As origens das controvérsias sobre o laicismo
A nomeação, pelo presidente Chirac, de uma comissão para refletir sobre o laicismo na República, no momento em que a Assembléia Nacional examina o uso de signos religiosos na escola, ilustra o vigor do debate que percorre a sociedade francesaAlain Gresh
“A Separação? Você está brincando. Serão necessários 20 anos ainda”. Paris, primavera de 1903; a Câmara dos Deputados acabava de eleger uma comissão encarregada de propor uma lei sobre a separação das Igrejas e do Estado. No entanto, Emile Combes, presidente do Conselho, expressava suas dúvidas. Durante a Terceira República, uma comissão não seria o melhor meio de se enterrar um problema? Não dessa vez porque, dois anos mais tarde, no dia 9 de dezembro de 1905, a Lei da Separação seria promulgada. Um século depois, quem se lembrará das condições em que o laicismo se impôs na França?
Depois do desmoronamento do Império de Napoleão III em 1870, do esmagamento da Comuna de Paris e dos fracassos das tentativas de restauração da monarquia, uma maioria republicana instalava-se no comando em 1879. Isso iria permitir a adoção de uma série de medidas em favor da laicização: supressão do descanso dominical obrigatório (1879), luta contra as congregações religiosas e secularização dos cemitérios (1881), autorização do divórcio (1884) e, principalmente, a extensão do ensino público conduzida por Jules Ferry. Em 1882, a escola primária tornava-se gratuita e a instrução obrigatória, ao passo que o ensino religioso era proibido nos estabelecimentos primários do Estado e, em 1886, o ensino era confiado unicamente a um quadro de pessoal leigo.
Laicismo como palavra de ordem
Uma maioria republicana instalou-se no comando em 1879, permitindo a adoção de uma série de medidas em favor da laicização
Como salienta Alain Boyer, “o laicismo tornou-se uma palavra de ordem que só pode ser entendida em oposição ao clericalismo triunfante no século 19, quando a Igreja […] tentou dirigir os Estados e impor uma política cristã” 1. Para a maioria republicana, não se tratava de esmagar as religiões e, sim, de limitar o poder da Igreja Católica, aliada dos realistas, apoiando-se, quando necessário, em outras confissões religiosas, especialmente nos protestantes…
Essa estratégia republicana se fez acompanhar da vontade de evitar uma guerra civil, de incentivar a evolução das mentalidades mais do que o rigor da lei, como demonstra a célebre “questão dos crucifixos”. Teria sido necessário retirar esses símbolos religiosos das escolas públicas no início do ano letivo de 1882? As circulares ministeriais convocaram a aplicar a lei “no espírito em que foi votada, no espírito das declarações reiteradas do governo, não como uma lei de combate da qual é necessário retirar violentamente o sucesso, mas como uma das grandes leis orgânicas que são destinadas a viver com o país, a se incorporar aos costumes e a fazer parte de seu patrimônio”. Ainda se encontravam crucifixos nas escolas públicas após a II Guerra Mundial…
“Católicos do sufrágio universal”
Efetuada a laicização do ensino, teria sido necessário caminhar para a separação das Igrejas e do Estado, a qual todos os partidos republicanos, dos radicais aos socialistas, haviam colocado no centro de seu programa? Os republicanos hesitavam, visto que um novo papa, Leão XIII, eleito em 1878, assumia uma atitude conciliadora em relação ao regime republicano. Ela se concretizou, em fevereiro de 1892, através da encíclica Au milieu des sollicitudes (Em meio às solicitudes) que suscitou intensa oposição na direita católica francesa. Entretanto, o texto de Leão XIII traduzia a evolução de uma parte do eleitorado – aqueles que Emile Littré chama de “os católicos do sufrágio universal” – e o desejo de alguns católicos e monarquistas moderados de unirem seus esforços aos republicanos moderados para combater o novo perigo – o socialismo.
Para a maioria republicana, não se tratava de esmagar as religiões e, sim, de limitar o poder da Igreja Católica, aliada dos realistas
Mas ainda era cedo demais para superar o abismo que dividia “as duas Franças”. Dois fatores iriam contribuir para o endurecimento das posições: a renovação das congregações religiosas, particularmente as femininas2, devotadas a um “soberano estrangeiro”, o papa; e o processo Dreyfus, que foi acompanhado por uma ofensiva contra a República, propagada principalmente pelos padres assuncionistas, através de La Croix, jornal que se declarava, na época, “o mais antijudeu da França”.
Avalanche republicana
As eleições de 1902 confirmaram e ampliaram a maioria de que dispunham os republicanos – embora, no primeiro turno, só 200 mil votos separassem os dois blocos. Os candidatos mobilizaram-se quanto à questão do futuro das ordens religiosas, mas evitaram o debate sobre a Separação. Dominado pelos radicais, o bloco republicano elegeu 368 candidatos – dos quais 48 socialistas – e a oposição, 230. Emile Combes, um franco-maçom, tornou-se chefe do governo. Este ex-seminarista, “o padrezinho Combes”, conhecido por suas posições anticlericais, não disse uma palavra a respeito da Separação em seu discurso de posse. Em contrapartida, começou uma luta implacável contra as congregações, distorcendo, se necessário, o espírito da Lei de 1901 sobre as associações. Mandou indeferir os pedidos de autorização da grande maioria das congregações, fechou suas escolas e acabou proibindo os membros das congregações de ensinarem (inclusive na rede privada), o que levou muitos deles a se exilarem.
A Concordata
Os republicanos hesitavam, visto que um novo papa, Leão XIII, eleito em 1878, assumia uma atitude conciliadora em relação ao regime republicano
Quando a Câmara dos Deputados decidiu, na primavera de 1903, criar uma comissão sobre a Separação, Emile Combes, como se viu, não escondeu seu ceticismo. Não se tratava apenas de oportunismo ou de medo de lançar o país numa guerra civil. O status quo oferecia muitas vantagens às quais, para uma parte dos republicanos, era difícil renunciar.
A Concordata, assinada entre a Santa Sé e a França em 15 de julho de 1801, por iniciativa do primeiro cônsul Bonaparte, definia as relações entre a Igreja Católica unida sob o controle do papa – a Igreja constitucional, nascida da Revolução, estava dissolvida – e a República. “O governo da República”, afirmava o texto, “reconhece que a religião católica, apostólica e romana é a religião da grande maioria dos cidadãos franceses”. Este “reconhecimento” marcava um avanço importante, ratificado pelo papa: o catolicismo não era mais a religião de Estado.
Tutela do Estado e do Vaticano
Por ocasião do debate sobre a Separação, em 1905, o abade Gayraud, que desejava a abertura de uma nova negociação com a Santa Sé, explicou à Câmara que continuava partidário da “união entre a sociedade civil e a sociedade religiosa”. E criticou a Concordata, em que “a Igreja é reconhecida não como a verdadeira religião – o que, a nosso ver, ela é – mas simplesmente como a religião da maioria dos franceses.”
A Concordata só foi promulgada no dia 8 de abril de 1802. Nesse ínterim, Bonaparte mandara seu assessor Jean-Etienne Portalis redigir os artigos orgânicos. Estes, que eram ao todo 77, seriam publicados sem consultar Roma. A França implantava um sistema muito eficaz de controle policial da Igreja Católica e, mais amplamente, dos cultos reconhecidos. Desse modo, nenhum concílio católico nacional poderia reunir-se sem consentimento do governo; os bispos deveriam residir em suas dioceses, de onde só poderiam sair com a permissão do primeiro cônsul; o artigo 39 impunha até que não havia “senão uma liturgia e um catecismo para todas as igrejas católicas da França” etc. Julien de Narfon, cronista católico liberal, explicava, no momento do debate sobre a Separação, que a Concordata havia reforçado a submissão da Igreja da França a uma dupla tutela, a do Estado e a do Vaticano.
Conflitos com o Vaticano
O processo Dreyfus foi acompanhado por uma ofensiva contra a República propagada principalmente pelos padres assuncionistas, através do jornal Croix
Renunciar à Concordata e, portanto, aos artigos orgânicos, não significaria abandonar o controle do Estado sobre a Igreja? Os radicais hesitavam. Alguns conflitos com o Vaticano é que iriam abalar “a paz concordatária” e forçar a maioria republicana à Separação. Julien de Narfon iria lembrá-los: “O primeiro foi provocado pelo protesto de Pio X contra a viagem de Loubet [presidente da República] a Roma; o segundo, pela demissão – imposta pelo papa – dos bispos de Dijon e de Laval. Um desembocou numa semi-ruptura; o outro, na ruptura completa das relações entre a França e o Vaticano.”
Quanto à primeira questão, o papa queria afirmar que continuava sendo um soberano temporal e que não reconhecia a anexação de Roma à Itália. Uma nota confidencial, transmitida pela Santa Sé a todos os governos, seria divulgada por L?Humanité que a recebera? do príncipe de Mônaco. Esta ingerência nos assuntos da República provocou um escândalo na Câmara que, por ampla maioria – 427 votos contra 96 – aprovou a convocação do embaixador francês junto ao papa.
A segunda questão teria conseqüências mais graves. Roma fazia pressões para obter a demissão de dois bispos franceses acusados por seus fiéis e pelo clero, provavelmente por sua tendência republicana. Todo o equilíbrio complexo de “nomeação” dos bispos é que era atacado3. No dia 30 de julho de 1904, o governo francês divulgou a decisão de romper as relações diplomáticas com a Santa Sé. A Concordata, a partir de então, tornava-se sem efeito…
Projeto polêmico
As eleições de 1902, elegeram 368 candidatos do bloco republicano – dos quais 48 socialistas – e a oposição, 230
Em seu famoso discurso de Auxerre, de setembro de 1904, Emile Combes aderiu à abolição da Concordata. Porém, considerado suspeito numa questão de cadastramento de oficiais, foi forçado a renunciar no dia 14 de janeiro de 1905. Foi substituído por Maurice Rouvier, um concordatário convicto; seria ele, no entanto, quem iria presidir a Separação. Nesse meio-tempo, Emile Combes apresentou, no dia 10 de novembro de 1904, um projeto de lei que suscitou grandes divergências, mesmo entre os protestantes, até então amigos e aliados dos republicanos.
Contestavam principalmente o artigo 8 que proibia as associações formadas para o exercício do culto de se unirem fora dos limites do departamento, uma cláusula que visava antes de tudo à Igreja Católica e que era uma ingerência na organização das outras Igrejas. Contestavam também o artigo 3, que previa que os bens móveis ou imóveis destinados aos cultos anteriormente reconhecidos fossem concedidos “por um período de dez anos”, o que deixou pairar entre muitos católicos a idéia de que sua gestão poderia ser retirada depois disso… De fato, o projeto Combes refletia uma filosofia que visava não só a separar a Igreja do Estado, mas a quebrar a Igreja Católica, a subvertê-la do interior, ao mesmo tempo em que mantinha o controle do Estado.
Separação e liberdade de culto
Como resumiria o pastor Louis Lafon, diretor da publicação La Vie nouvelle: “Há duas maneiras de se fazer a separação, ou melhor, ao fazê-la, pode-se ter dois objetivos diferentes: querer laicizar o Estado ou querer destruir a religião […]. A religião é questão de consciência, uma questão da consciência individual. O Estado não tem senão que se abster completamente de qualquer participação e ação no domínio religioso e, em contrapartida, tem o direito e o dever de exigir das Igrejas que não se metam a querer dominá-lo, a querer modelá-lo à sua vontade. Penso que nesta avaliação do papel do Estado em relação às igrejas, comungo com as idéias de todos os democratas e de um grande número dos próprios livres-pensadores. Mas há outros que sonham em destruir através da lei qualquer igreja e qualquer religião. Eles alimentam o sonho criminoso e insensato de todos os déspotas que, desde sempre, quiseram reinar sobre a consciência humana e imaginaram que se tornariam seus senhores pela violência […]. A liberdade de associação deve ser completa para os católicos, para os protestantes, para os judeus, assim como para os livres-pensadores e os franco-maçons. O artigo 8, já muito enfraquecido, deve ser completamente eliminado.”
Seria eliminado. Se a memória coletiva associou o “padrezinho Combes” à Separação, nada estava mais longe da verdade. Sob a influência do socialista Aristide Briand, relator da comissão e aconselhado pelo tribuno Jean Jaurès, o que iria delinear-se era um compromisso que assegurava, ao mesmo tempo, a Separação e a liberdade das Igrejas de se organizarem como achassem melhor.
Igrejas juridicamente iguais
Há duas maneiras de se fazer a separação, ou melhor, ao fazê-la, pode-se ter dois objetivos diferentes: querer laicizar o Estado ou querer destruir a religião
Dois artigos abriam a Lei de 1905. Artigo 1º: “A República assegura a liberdade de consciência. Ela garante o livre exercício dos cultos, sob as únicas restrições abaixo editadas no interesse da ordem pública”. Artigo 2º: “A República não reconhece, não paga salário nem subvenciona nenhum culto. […] Poderão, todavia, ser inscritas nos ditos orçamentos [do Estado, dos departamentos e dos municípios] as despesas relativas a exercícios de capelania e destinadas a assegurar o livre exercício dos cultos nos estabelecimentos públicos, tais como liceus, colégios, escolas, hospícios, asilos e prisões.”
Duas observações se impõem. Em primeiro lugar, sobre o termo “reconhecimento”. “Ele não significa absolutamente”, esclarece Jean Boussinesq, “que o Estado negue a existência de direito (privado) das Igrejas como corpos constituídos. Deve ser entendido como se referindo à situação anterior em que havia na França quatro cultos “reconhecidos” (católico, luterano, reformado e israelita). […] O artigo 2 significa, pois, que não há mais Igreja privilegiada em direito e que, por conseqüência, todas as Igrejas (atuais e as que vierem) são juridicamente iguais4.” Assim, não mais seria possível, contrariamente a situações anteriores, que bispos tomassem assento por direito no Senado ou nos conselhos de instrução pública. Em contrapartida, algumas dezenas de anos mais tarde, o Estado poderia, sem transgredir a lei e sem chocar as mentes, nomear para comissões de reflexão – como aquela sobre a ética – personalidades cujo vínculo religioso fosse conhecido e manifesto?
As disputas pelas associações de culto
De outro lado, o Estado punha à disposição das Igrejas, e principalmente da Igreja Católica, um imenso parque imobiliário que seria, ademais, mantido por ele: o mínimo que se pode dizer é que isto representava uma ajuda direta aos cultos… Ao longo das décadas seguintes, outras modalidades seriam implantadas e reforçariam essas subvenções. No início da década de 20, os poderes públicos financiariam a construção da mesquita de Paris. Relator do projeto de lei na Câmara, Edouard Herriot, leigo inconteste, explicaria: “Nós não violamos a Lei de 1905, pois fazemos agora pelos muçulmanos o que se fez, em 1905, pelos protestantes ou pelos católicos.”
Aprovados os dois primeiros artigos, o debate parlamentar concentrou-se nas associações de culto. O artigo 4° previa que todos os estabelecimentos públicos de culto seriam transferidos a associações “que legalmente tiverem sido formadas para o exercício do culto”. Porém, quem decidiria se essas associações estavam realmente habilitadas? Que aconteceria se houvesse competição entre duas associações? A questão preocupava a Igreja Católica, principalmente porque, entre os radicais, muitos pensavam que a ocasião era muito favorável para subverter a Igreja a partir de seu interior. A desconfiança era tal que alguns católicos suspeitavam que os franco-maçons queriam se infiltrar nessas associações para afastá-las do controle dos bispos.
O papel dos socialistas
Para os socialistas, o problema das relações entre a Igreja e o Estado tinha que ser resolvido para que a democracia pudesse se dedicar à reforma social
Cada lado atribuía ao outro as piores intenções. Entre os republicanos, também entraram em choque diferentes filosofias do laicismo. O relator da comissão, Aristide Briand, apoiado por Jean Jaurès, esclareceu a sua. O projeto da comissão, explicou, “não é uma obra de paixão, de represálias, de ódio, mas, sim, de razão, de justiça e de prudência combinadas […]. Nele se procuraria em vão o menor vestígio de segundas intenções de perseguição contra a religião católica”. Foi por isso que propôs que se acrescentasse um trecho ao artigo 4: as associações cultuais deverão adequar-se “às regras de organização geral do culto, cujo exercício elas se propõem a assegurar”. Em outros termos, uma associação criada para o culto católico deveria reconhecer as regras internas da Igreja Católica, particularmente a primazia do papa. E, se houvesse conflito, este seria resolvido por tribunais civis5… Houve protestos no campo republicano (leia nesta edição, de Alain Gresh, “Um artigo muito controverso”). Finalmente, posta em votação nesse mesmo dia, a emenda propondo suprimir o acréscimo feito pela comissão foi rejeitada por 374 votos contra e 200 a favor. A Separação estava feita, diria Jaurès?
Por que os socialistas pressionavam no sentido de um acordo? Jean Jaurès já havia confessado em um artigo no jornal La Dépêche, no dia 15 de agosto de 1904: “Já está na hora deste grande, mas obcecante, problema das relações entre a Igreja e o Estado ser enfim resolvido para que a democracia possa se dedicar inteiramente à obra imensa e difícil de reforma social e de solidariedade humana que o proletariado exige.” Era necessário acalmar a questão religiosa para colocar em discussão a questão social, a das grandes reformas, as quais os radicais e os republicanos gostariam de adiar: impostos sobre a renda ou aposentadorias operárias…
Confronto entre “duas Franças”
Dessa lei de 1905, do apaixonante debate na Câmara e no Senado – cuja qualidade leva a rever um certo número de juízos sumários sobre a Terceira República -, a memória coletiva guardou algumas imagens fluidas, especialmente aquela de um confronto entre “duas Franças”, cujo “drama dos inventários” teria constituído um dos pontos de apogeu: policiais forçando a porta das Igrejas.
No início, uma emenda anódina da lei, indispensável: dado que havia uma transferência de bens para as novas associações de culto, era necessário fazer o inventário deles. Porém, numa norma administrativa, introduzia-se uma pequena frase que exigia dos párocos, para que os inventários fossem globais, “a abertura dos sacrários”, o Santo dos santos, o local em que se deposita o cibório. Os nacionalistas, particularmente os da Ação Francesa, é que desempenhariam um papel essencial na “resistência” às intervenções da polícia. Seriam revezados, em alguns departamentos, por populações inquietas e desinformadas, traumatizadas pelas lutas do padre Combes contra as congregações. O número de incidentes graves se tornaria mais limitado à medida que, desde o dia 16 de março, uma circular confidencial mandava suspender os inventários nos locais em que se organizava a resistência. Em maio de 1906, 93% dos inventários estariam concluídos, mas a França guardaria a lembrança de certos “abusos”.
A intransigência da Santa Sé
Seriam algumas dezenas de moças que usam véu nos estabelecimentos escolares uma ameaça ao pacto republicano?
Aumentado pela imprensa católica e pelos boatos, o relato das resistências estimularia a Santa Sé à intransigência, principalmente porque um papa intratável, Pio X, havia substituído Leão XIII que falecera no dia 20 de julho de 1903. O novo papa temia que a Separação afetasse seu prestígio e servisse de “mau exemplo” em outros lugares, de modo especial na Espanha. Numa primeira encíclica, Vehementer nos, datada de 11 de fevereiro de 1906, ele condenaria o princípio mesmo da Separação, deploraria a abolição unilateral da Concordata e o ataque através da lei de um preceito, segundo ele, fundamental da Igreja que era “por essência, uma sociedade desigual, isto é, uma sociedade compreendendo duas categorias de pessoas, os pastores e o rebanho”. No dia 10 de agosto de 1906, na encíclica Gravissimo officii, é que o papa ordenaria aos católicos franceses, mais favoráveis a um compromisso quanto a esse ponto, que não criassem associações cultuais.
Esta obstrução poderia ter levado o governo a aplicar a lei em todo o seu rigor, a se aproveitar dela para desferir novos golpes contra a Igreja Católica. Não ocorreu nada disso. Ele aplicou disposições transitórias visando a assegurar que a gestão dos locais de culto católicos fosse deixada provisoriamente aos padres deles encarregados. Somente em 1924 é que o papa Pio XI, na encíclica Maximam gravissimamque, autorizaria a formação de associações cultuais. E ainda seriam necessários mais de vinte anos para que a Igreja aderisse ao laicismo.
Procissões proibidas
“A França é uma república indivisível, laica, democrática e social” proclama o artigo 1° da Constituição de 1946, votada pelos comunistas e socialistas, mas também pelos democrata-cristãos (MRP), o que é muito significativo a respeito das evoluções. A República, enfim, triunfava. Soubera apostar na evolução das mentes, dar tempo ao tempo.
Em cada etapa, o Conselho de Estado, que teve que interpretar a Lei de 1905, o fez em um sentido liberal, garantindo o direito das Igrejas se organizarem como quisessem. Uma das primeiras complicações que a República teve de enfrentar foi a das procissões fora dos locais de culto. “Nada de desfiles religiosos no espaço público!”, clamariam inúmeros prefeitos. Entre 1906 e 1930, 139 portarias municipais baixadas nesse sentido foram objeto de recursos. Em 136 casos, as portarias foram anuladas…
Laicismo ameaçado?
Um século depois, o laicismo tornou-se um bem comum de crentes e de não crentes. Embora se fale dele freqüentemente sem discernimento. Quando afirma que as mulheres devem aparecer nas fotos de identidade com a cabeça descoberta, o ministro do Interior francês, Nicolas Sarkozy, coloca um problema de ordem pública, não de laicismo… Quando se evoca o caráter misto da escola, trata-se de igualdade entre rapazes e moças, não de laicismo – a escola laica adaptou-se, até o fim da década de 60, à separação dos sexos, e a República laica, durante décadas, adaptou-se à recusa do voto das mulheres…
É necessário lembrar que Jaurès tinha razão: a República francesa deve ser laica e social. Ela permanecerá laica por ter sabido permanecer social
Estaria o laicismo ameaçado na França de hoje? Seria necessária uma mobilização como em 1905? A influência das Igrejas perdeu força e nenhuma delas se aproxima, de perto ou de longe, do poder invasivo da Igreja Católica no início do século passado. Em compensação, refletindo sobre a fórmula “o clericalismo, eis o inimigo”, Jean Baubérot se pergunta: esta “permaneceu como uma bandeira para o laicismo militante. Mas o que são, hoje, os novos clérigos? Quais são os que constituem uma ameaça concreta à liberdade de pensar6?” Seriam prioritariamente as religiões organizadas ou seriam, antes, os “clericatos” do dinheiro ou os da mídia?
No início do século 20, a República teve que abrir frentes de trabalho enormes, da instauração do imposto sobre a renda às aposentadorias operárias. Jaurès havia compreendido que, para superar esses desafios, era preciso acalmar as querelas religiosas. Um século depois, a França se defronta com enormes angústias nascidas de um neoliberalismo que solapa os fundamentos do pacto republicano. Seriam algumas dezenas de moças que usam véu nos estabelecimentos escolares que ameaçariam tal pacto? Ou seriam as desigualdades, as discriminações, os guetos, o desemprego, todos esses elementos deixados no abandono e excluídos das “reformas”? Diante desses desvios, é necessário lembrar que Jaurès tinha razão: a República francesa deve ser laica e social. Ela permanecerá laica por ter sabido permanecer social?
(Trad.: Iraci D. Poleti)
Bibliografia
1 – Ler, de Alain Boyer, Le droit des religions en France, ed. PUF, Paris, 1993; e, de Jean Baubérot, Vers un nouveau pacte laïques?, ed. Le Seuil, Paris, 1990. Ler também, do mesmo autor, Histoire de la laïcité française, col. “Que sais-je?”, ed. PUF, 2000.
2 – Em um longo estudo sobre o desenvolvimento das congregações femininas religiosas no século XIX, Claude Langlois mostrou que haviam permitido que as mulheres, cuja inferioridade era afirmada pelo Código Civil, tivessem acesso a responsabilidades em matéria de educação e de tratamento hospitalar. Os meandros da história são, às vezes, surpreendentes… Vale meditar sobre isso quando se evoca a questão do véu. Ler, de Claude Langlois, Le catholicisme au féminin. Les Congrégations à
Alain Gresh é jornalista, do coletivo de redação de Le Monde Diplomatique (edição francesa).