas alavancas de ação, assistindo à erosão da base industrial nacional.
Depois da Pechiney (alumínio), da Arcelor (siderurgia) e da Bull (informática), a França deixou cair no bolso dos investidores estrangeiros outras estrelas de sua indústria, como a Lafarge (cimento) e a Alcatel (telefonia). Foi necessário aguardar até a crise de 2008, que trouxe à luz a instabilidade financeira causada por grandes déficits externos estruturais, para que a necessidade de recuperação produtiva voltasse, pelo menos no discurso, a fazer parte das preocupações dos poderes públicos, o que não impediu a continuidade do desmantelamento da Alstom, entregue de bandeja para a norte-americana General Electric.2
A lista de “campeões nacionais” franceses surgidos durante os Trinta Gloriosos (1945-1975) basta para desmentir o mito liberal de uma indústria sem Estado. Ariane, Airbus, os trens Corail, o TGV, o programa de energia nuclear, a cobertura telefônica nacional, tudo isso atesta a eficácia de um Estado estrategista e dirigista, que não hesitou em recorrer à nacionalização, ao planejamento, ao comando público e ao protecionismo para reconstruir e modernizar o país.
Alguns projetos fracassaram. O Plano Cálculo, o Concorde e o Minitel são frequentemente utilizados como exemplo pelos críticos do “colbertismo tecnológico” (mercantilismo francês promovido por Jean-Baptiste Colbert, controlador-geral das finanças da França no século XVII). O economista Jacques Sapir mostra, no entanto, que mesmo esses dissabores carregam repercussões positivas em termos de aprendizado. Apesar de seu fiasco comercial, o transporte supersônico permitiu a “difusão de conhecimentos e equipamentos na indústria aeronáutica francesa”, fenômeno “essencial para o posterior sucesso do programa Airbus”.3
A INOVAÇÃO VEM SEMPRE DO SETOR PRIVADO
Sobrecarregado pela burocracia e pela letargia dos funcionários públicos, o Estado não é capaz de estimular aquilo que o economista Joseph Schumpeter chamou de “espírito animal” dos criadores. Somente o mercado pode permitir o surgimento dos inovadores, bem como lhes oferecer os meios para se desenvolverem. Alguém se surpreende que o Vale do Silício não seja um ramo do governo dos Estados Unidos?
A história mitificada do espírito pioneiro dos empreendedores californianos deixa de fora uma realidade: o setor privado nunca se encarregou de investir em pesquisas caras com resultados incertos. A economista Mariana Mazzucato4 mostrou que as inovações tecnológicas mais importantes das últimas décadas foram possíveis graças ao financiamento ativo do Estado: a internet recebeu subvenções de uma agência do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, a Defense Advanced Research Projects Agency (Darpa); o Sistema de Posicionamento Global (GPS) foi financiado pelo programa militar Navstar; a tela sensível ao toque contou com os subsídios da CIA e da Fundação Nacional para a Ciência (National Science Foundation, NSF) concedidos a dois pesquisadores da Universidade de Delaware; o algoritmo do Google foi financiado pela NSF.
Na indústria farmacêutica, “75% das novas entidades moleculares prioritárias são na verdade financiadas por entediantes e kafkianos laboratórios públicos. Claro que o Big Pharma também investe em inovação, mas sobretudo na parte de marketing”, explica a economista. “Como a Pfizer e, recentemente, a Amgen, elas gastam mais para recomprar suas próprias ações a fim de aumentar seu preço do que para financiar pesquisa e desenvolvimento”.5
Embora as start–ups e o capital de risco tenham um papel importante, eles chegam no segundo tempo, quinze ou vinte anos depois que o governo já forneceu a maior parte do financiamento e assumiu a maior parte do risco.
COMPETITIVIDADE REQUER REDUÇÃO DO CUSTO DO TRABALHO
De acordo com o ministro francês da Economia e Finanças, Bruno Le Maire, “ainda não somos suficientemente competitivos, sobretudo em comparação com nossos vizinhos alemães” (France Inter, 26 nov. 2017). Segundo ele, “precisamos abrir o debate sobre a redução tributária acima de 2,5 salários mínimos”.
Martelado nos últimos trinta anos, o refrão é bem conhecido. Em uma economia aberta, exposta à concorrência dos países emergentes, a indústria francesa sofreria de excessivo “custo do trabalho”, enquanto a Alemanha deveria seu sucesso à política de moderação salarial colocada em prática nos anos 2000.
Esse diagnóstico está por trás da multiplicação dos esquemas de isenção de contribuições sociais desde 1992, como o crédito tributário para a competitividade e o emprego (Crédit d’Impôt pour la Compétitivité et l’Emploi, Cice). A redução do custo de produção permitiria tanto reduzir os preços, a fim de ganhar participação de mercado, como restaurar as margens, incentivando o investimento na atualização do portfólio e na contratação. Encontramos aí o atemporal teorema de Schmidt – “Os lucros de hoje são os investimentos de amanhã e os empregos de depois de amanhã” –, que data de… 1974.
A cruzada contra o custo do trabalho acabou dando resultado. Desde 2016, o custo por hora da mão de obra industrial francesa é 2,10 euros menor do que o da mão de obra alemã.6
É pouco provável, porém, que tal feito seja suficiente para relançar a indústria francesa. E por uma boa razão: o custo do trabalho não é o responsável pela desindustrialização. Em primeiro lugar, ele é compensado pela alta produtividade. Se dividirmos o PIB pelo número total de horas trabalhadas, os franceses estarão quase no mesmo nível que os norte-americanos e os alemães.
Em segundo lugar, o principal fator que prejudica a competitividade industrial francesa desde o início dos anos 2000 é o euro forte. Entre 2000 e 2010, o custo por hora do trabalho na indústria aumentou apenas 32% em euros, mas 90% em dólares.7
O declínio industrial francês também pode ser explicado pela internacionalização dos grandes grupos nos últimos trinta anos. Enquanto as empresas alemãs consolidaram suas bases de produção nacional, os franceses privilegiaram as deslocalizações e os investimentos estrangeiros diretos, sobretudo em países emergentes com forte crescimento. O exemplo do setor automobilístico é eloquente. A partir de 2006, a produção de veículos franceses no exterior superou a realizada em território nacional, a qual vem declinando desde 2002, enquanto a produção de fabricantes alemães na Alemanha tem aumento constante. Do mesmo modo, as multinacionais francesas empregavam 6 milhões de pessoas no exterior em 2014, contra 5 milhões, 1,8 milhão e menos de 1 milhão, respectivamente, de suas concorrentes alemãs, italianas e espanholas. A opção francesa pela “realocação” internacional deve-se em parte ao posicionamento do setor nos níveis de baixa e média gama, nos quais a concorrência é orientada essencialmente pelos preços, o que incita a reduzir os custos levando a produção para outros lugares.
Comparativamente, a competitividade alemã é “além-preço”, isto é, baseia-se na qualidade e na inovação, o que lhe permite impor preços mais altos. Para o economista Gabriel Colletis, membro fundador da Associação do Manifesto pela Indústria (Association du Manifeste pour l’Industrie), a política de compressão dos salários empreendida durante o governo do chanceler alemão Gerhard Schröder (1998-2002) serviu menos para garantir a competitividade do que para elevar os lucros.
Mais que o custo do trabalho, foi o custo do capital que teve um papel decisivo no fenômeno da desindustrialização na França, com os grandes grupos distribuindo uma fatia cada vez maior do valor agregado aos acionistas, em detrimento do investimento e da pesquisa. Trinta anos atrás, os dividendos representavam menos de 5% da riqueza criada na indústria; hoje, essa participação é de 25%. Para cada euro de investimento líquido, as empresas distribuíram 50 centavos de dividendos em 1978; em 2011, eram 2 euros.8
Sob a pressão dos acionistas, as empresas se veem obrigadas a abrir mão de alguns projetos de investimento que não trazem retorno suficiente, ou então a realizar caras operações financeiras a fim de alcançar os 15% de rentabilidade geralmente exigidos. “Com a rentabilidade-padrão a indústria girando em torno de 6% a 8%, as empresas estão cada vez mais propensas a recomprar suas próprias ações para elevar o valor dos títulos”, explica Colletis. Muito difundida nos Estados Unidos, essa prática está crescendo na França: 115 bilhões de euros foram dedicados a ela entre 1999 e 2015.9 Em 2018, as empresas do CAC 40 (as maiores da França) recompraram 10,9 bilhões de euros em ações. No total, é uma perda de receitas impossível de quantificar: “Quem pode enumerar o enorme desperdício de riqueza jamais produzida, de empregos jamais criados, de projetos coletivos, sociais e ambientais jamais empreendidos, apenas por causa [dessa exigência de rentabilidade]?”, lamenta o economista Laurent Cordonnier. 10 Se Bruno Le Maire, ministro das Finanças, quer que a França se torne uma “grande potência industrial”, ele pode começar retirando as empresas das garras das finanças.
O PROTECIONISMO É INEFICIENTE E PERIGOSO
Para o presidente francês Emmanuel Macron, “o protecionismo é a guerra, é uma mentira, é o isolamento” (26 abr. 2017). Ele constitui um dos “dois maiores riscos globais”, segundo o governador do Banco da França, François Villeroy de Galhau:11 “O aumento do preço das importações prejudica as famílias mais desfavorecidas, que proporcionalmente consomem mais produtos importados”.
O mito do protecionismo que levaria diretamente à guerra e do “doce comércio” que, ao contrário, favorece a paz já foi refutado pela história. Em 1870, a França e a Prússia entraram em guerra pouco depois de assinarem um acordo de livre-comércio. Inversamente, o protecionismo que caracterizou os Trinta Gloriosos não provocou conflito algum. A ideia de que o protecionismo inevitavelmente implica “isolamento” nacional e fim das trocas também não resiste à análise dos fatos: “Dos anos 1890 até 1914, todos os países industrializados, com exceção da Grã-Bretanha, seguiram políticas comerciais de inspiração protecionista”, recorda o economista Gaël Giraud. “Isso não impediu em nada que o período fosse de uma expansão muito sustentada do comércio internacional (5% de crescimento anual), a ponto de os historiadores o descreverem como ‘primeira globalização’.”12
O que o protecionismo significaria hoje? Os aduladores do livre-comércio adoram salientar que, graças à globalização, as famílias pobres dos países ricos puderam encher seus carrinhos de compras com camisetas, brinquedos e telas planas a preço de banana. Embora seja verdade que uma política protecionista elevaria o preço desses produtos importados, ela também poderia ajudar a sair dessa obsessão pelo “custo do trabalho” que comprime os salários. Em outras palavras, o que perderíamos como consumidores, ganharíamos como trabalhadores.
Não se trata de aplaudir o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump,que inventa tarifas contra o alumínio canadense e os painéis solares chineses, sem se preocupar com as consequências (retaliação, ineficácia da medida na ausência de uma política industrial etc.). O protecionismo não é uma varinha mágica capaz de ressuscitar todas as velhas indústrias de outrora nem um programa econômico em si mesmo: ele é apenas uma ferramenta que pode ser colocada a serviço tanto de uma política conservadora, unilateral e agressiva como de uma política cooperativa, ecológica e social.
Os defensores do “protecionismo solidário” propõem, por exemplo, a adoção de barreiras alfandegárias europeias para prejudicar importações oriundas de países que não respeitem certos padrões salariais, sociais, fiscais e ambientais. O objetivo não seria subsidiar um “Jurassic Park industrial”,13 mas proteger as indústrias nascentes indispensáveis para a transição ecológica e, acima de tudo, para além da questão industrial, criar uma ordem comercial mundial mais justa e equilibrada. Isso porque não é o protecionismo que leva à guerra. É o sistema desregulamentado atual que erige a competitividade em valor sagrado e coloca os trabalhadores e os sistemas fiscais nacionais em concorrência, em uma corrida sem fim rumo à precarização social.
Laura Raim é jornalista.
1 Jean-Christophe Le Duigou (org.), La Bourse ou l’industrie [Ou a Bolsa, ou a indústria], Éditions de l’Atelier, Paris, 2016.
2 Cf. Frédéric Pierucci e Matthieu Aron, Le Piège américain [A armadilha norte-americana], JC Lattès, Paris, 2019, e Jean-Michel Quatrepoint, “Au nom de la loi… américaine” [Em nome da lei… dos Estados Unidos], Le Monde Diplomatique, jan. 2017.
3 Jacques Sapir, “Politique industrielle et privatisations” [Política industrial e privatização], blog RussEurope, 21 jun. 2014.
4 Mariana Mazzucato, The Entrepreneurial State. Debunking Public vs. Private Sector Myths [O Estado empreendedor. Desmascarando os mitos do público versus privado], Anthem Press, Londres, 2013.
5 Mariana Mazzucato, “TED Global 2013 talk in Edinburgh: Government – investor, risk-taker, innovator” [TED Global 2013 em Edimburgo: governo – investidor, tomador de riscos, inovador], out. 2013, on-line no YouTube.
6 Escritório federal de estatística da Alemanha, Destatis, “EU-Vergleich der Arbeitskosten 2017: Deutschland auf Rang sechs” [Comparação entre custos de trabalho na Europa 2017: Alemanha em sexto lugar], Wiesbaden, 16 maio 2018.
7 Dados do Bureau de Estatísticas do Trabalho (Bureau of Labor Statistics, BLS) dos Estados Unidos.
8 Florian Botte et al., “Le coût du capital: entre pertes et détournement de richesses. Mieux saisir le capital pour en mesurer le coût pour la société” [O custo do capital: entre perdas e desvio de riqueza. Melhor usar o capital para medir seu custo para a sociedade], relatório de pesquisa, Universidade Lille-I e Universidade do Littoral-Côte d’Opale, Clersé, 2017.
9 Florian Botte et al., “Le coût du capital…”, op. cit.
10 Laurent Cordonnier, “Coût du capital, la question qui change tout” [Custo do capital, a questão que muda tudo], Le Monde Diplomatique, jul. 2013.
11 Carta de introdução ao relatório anual do Banque de France dirigida ao presidente da República, 20 jun. 2018.
12 Gäel Giraud, “L’épouvantail du protectionnisme” [O espantalho do protecionismo], Revue Projet, n.320, La Plaine-Saint-Denis, fev.-mar. 2011.
13 Augustin Landier e David Thesmar, “L’ère du ‘Jurassic Park’ industriel” [A era do “Jurassic Park” industrial], Les Échos, Paris, 21 out. 2009.