As metamorfoses da carne
Os restaurantes ’fast-food’ oferecem uma carne caricata e desencarnada. A estratégia destina-se a atingir um alvo: as crianças, consumidores que devem ser conquistados a qualquer preço. Mas há também uma relação ocidental, ambígua, com a carnePascal Lardellier
A carne não é um alimento comum. Possui uma densidade simbólica de que nunca serão investidas a escarola, o macarrão ou a pasta de amêndoas. Afirmar que se trata do alimento de alguma forma absoluto, é mais do que uma frase espirituosa. Vivenda (carne, em latim medieval), etimologicamente significa “que serve para a vida”. Na verdade, várias ambigüidades de natureza antropológica contrariam a relação do homem ocidental com a carne, tornando-a complexa e equívoca.
A carne nos remete inicialmente à nossa natureza carnívora, portanto, de predador. Representa uma irrupção da natureza na cultura. Viande, viol e violence (respectivamente, “carne”, “estupro” e “violência”, em francês) são palavras que se assemelham e estão semanticamente próximas umas das outras. Esse “alimento animal” contém, ao mesmo tempo, a vida e a morte. Devorando carne, “digerimos agonias”, segundo a célebre frase de Marguerite Yourcenar. Não é acidental que esse alimento suscite paixão e repulsa, apetite e aversão.
Da mesma maneira, a carne foi simbolicamente assimilada às pulsões por muitos religiosos e filósofos. O vegetarianismo sempre reivindica uma forma de pureza, e qualquer ascese (como a Quaresma) proscreve invariavelmente a carne, em primeiro lugar. Por outro lado, comer carne vermelha é gozo por procuração, uma espécie de violência à distância.
“Desanimalizando” a carne
Os matadouros, em nome de uma certa sensibilidade e de uma hipocrisia concreta, foram transferidos para além dos horizontes urbanos, e sobretudo morais
O problema, em seguida, é que é preciso matar, uma vez que somos carnívoros, mas não comemos carne em decomposição. Essa operação delicada, em nome de uma certa sensibilidade afetada e de uma hipocrisia concreta, foi transferida para além de nossos horizontes urbanos, e sobretudo morais, para os limites das cidades. É claro que Claude Fischler nos lembra que o setor de carnes tem uma dificuldade: “Há certos aspectos que, literalmente, não se podem mostrar, e que não se querem ver1 .” Mas a palavra inglesa para matadouro, slaughterhouse (casa do massacre), nos lembra quantas matanças são aí perpetuadas. A operação de morte foi, portanto, industrializada, parcelada, mecanizada. Mas uma má consciência ainda ronda nossos bifes: não é verdade que 89% dos consumidores confessam que não comeriam mais carne, se eles próprios tivessem que matar o animal?
Enfim, a pós-modernidade ocidental, que não está longe da incoerência, “hiper-antropomorfizou” os animais domésticos, transferindo para a denegação a massa sombria desses milhões de bichos que vivem por necessidade, e o tempo (concedido) de voltar a essa morte que os tornará enfim úteis, ou seja, consumíveis. É preciso então uma crise, semelhante à do novilho com hormônios na década de 70, ou da vaca louca, recentemente, para nos pôr, de repente, diante dessas incoerências.
É preciso uma crise, como a do novilho com hormônios na década de 70, ou da vaca louca, para nos pôr diante das incoerências da pós-modernidade ocidental
Então, pacientemente, uma tendência ocidental dominante consistiu em desencarnar a carne a qualquer custo. Ao final de uma longa cadeia de transposições semânticas e cenográficas, temos pacientemente “desanimalizado” os “bichos comestíveis”. Estes serão assexuados e têm o nome mudado – a carne de “boi” não é, oito em cada dez vezes, de “vaca”…? – esfolados, partidos em pedaços… até que o animal não seja mais visível em momento algum2 . Na bandejinha branca do supermercado, o bife é um produto anônimo, igual a todos os que irão encher o carrinho ao lado dele. Mais do que clandestino, o animal é excluído, quase negado.
A enganação é total
Os fast-food, que irromperam na França há apenas duas décadas, levaram ao paroxismo os termos dessa relação com a carne que, de ambígua, se tornou esquizóide: a realidade não é mais a realidade, e funcionamos em dois registros diferentes de percepção.
No McDonald?s, por exemplo, apresenta-se ao consumidor-alvo – a criança – uma carne esvaziada de seu sentido, por assim dizer… Uma carne desencarnada, uma caricatura e, sobretudo, etimologicamente, e em dois níveis, carnavalesca: inicialmente, porque é lúdica e fantasiada; em seguida, porque é preciso lembrar que essa palavra, que vem do italiano carne levare, significa, literalmente, “a carne vai embora”, “a carne foi seqüestrada”.
Ao final de uma longa cadeia de transposições semânticas e cenográficas, temos vindo, pacientemente, “desanimalizando” os “bichos comestíveis”
O fast-food oferece à devoração uma imitação caricatural (a figura emblemática da rede McDonald?s não é o palhaço Ronald?) que está situada nos antípodas do trágico inerente à carne. Esse sucedâneo degenerescente não se assume e ele até mente, em sua natureza profunda, pois não tem da carne nem o nome, nem a forma, nem o sabor – escondido, dissimulado, nesse caso, sob uma transformação kitsch e adocicada do sangue: o ketchup.
Nos restaurantes fast-food, o animal, completamente apagado, está, se não ausente, pelo menos invisível. O mesmo acontece inicialmente com os nomes: nuggets, hamburgers, rings… O inglês – e a regra não tem exceções – é preferível ao francês. Dessa maneira, é ainda menor a possibilidade de equívoco; ou melhor, a enganação é total. Finalmente, quanto à forma, esses alimentos foram desnaturados, desestruturados, recompactados, coloridos e disfarçados, para que se tornem conformes à norma gustativa que os mastodontes norte-americanos do setor agroalimentar procuram impor: uma tendência colorida e adocicada, qualquer que seja o alimento produzido3 .
A “força taurina” do bife
Essa carne, que já nem tem o nome de carne, é então ficcionalizada, inserida numa seqüência de jogos, de cores, de surpresas, de happenings midiático-culturais (promoções de filmes etc…), na qual ela é apenas um epifenômeno, um produto marginal e até menor. Aliás, uma pequena pesquisa prova que a quase totalidade das crianças de menos de cinco anos querem “ir ao McDonald?s”, “primeiro por causa do brinde, em seguida por causa das batatas fritas e do ketchup”. Escondida nas camadas sucessivas do hambúrguer, a carne é fantasiada. As camadas e as opções de coberturas, molhos e ingredientes intermediários não a valorizam, mas só a escondem ainda mais.
As cores da carne, que normalmente desempenham um papel fundamental – fala-se, por exemplo, de “carne branca” e de “carne vermelha” – são mais uma vez eliminadas, escamoteadas. A rede McDonald?s (assim como seus concorrentes) eufemizou, portanto, e tornou asséptico um universo por natureza trágico e violento, até o infantilizar, emascular. Nos restaurantes fast-food, a ação de comer não é o prazer de comer, se é que se pode dizer4 …
Os restaurantes fast-food levaram ao paroxismo essa relação com a carne que, de ambígua, se tornou esquizóide: a realidade deixa de ser realidade
Num texto famoso, Roland Barthes descrevia o bife em termos dramatúrgicos: “O bife participa da mesma mitologia sangüínea que o vinho. É o âmago da carne, é a carne em estado puro, e quem quer que coma dela, assimila a força taurina5 .” E a carne de açougue conserva vestígios dessa característica viril e poderosa. Cada peça é única, em forma, tamanho e peso. É o produto de uma relação personalizada entre o animal, o açougueiro e o freguês. Temperada com pimenta e mostarda, coadjuvantes de seu poder intrínseco, essa carne mal passada contém e revela uma dimensão trágica. Não é um fato, por exemplo, que a comemos com armas disfarçadas, esse garfo e essa faca que trazem, junto com sua foram, a nostalgia das armas que foram em outras épocas e continuam sendo?
Adaptação a valores e representações
Ora, nos fast-food, passa-se do trágico ao lúdico, de um universo viril a um outro, pueril e regressivo. Nesse ambiente, o global substitui o local, o uniformizado substitui o personalizado, o adocicado substitui o salgado. Gisèle Harrus-Révidi, que, no livro Psychanalyse de la gourmandise (“Psicanálise da gula”) faz uma leitura perspicaz do hambúrguer, afirma que o que se come nos fast-food “não é nem comida familiar, nem comida extra-familiar. Trata-se de um produto intermediário que não provém de dentro, nem do mundo externo. O hambúrguer e as batatas fritas não são carne nem legumes, são McDonald?s6 “.
Em escala mais ampla, as representações reunidas pelos fast-food se inserem numa tendência extensa e profunda de importação, também ela norte-americana, e cujos efeitos se fazem sentir a todos os níveis da sociedade: trata-se do “politicamente correto”. Temos um alimento e uma carne readaptados por lítotes e traduções para não chocar ninguém, edulcorados, ao mesmo tempo consensuais, moles, suaves e adocicados, uniformizados e intercambiáveis, para agradar ao que se pensa ser o desejo “das massas” consumidoras7 .
A rede McDonald?s (assim como seus concorrentes) eufemizou e tornou asséptico um universo por natureza trágico e violento, até o infantilizar, emascular
Ora, dar outro nome à realidade, mudar o sentido dos termos, romper essa adequação básica e convencional que assegura o equilíbrio das palavras e das coisas, quando a operação não tem o nome de poesia, não seria a instauração de uma forma de arbitrariedade? Não seria, sobretudo, o primeiro reflexo dos totalitarismos, dos quais os golpes de Estado são primeiramente semânticos, e que sempre dão novos nomes, a fim de tornar a realidade mais de acordo com uma nova visão do mundo, a que lhes é própria…? Um dos (maus) hábitos dos fast-food consiste, precisamente, em dar novos nomes às coisas, a fim de adaptá-las a seus sistemas de valores e de representações, por uma série de eufemismos ou de perífrases… O caso das french fries, expostas à execração pública, que tiveram o nome trocado e foram rebatizadas de freedom fries do outro lado do Atlântico, no auge do braço-de-ferro diplomático franco-norte-americano em relação à intervenção no Iraque, é menos secundário do que parece. Para além do patriotismo vil, trata-se da expressão de uma violência simbólica igual à que consistia, na mesma época, em despejar vinhos franceses nas sarjetas, diante de câmeras encantadas com esses autos-de-fé alimentares.
Um mundo sem alegria, asséptico e uniformizado
Já que o vínculo social está em crise, é preciso lembrar que a “comensalidade” – o fato de “partilhar sua refeição”, de “comer junto” – provém de uma simbolização, portanto de um certo distanciamento das instâncias fisiológicas em prol de uma causa superior, a cultura. Aprender a “comer com”, a “comer junto”, é aprender a viver em sociedade: respeitam-se regras, ritos e ritmos, refreiam-se as pulsões, dá-se antes de receber, apreciam-se os mil detalhes das artes da mesa ao mesmo tempo em que os convivas, celebram-se valores ao produzir um vínculo social. Nesse sentido, os fast-foods agem a favor de uma preocupante degenerescência do princípio de convivialidade e as convenções de educação individual e social a que esta última corresponde. No final de uma regressão generalizada, todo mundo come a mesma coisa, com a mão, freqüentemente de pé, a qualquer hora. A relação com a alimentação é compulsiva e instintiva. As regras fisiológicas e sociais primárias, e o simples bom senso dietético – invocar o bom gosto pareceria retrógrado ou elitista – são ostensivamente desprezados.
Um dos (maus) hábitos dos fast-food consiste, precisamente, em dar novos nomes às coisas, para adaptá-las a seus sistemas de valores e de representações
A publicidade dos restaurantes fast-food menciona o prazer, a família, a convivialidade, um paraíso social inigualável. Qualquer pessoa que lá tenha posto os pés somente uma vez, em plena lucidez, sabe que a realidade é o oposto desse discurso apaziguador: encontra-se um mundo funcional e sem alegria, asséptico, uniformizado, triste e avesso ao social, iluminado como um hospital, em que vigias robotizados estão de plantão, como que para afugentar e conter a violência latente dos locais e do sistema… Finalmente, convém lembrar que a obsessão com a higiene dos fast-food, e a invocação encantatória de um universo de trabalho e de consumo pacificado e lúdico, abarcam uma parte não acessível ao público que nada tem de um paraíso, devidamente enunciado e denunciado por numerosas pesquisas jornalísticas e sociológicas, e jurisprudências8 .
Assim é, portanto, o mundo dos fast-food… Um universo padronizado e sem alegria, posto avançado do taylorismo aplicado ao agroalimentar, no qual são servidos esses “OCNI” – Objetos Comestíveis Não Identificados – que Claude Fischler9 evoca, num ambiente à la Nietzsche, o de Crepúsculo dos deuses. A metáfora, é claro, tem seus limites… No entanto, parece que se abrem horizontes alimentares bem pouco alegres…
(Trad.: Regina Salgado Campos)
1 – “Le mangeur et l?animal”, Autrement, Paris, nº 172, junho de 1997, p. 145.
2 – Na França, o setor de miúdos, que mostra ostensivamente os animais (cabeças, pés, orelhas, bucho…) está quase acabando tanto em razão da falta de procura generalizada dos consumidores, como por causa de diversas orientações européias. Do ponto de vista antropológico, isto é mais sintomático do que acidental.
3 – A generalização da presença do ketchup nas mesas francesas, e sobretudo nas cantinas das escolas, é quase contemporânea à chegada dos fast-food.
4 – N.T.: No texto, o autor faz um trocadilho entre bouche rit (“a boca que ri”) e boucherie (“açougue”). Na íntegra, a frase é: “Dans les fast-food, la ?bouche rit?, si l?on peut dire, mais ce n?est plus de la même dont on parle…”
5 – Ler, de Roland Barthes, Mythologies, ed. Seuil, Paris, 1957, p. 77.
6 – Ler, de Gisèle Harrus-Révidi, Psychanalyse de la gourmandise, ed. Odile Jacob, Paris.
7 – Com a normalização alimentar programada pelos fast-food, volta cinicamente a circular uma frase espirituosa, mui