As Igrejas, o Estado e a compartimentação
Até a década de 60, a sociedade holandesa reconhecia a diversidade religiosa, mas era organizada em compartimentos: do berço até o túmulo, os holandeses nasciam, cresciam e se desenvolviam no seio de sua comunidade de origemMarie Claire Cecília
Em 1848, ao efetivar a sacramentar a separação da Igreja e do Estado, os Países Baixos inscreveram os princípios de liberdade religiosa e do ensino na nova Constituição que reconhece a igualdade dos grupos confessionais. Foi um avanço muito importante, particularmente para os católicos holandeses, até então de facto cidadãos de segunda categoria desde a Revolta (calvinista) dos Países Baixos contra o muito católico Felipe II, que desembocou na criação da República das Províncias Unidas no final do século XVI.
A minoria calvinista tomou, na época, as rédeas do poder. A religião reformada nunca se tornou culto do Estado, ainda que tenha sido proeminente durante muitos séculos. Os católicos foram tolerados com a condição de serem discretos: ele não podiam exercer seu culto muito abertamente (as procissões eram proibidas), nem ter igrejas “que ostentassem” ou fazer soar os sinos. Foram, por muito tempo, suspeitos de serem espiões do inimigo espanhol ( a guerra durou de 1568 a 1648). A tolerância e até a permissão para tocar os sinos, variou segundo as cidades e a boa vontade das autoridades locais compostas por calvinistas1 .
Do mesmo modo, outros protestantes não-calvinistas (luteranos e anabatistas) deveriam ser discretos. Foi preciso esperar até o final do século XVIII e a criação de República batava (1795-1805), na esteira da Revolução Francesa, para que católicos, judeus e protestantes não-calvinistas fossem portadoras de direitos cívicos totais (Staatsregeling, 1798).
O sistema em compartimentos
A partir de 1917 o Estado não apenas reconhece a diversidade religiosa, política e filosófica, mas passa a co-financiá-la
O ano de 1917 marcou uma etapa determinante nas relações Igrejas-Estado e na organização da sociedade. Após um longo combate liderado conjuntamente por protestantes ortodoxos e os católicos, a constituição holandesa reconheceu a igualdade absoluta entre o ensino “confessional” e o ensino público. A partir dessa data, não apenas Estado reconhecia a diversidade religiosa, política e filosófica, mas ele vai co-financiá-la. Uma das figuras-chave dessa luta foi o líder o partido conservador anti-revolucionário ARP, Abraham Kuyper (1837-1920). Esse fundamentalista calvinista (é preciso voltar aos fundamentos do dogma estabelecido em Dordrecht em 1618) é o ideólogo do sistema de pilarização (verzuiling), que caracterizará a sociedade até o final dos anos 19602 .
Do que se trata? De um “compartimento” por agrupamentos (zuilens), correspondendo às diferentes famílias de pensamento religioso, filosófico ou político. Há, portanto, um agrupamento protestante, um agrupamento católico, um agrupamento social-democrata (e comunista em menor escala) e um agrupamento ora qualificado como neutro, ora como liberal. O idel de Kuyper era que todo holandês “do berço até o túmulo” possa nascer, crescer e se desenvolver no seio de sua comunidade de origem, de seu grupo.
Todos os setores da sociedade – ensino, sindicatos, partidos políticos, hospitais, meios de comunicação foram envolvidos. Nos anos 1930, quando apareceu o rádio, os diferentes grupos partilharam as ondas e o tempo de transmissão, o mesmo ocorreu com a televisão depois da guerra. Cada grupo tem sua associação de radiodifusão e de televisão, dispõe de um tempo de trasmisssão em função do número de adeptos3 . Os compartimentos favorecem a noção de grupo e de identidade comunitária. É por esse motivo que os liberais holandeses, que vêem nisso um questionamento do indivíduo e da coesão nacional, não cessarão de se oporem a esse modelo. Mas como toda sociedade se organiza de acordo com esse modelo, eles também a contragosto constituem um quarto compartimento, dito liberal ou neutro.
O processo de descompartimentação
Nos anos 1960, a juventude questionou esse modelo, fechado na família de pensamento dos pais e que impedia casamentos com pessoas de outro compartimento
Nos anos 1960, a juventude questionou esse modelo, fechado na família de pensamento dos pais e que impedia casamentos com pessoas de outro compartimento – os compartimentos socialista e liberal eram, nesse pontos, mais flexíveis que os compartimentos estritamente religiosos (eram difíceis, porém, os encontros, salvo nas escolas públicas, onde haviam mais mistura). Quando chegam ondas significativas de imigração turca e marroquina, a sociedade está em pleno processo de secularização e de descompartimentação. Em 1983, a revisão da Constituição se deu com um sentido que traduz essa evolução: o primado do indivíduo e muito menos do coletivo religioso ou filosófico.
Atualmente segundo os estudos, de 40% a 60% dos holandeses não reivindicam qualquer pertencimento religioso. Certamente a descompartimentação iniciada por volta dos anos 1960 não significa que esse sistema tenha desaparecido completamente. Alguns reflexos ligados a isso subsistem e essa herança tem influência na institucionalização do Islã nos Países Baixos e no modelo de integração estabelecido pelos poderes públicos.
(Trad.: Teresa Van Acker)
1 – Henry Mechoulan, no Amsterdam au temps de Spinoza (PUF, Paris, 1990), assinala que os judeus que vieram se refugiar nos Países Baixos no final do século XVI e ao longo de todo o século XVII gozaram de mais liberdade religiosa dos que os holandeses das camadas católicas.
2 – Essa compartimentação também atinge a Bélgica. Ver Serge Govaert “Os compartimentos” da Bélgica vacilam, Le Monde diplomatique, março de 2001.
3 – Existem, então, três tipos de estação e, portanto, três tempos de transmissão possíveis nas redes