As intensidades de Gil
Confira entrevista com o músico e compositor Gilberto Gil
“Meu papo reto sai sobre patins, a deslizar sobre os alvos e as metas.” Tal qual o trecho da música “OK”, de seu último álbum, as palavras e opiniões de Gilberto Gil também deslizam sem perder a contundência. Sobre o palco do Festival de Artes de São Cristóvão, em Sergipe, ladeado por edificações religiosas na praça construída no início do século XVII, Gil parece fundir-se ao próprio tempo. O vigor, característico de suas apresentações, escorre ao público, composto por milhares de jovens. A força da performance contrasta com um movimento pessoal que o próprio artista, que se aproxima das oito décadas de vida, descreve como uma redução consciente da intensidade. Se a serenidade nunca foi um afeto estranho à figura e à obra de Gil, mesmo em seus momentos de maior fulgor inventivo e força musical, é inegável a suavidade que atravessa OK OK OK. Ao mesmo tempo, o que está em evidência é um traço político e estético de sua trajetória: há um corpo que se apresenta, se expõe e reivindica a vida. Mas, desta vez, um corpo que reconhece e tenta contornar limites, que envelhece, mas não deixa de reverberar o presente. Gilberto Gil permanece um agudo leitor do mundo. Enquanto homenageia seus médicos e acolhe a chegada do neto, Gil atualiza a música “Pela internet”, sem perder a relação política com aquilo que se apresenta como novo. “O desejo agora é garimpar/ nas terras das serras peladas virtuais/ As criptomoedas, bitcoins e tais/ Novas economias, novos capitais”. Este momento de inflexão pessoal é bom para pensar sobre os vários papéis desempenhados ao longo de sua trajetória – seja como vereador, ministro, compositor, músico, comunicador, pai, avô, paciente ou como embaixador informal de uma afrodiplomacia “transinstitucional” brasileira. Com menos tônus, mas um corpo que segue vibrando.
LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL – O disco OK OK OK remete a afetos, amigos, família e carinhos. Como foi a construção dele? O que ele representa?
GILBERTO GIL – Eu acho que OK OK OK é um disco de público interno. O público referencial para quem as canções se dirigem e do qual as canções emanam são os netos, bisneta, os médicos que cuidaram da minha saúde… Meus afetos mais recentes e alguns mais antigos, como é o caso da minha mulher, para quem eu fiz mais uma vez uma canção. Enfim, é um disco, nesse sentido, de público interno. Ao mesmo tempo, ele foi para os meios de difusão, rádio, televisão e internet, todo esse campo da difusão musical. Ele foi para lá também e se tornou um disco de público externo, e acho que ele se equilibrou bem entre os dois públicos. Do ponto de vista estrutural, da coisa musical, é um disco bem mais simples do que iniciativas anteriores em que eu trabalhava fusões mais complexas de ritmos e gêneros. É um disco de sambas, sambas-canções, canções simples e toadas, com um instrumental muito simples. É um disco que, com relação aos anteriores, tem uma redução do tônus musical, da intensidade musical. Um disco mais calmo, mais suave.
No making of de OK OK OK, você diz que esse é o primeiro disco da sua velhice. Você relaciona essa velhice com a quantidade de tempo que viveu. Mas qual é o marco do começo dessa velhice? E como ela se expressa esteticamente?
A velhice é uma forma de balizar, estabelecer uma marca no tempo. Aos 77 anos, o processo do disco foi todo ele, composições e depois gravações, quando eu estava com 75 anos. Quer dizer, saindo de um período de busca da superação de dificuldades com o corpo, dificuldades muitas delas associadas ao envelhecimento, ao cansaço da condição material. Então, é nesse sentido que eu chamei de o primeiro disco da minha velhice. Há também o ponto de vista daquela intensidade à qual me referi. É possível que essa baixa intensidade, esse tônus mais suave, também se refira um pouco à questão da idade.
Na faixa que abre OK OK OK você fala sobre o ato de opinar. Opinar sobre as coisas e as situações. Você se sente muito cobrado pelas pessoas sobre sua opinião?
A gente vem de uma geração que de certa forma inaugura a coisa da militância na opinião pública, com posicionamentos a respeito dos costumes, das dimensões existenciais de cada um, da política, das várias questões que dizem respeito à vida social. Então eu, Caetano, Chico Buarque, Geraldo Vandré, Milton Nascimento, esse bando de gente daquela geração, mais aqueles que vieram depois e que fortaleceram esse processo de militância na opinião pública, nós somos, por isso mesmo, cobrados. A cobrança já está no próprio fato de que nos dispomos a trabalhar nesse campo, da opinião pública, com derivativos dessa classificação, como formadores de opinião. Portanto, somos cobrados necessariamente pela própria noção desse modo de ser artístico.
Você acha que a sociedade atual lida mal com o silêncio ou com a possibilidade de uma pessoa responder a uma pergunta dizendo simplesmente “não sei”?
A sociedade é cada vez menos paciente. Com o advento da internet, dessas ferramentas de condensação de públicos, de coletivos e de individualidades também nos seus territórios, nos seus recantos, essa coisa da exigência do posicionamento e da opinião ficou ainda maior, se intensificou muito nos últimos anos. É daí que nascem as grandes polarizações de hoje, as radicalizações dos conflitos entre os opostos no campo das ideologias. Nossa geração inaugurou essa coisa midiática, da opinião pública circulante através das cabeças de muitos de nós. A internet intensificou isso, dando essa condensação.
Estamos aqui em São Cristóvão, uma das cidades mais antigas do Brasil, em um festival riquíssimo em cultura popular do estado de Sergipe. Há expressões que estão no cinema, música e religião e que parecem convergir numa identidade pan-nordestina. Qual tem sido a importância dessa identidade para resistir ao avanço do fascismo na região Nordeste?
Manifestações extensivas nas várias regiões do Brasil, com suas diversidades, e mais intensivas em algumas outras localidades tiveram papel mais relevante na formação do elemento cultural brasileiro. E, no caso o Nordeste, esse trecho que vai da Bahia até o Pará, se quisermos, até o Amazonas, tanto na faixa litorânea que está ligada a uma exuberância climática e a um estímulo do hedonismo existencial mais natural quanto para o interior dessas regiões, onde o semiárido caracteriza uma dimensão muito dura, muito rude da natureza, e estabelecendo, portanto, uma relação também rude dos homens dessa região com a natureza. Esse conjunto de litoral e sertão, mar-sertão, do Nordeste brasileiro tem uma importância extraordinária. Aí nasceram muitos poetas, muitos escritores, artistas plásticos, dramaturgos, músicos. Enfim, brasileiros, em Pernambuco, na Bahia, no Ceará, no Maranhão. Muitos artistas populares, poetas populares, todos os repentistas que estabeleceram, já de longa dada, o rap popular brasileiro. Tudo isso, a crônica sobre esses povos, a crítica sobre as assimetrias sociais e econômicas… tudo isso no Nordeste ganhou dimensões mais evidentes do que em outras partes do Brasil, um país amplo com várias ecologias sociais e ecologias naturais.
Ao longo de sua trajetória, seja como artista, participando de eventos como o Festival de Artes e Cultura Negras e Africanas (Festac), em Lagos, na Nigéria, em 1977, seja ocupando cargos públicos, você exerceu um papel muito importante nas relações entre o Brasil e a África, atuando como uma espécie de embaixador informal, uma diplomacia paralela. Assim como você, outros artistas negros brasileiros, como Martinho da Vila, assumiram esse papel, de diversas formas, uma espécie de afrodiplomacia brasileira. Como se dá a elaboração dessa prática diplomática específica?
É uma dimensão transinstitucional. Naturalmente, porque é da cultura, das interações com as formas religiosas, com as linguagens da palavra, linguagens do corpo, a dança, a festa, a celebração. Portanto, é uma diplomacia via cultura que o Itamaraty ou o corpo diplomático de qualquer outro lugar não podem fazer. Eles fazem dentro da institucionalidade chamada diplomacia. Nós, artistas, fazemos a trans ou interinstitucionalidade. Quer dizer, acabamos impactando, de certa forma, instituições dos vários campos da vida, nas relações econômicas, nas trocas comerciais, nas comparações entre os vários Estados nacionais, nas suas formações como Estados e como governos e etc. O papel da cultura é esse. E com o rádio, depois o disco, o cinema, a televisão, tudo isso deu, especialmente aos artistas que se dedicaram às artes populares, o benefício de uma ação cada vez mais expandida. Eles têm um dado de expansão natural no seu modo de agir, propiciada por esse alcance dos meios de comunicação, como os grandes shows. Por exemplo, você falou sobre quando a gente foi a Lagos para o Festac em 1977. A gente se apresentou em vários lugares como uma banda brasileira, cantando coisas brasileiras, rememorando as raízes africanas e expondo os laços atuais que caracterizam essas relações de raízes de lá e de cá… Esse é o papel da arte e o papel do artista.
Recentemente, as pessoas recuperaram nas redes sociais sua apresentação com o então secretário-geral da ONU, Kofi Annan. Em geral, esse resgate se fez com bastante nostalgia e orgulho do que fomos, poderíamos ter sido ou também daquilo que não somos mais. Aquilo é símbolo de um momento? Que lembranças esse momento traz?
Ali está um exemplo dessa diplomacia transinstitucional, no Plenário da Organização das Nações Unidas em Nova York, diante de centenas de diplomatas representantes das várias nações do mundo. Um artista de uma dessas nações com a marca muito forte na atividade cultural, que é o Brasil. Um artista desses se encontra com esse mundo diplomático internacional e compartilha o palco com o secretário-geral das Nações Unidas, que é um africano, portanto com aspectos muito naturalmente associados aos brasileiros, aos baianos, àquele artista – no caso, eu –, que estava ali representando essas coisas todas. Então é um momento muito interessante. A dúvida de que ele [esse momento] possa se repetir ou se estender é razoável, mas não impede que a gente continue trabalhando para que aquele tipo de relacionamento se estenda não só ao Brasil, com seus polos de referências no mundo, mas também para outras nações, com seus polos de referência no mundo, a Europa com a África, as Américas com a Ásia, a África com suas diásporas pelo mundo inteiro… Tudo isso deve continuar, até porque uma marca importante da vida da sociedade mundial contemporânea é a fruição das linguagens culturais. Nos serviços, no entretenimento, no turismo, nas formas de busca de conhecimento, nas ciências… São essas inter-relações que propiciam essa interinstitucionalidade diplomática. Isso tudo é um desejo, um modo de ser da sociedade atual de que os protofascismos, os neofascismos e o conservadorismo embrutecedor não conseguem dar conta. E, penso eu, que não darão conta. Porque o desenvolvimento da história da humanidade é para a frente e para os lados, os desvios, as bifurcações. Essa coisa de plantar uma bandeira de um princípio único, uma monocultura da política, monocultura da religião, monocultura do entretenimento, monocultura da informação, tudo isso, me parece, não cabe mais.
Seu período à frente do Ministério da Cultura é reconhecidamente um marco entre os ministros da área. Havia uma concepção de política pública para a cultura que, concordemos ou não, acabou pavimentando um projeto que incluía, entre outras coisas, não apenas maior atenção às culturas populares, mas também uma preocupação com a dimensão econômica da cultura, visão política da cultura como indutor econômico. Estamos vivendo agora um desmonte das instituições e possibilidades de financiamento da cultura no âmbito federal. Olhando para as ruínas disso, por onde recomeçar?
Terá de necessariamente recomeçar por um governo, uma instituição governamental tanto no plano central da União, do governo nacional, quanto na capilaridade dos estados e dos municípios, que estejam na mão de grupos identificados com essa noção de cultura – essa noção pluralista, abrangente, republicana e igualitária, de cultura. Quer dizer, quando vier alguém para dizer que é importante ter um ponto de cultura em um aterro sanitário, como fizemos, ou uma biblioteca em um açougue em Brasília. Um açougueiro que juntava livros fez uma biblioteca e disponibilizou esses livros para muita gente. Aquilo ali chegou aos ouvidos e olhos do Ministério da Cultura e a gente foi lá se encontrar com isso. Os pontos de cultura eram, entre outros projetos, essas tentativas de aproximação com a cultura vibrante e popular do Brasil, que complementasse as culturas letradas que vêm das universidades com o sangue pulsante da vida das pessoas, das ruas, dos lugares. Portanto, para retomar esse processo é preciso que tenhamos governos que venham a retomar essa noção. O que não é o caso desse governo.
Cristiano Navarro é jornalista; Geraldo Adriano Campos é professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de Sergipe e integrante do grupo de samba Batuqueiros e Sua Gente.