As origens do “fenômeno Putin”
Presidente da Rússia há três anos, Vladimir Putin começou fazendo uma faxina: afastou as máfias corruptas e corruptoras da “era Yeltsin” e impôs a “ditadura da lei”. Depois, adotou os rigores de uma reforma neoliberal… e pôs no poder suas próprias máfiasCarine Clement
O poder russo tem motivos para se sentir vitorioso. Nas últimas pesquisas, Vladimir Putin obteve 83% de apoio a seu governo1. No entanto, excluindo os novos ricos, a dificuldade de levar uma vida digna é patente. Até quando continuará a letargia da sociedade? É claro que “na cozinha” – como se dizia nos tempos da União Soviética – há uma raiva explosiva. Mas como expressar a dor, que às vezes acontece, de ter perdido tudo? Hábito, desencanto, apatia… A recusa do político vem dos tempos do passado soviético. Mas as sucessivas desilusões com a “terapia de choque” reforçaram essa atitude. As crises e as guerras sucederam-se no pano de fundo de uma prostração social em que se afirma o “fenômeno Putin”.
O presidente usou admiravelmente a fibra patriótica, ferida pelo colapso da “pátria” soviética. Vangloria-se dos sinais de um retorno de seu país ao cenário internacional (a participação na luta contra o terrorismo internacional, a receita antecipada da dívida, reuniões de cúpula, a defesa dos interesses das grandes empresas russas…), mas um véu de silêncio encobre as condições em que isso se deu: reformas ultraliberais, cortes nas despesas sociais, aceitação de uma crescente influência norte-americana nas divisas da Rússia…
A “ditadura da lei”
Sua personalidade também pesa bastante, relativizando suas opiniões políticas. “Putin é muito charmoso, tem uma personalidade forte. Um homem e tanto”, declara uma ativista sindical, aliás, bastante crítica. A reação tradicional entre os russos é: quando se denuncia uma política com raiva, o homem que está no poder é absolvido – “com certeza, é mal informado, ou mal assessorado”.
No primeiro ato, tratou dos oligarcas, empresários influentes durante a era Yeltsin. Alexander Bykov, magnata do alumínio, mofa na cadeia desde 1999
Numa sociedade traumatizada, demolida, desencantada, empobrecida e em condições precárias, Putin tirou partido principalmente da aspiração popular ao ressurgimento de um Estado defensor dos interesses gerais, da segurança social e de uma “ditadura da lei” se impondo a uma economia criminosa e informal. No primeiro ato, tratou do poder dos oligarcas, esses empresários tão influentes durante a era Yeltsin. Afastados, Boris Berezovski e Vladimir Gussinski refugiaram-se no exterior – o primeiro, na Grã-Bretanha, o segundo, na Espanha. Mikhail Jivilo (metalurgia e alumínio) exilou-se na França. Outro magnata do alumínio, Alexander Bykov, está mofando na cadeia desde outubro de 1999. Os russos têm gratidão para com seu presidente por ter posto um limite aos apetites políticos dos oligarcas, garantindo, dessa maneira, maior autonomia por parte do poder em relação ao grande empresariado. No entanto, por ocasião da privatização da empresa petrolífera Slavnet, em meados de dezembro de 2002, as ações foram cedidas por uma quantia apenas ligeiramente superior à do primeiro lance…
A clientela do Kremlin
Se Putin rearrumou o mundo dos negócios foi, principalmente, para colocá-lo nas mãos de pessoas de sua confiança. O “time de São Petersburgo” (cidade natal do presidente) e os “representantes dos serviços especiais” (aos quais ele pertenceu) apoderaram-se das alavancas da economia, por meio da gigantesca empresa de gás Gazprom, assim como das empresas nacionais de ferrovias e de eletricidade. E das telecomunicações: “Os homens de São Petersburgo”, confirma um ex-executivo do setor, “substituíram todos os antigos diretores, colocando, em seu lugar, gente vinda de fora e inteiramente incompetente.” Também dos grandes grupos privados, o poder exige a fidelidade dos diretores: os oligarcas rebeldes não foram afastados devido a sua responsabilidade na depredação da economia, mas ao tom demasiado crítico de suas emissoras de televisão para com o presidente. Atualmente, nenhum empresário perde a oportunidade de reafirmar seu apoio à política presidencial.
O Conselho de Empresas – criado em agosto de 2000 e que assessora o governo federal – é composto pelos dirigentes dos principais grupos econômicos. Além disso, os principais empresários foram guindados para o sindicato patronal russo: a União dos Industriais e Empresários da Rússia. Embora mais institucionalizadas, as relações entre os empresários e os dirigentes do Kremlin não deixam de conservar um caráter clientelista. Mas é o poder presidencial que dá o tom: “A época dos oligarcas terminou e deu lugar a um período de ?recursos administrativos?2.”
O Código do Trabalho do FMI
O “time de São Petersburgo” (cidade natal de Putin) e os “representantes dos serviços especiais” (aos quais pertenceu) tomaram as rédeas da economia
Na opinião do economista Anton Oleynik, a fusão dos poderes político e econômico nunca foi tão forte e “ela se verifica mesmo no patamar mais baixo do sistema, nos níveis regional e municipal”. Os governadores perderam, logicamente, a imunidade parlamentar vinculada a seu antigo status de membros de direito do Soviete da Federação – vários deles renunciaram por pressão do Kremlin. Portanto, foi o poder do presidente que se consolidou, e não a função de coesão social do Estado. Aliás, os responsáveis pelas sete novas regiões administrativas são chamados “representantes do presidente”. E a transferência de recursos das regiões para o centro3 empobrece essas regiões que, no entanto, vêm enfrentando despesas cada vez maiores.
Mas a própria nova onda de reformas ultraliberais se apóia nas expectativas populares. É “necessária”, insistem os meios de comunicação, para sair do “caos” da era Yeltsin: “Nada funciona, sumiu tudo daqui!” Prevalece, evidentemente, a ausência de soluções alternativas de credibilidade: “Convenhamos, não se trata de voltarmos ao sistema soviético!” De qualquer maneira, a maioria da população já se habituou há bastante tempo a procurar alternativas fora da lei, na arte de “se virar”.
Fevereiro de 2002: entra em vigor o novo Código do Trabalho, exigido pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Reforça os direitos do empregador em detrimento daqueles dos empregados e dos sindicatos: as relações de trabalho passam a ser exclusivamente por meio de contratos, incentivam-se os contratos de trabalho temporário, simplifica-se o processo de demissões, prolonga-se a jornada legal de trabalho, questionam-se os direitos das mulheres, restringem-se, de forma draconiana, os direitos dos sindicatos – especialmente dos minoritários, que são os mais atuantes. E, com exceção dos sindicatos independentes, a população fica passiva. Igor, operário de uma fábrica de rolamentos da região de Volgograd, observa: “As leis são todas somente papel. Na prática, é sempre a direção que tem a última palavra…”
Um poço de desigualdades
O Conselho de Empresas – criado em agosto de 2000 e que assessora o governo federal – é composto pelos dirigentes dos principais grupos econômicos
Outro presente aos empresários: a criação de um Imposto de Renda unificado, fixado em 13% a partir de 2001, ou seja, 1% a mais que o mínimo obrigatório até então, enquanto o imposto sobre os lucros baixava de 35% para 24% em 2002! Na primavera de 2000, os encargos sociais das empresas em relação aos salários já haviam diminuído de 38,5% para 35%. Os russos não protestaram, preferindo acreditar numa retomada do crescimento econômico.
O presidente, consciente disso, faz da retomada do crescimento sua prioridade. Em meados de dezembro de 2002, numa resposta direta aos cidadãos, prometeu-lhes um aumento do poder aquisitivo. O crescimento ocorreu, de 1999 a 2001, evoluindo de 6% para 8% ao ano, num efeito paradoxal da crise do verão de 1998: a desvalorização do rublo e o retorno de um certo controle sobre as operações comerciais beneficiaram os produtos nacionais – assim como o aumento mundial do preço do petróleo. Mas o crescimento caiu 4% em 2002, assim como o Produto Interno Bruto (PIB) que correspondeu a 70% do de 1990. Por seu lado, o poder central não deu apoio aos investimentos na economia nacional4, enquanto a revalorização do rublo voltou a aumentar a dependência no setor de importações.
Depois de uma queda acentuada em 1998-1999, a renda real aumentou, a partir de então, devido ao crescimento. Mas os rendimentos do capital cresceram bem mais rapidamente que os salários reais, ainda abaixo de seu valor real no verão de 1998. Daí decorre um poço de desigualdades: oficialmente, 20% dos russos mais pobres dispõem de 6% da renda nacional e seus rendimentos são 15 vezes mais baixos que os dos 20% mais ricos. E 27% da população vive abaixo do limiar de pobreza (em caráter oficioso, são 40%). O governo empenhou-se em içar o salário mínimo para o nível do limiar de pobreza: até agora, corresponde apenas a 22%! Putin vangloria-se de ter posto fim aos salários atrasados, mas a dívida de salários voltou a aumentar. E a atual reforma do sistema de remuneração dos funcionários públicos prevê a transferência das obrigações de pagamento do centro para as regiões, que já estão com o pagamento atrasado.
A concentração da riqueza
A própria nova onda de reformas ultraliberais se apóia nas expectativas populares. É “necessária”, insiste a mídia, para sair do “caos” da era Yeltsin
Para diagnosticar uma melhoria nas condições materiais dos russos é preciso ter bastante imaginação, morar em Moscou e ter um emprego nas altas esferas dos grandes grupos. Atualmente, o Estado social vem desaparecendo por completo, sob os escombros da União Soviética. O pagamento da dívida externa e a queda nos impostos ocorrem em detrimento dos salários dos servidores públicos e das despesas sociais. Estas últimas estão estagnadas desde 2000: correspondem a 2,7% do PIB (o equivalente ao serviço da dívida externa). A seguridade social derrete como neve ao sol. A aposentadoria média alcança apenas 20% do mínimo vital, o que “legitimou”, no verão de 2001, a adoção da aposentadoria por capitalização. As despesas com saúde do Estado correspondem a apenas 0,2% do PIB, embora os hospitais não tenham condições de comprar os medicamentos essenciais. Com o fim do fundo de emprego, o orçamento passou a fazer, de forma direta, irrisórios auxílios-desemprego. Quanto às empresas estatais que escaparam à privatização, obedecem à lógica da busca de lucros pessoais por parte de seus dirigentes.
Isso porque a concentração da riqueza, iniciada na era Yeltsin, continua, embora de maneira opaca. A União dos Industriais e Empresários da Rússia deteria o controle de três quartas partes da riqueza do país e quatro quintos de seu PIB5. Segundo o instituto Brunswick UBS Warburg, as oito principais empresas privadas dispõem de uma receita correspondente à metade do orçamento do Estado – percentual mais ou menos igual ao das principais empresas estatais6. Na indústria, as oito principais empresas produzem dois terços da produção nacional7.
Surgem os megagrupos
Exemplo disso é o grupo Gazprom, classificado em primeiro lugar das duzentas maiores empresas8. Com o monopólio da produção de gás, ele estende suas atividades em direção à química e ao petróleo (por meio da empresa Sibour), à metalurgia (Gazmetalla) e aos meios de comunicação (principalmente, a rede de televisão NTV). Mantém estreitos vínculos com a empresa petrolífera Rosneft e com a financeira Mezhprombank9. Apesar de sua natureza parcialmente estatal, o grupo obedece a uma lógica de rentabilidade privada a curto prazo: arrecada pouco para o Estado e nada investe. Os equipamentos envelhecem, a população sofre com o aumento do preço do gás e o Estado é sonegado por meio de um sistema de exportações que permite dissimular quantias importantes10.
O Imposto de Renda unificado foi fixado em 13% a partir de 2001 (aumento de 1%), enquanto o imposto sobre os lucros baixava de 35% para 24% em 2002!
A constituição de megagrupos dessa natureza corresponde a uma nova etapa de partilha da propriedade: o grande capital reforça seu controle sobre a indústria por meio de acionistas de origens variadas, dificilmente localizáveis por trás de empresas de fachada. Acionistas externos compram as empresas, seja graças a recursos administrativos, seja levando à falência empresas das quais assumem posteriormente as dívidas. As principais empresas de petróleo da Rússia (Loukoil, Ioukos, Sibneft e TNK) chegaram a um acordo para comprar a estatal Slavnet e assinaram, no final de novembro de 2002, um acordo prevendo a construção em comum de um oleoduto ligando a Sibéria ocidental ao porto de Murmansk.
A lógica da rentabilidade
O que na França se chama de “serviço público” também não escapa à retomada das privatizações. Não só as telecomunicações foram amplamente privatizadas, como também a principal empresa de telefonia, Sviazinvest (da qual o Estado ainda detém 75%) foi obrigada a conceder maior autonomia às suas filiais regionais, preparando, dessa maneira, sua privatização. Além disso, a Duma ratificou, no outono de 2002, a reestruturação da energia, transformando as empresas locais em firmas autônomas, abertas à privatização – apenas os cabos continuarão sendo propriedade do Estado. Longe do modelo da anunciada concorrência, a reforma corre o risco de assumir a forma de uma alta de preços premeditada.
A empresa Sistemas Energéticos Unificados (ROA EES, em russo), que detém o controle acionário de quase todas as empresas regionais de eletricidade, é dirigida com mão de ferro por Anatoli Tchubais. Essa holding, da qual o Estado possui um pouco mais da metade das ações, é composta por filiais, das quais 49% das ações pertencem quase sempre a empresas registradas em paraísos fiscais. Multiplicam-se os cortes de eletricidade – para obrigar os maus pagadores a porem em dia suas contas de energia elétrica – paralisando os transportes coletivos e deixando bairros inteiros no frio e no escuro.
A mesma lógica da rentabilidade orienta a reforma do transporte ferroviário: sua administração será entregue a várias empresas privadas – que, teoricamente, fariam uma concorrência entre si – e o Estado ficará apenas com a função de fiscalização e com a propriedade das principais infra-estruturas. A privatização já se traduziu na terceirização de obras através de contratos com firmas pertencentes a funcionários graduados. Significará uma alta no preço da passagem (que já teve um aumento de mais de 50% em janeiro de 2001) e uma degradação dos serviços, decorrente da redução da mão-de-obra e das despesas com equipamento: 35% dos empregados serão demitidos.
O poder não se questiona
Oficialmente, 20% dos russos mais pobres dispõem de 6% da renda nacional e seus rendimentos são 15 vezes mais baixos que os dos 20% mais ricos
Finalmente, a última pedra do edifício: a reforma do sistema de gestão da habitação em discussão na Duma. Na realidade, há uma holding estatal que regula as empresas locais de manutenção das moradias comunais, assim como o abastecimento de água, eletricidade, gás e aquecimento. É verdade que essas empresas, opacas e ineficientes, provocam um descontentamento real. Mas a “mudança” prevista consiste em impor aos moradores o pagamento de 100% dos encargos – muito altos -e cancelar os descontos aos mais pobres. Em Voronej, por exemplo, na primavera de 2000, a multiplicação por quatro das tarifas comunais provocou uma passeata de 20 mil pessoas – manifestação considerada enorme para a “tranqüila” Rússia…
Isso porque o “Estado”, a “lei”, a “ordem” – esses termos enfatizados pelo presidente Putin – são, aqui, os responsáveis por uma mudança no clima sócio-psicológico. A tomada de reféns em outubro de 2002 deixou claro como o poder sabe explorar essa retórica. Após o assalto lançado pelas forças especiais russas, o chefe do Kremlin anunciou uma “operação bem-sucedida” e afirmou sua determinação em não tolerar qualquer desafio à autoridade do Estado. Esquecem-se, assim, pelo menos 130 pessoas inocentes, que morreram, exterminadas, devido ao gás desconhecido utilizado durante o assalto, bem como os membros do comando checheno: quando o poder supremo é questionado, a vida humana não vale grande coisa. Perplexidade e mal-estar de um lado, diante da crueldade dos fatos, mas também, de outro, a impossibilidade de questionar o poder presidencial: “Putin não tinha escolha”, dizem os moscovitas. “Afinal, ele não podia aceitar negociar com os terroristas.”
Os FSB, paródia cruel da KGB
Mas a reticência em expressar abertamente o descontentamento também se explica pelo aumento de um sentimento um tanto esquecido dos tempos de Yeltsin: o medo. Porque, se as outras instituições do Estado vêm sendo demolidas, o aparelho repressivo aumenta de peso. Para se prevenir contra qualquer tipo de sobressalto social, o governo Putin fez votar uma série de leis com o objetivo de tornar mais difícil – e até ilegal – o surgimento de uma oposição. A nova lei sobre os partidos submete as organizações a condições draconianas para uma existência legal – ao menos para os menos afortunados, que não gozam da necessária proteção. Foi nesse espírito que a Duma aprovou, em julho de 2002 – a pretexto de combater os skinheads – uma lei sobre o “extremismo”, dando ainda mais poderes ao já bastante forte dispositivo de repressão. E a reforma da lei sobre estrangeiros (junho de 2002) torna a permanência legal na Rússia um pesadelo, jogando na ilegalidade uma massa de trabalhadores estrangeiros.
Para diagnosticar uma melhoria nas condições de vida, é preciso ter imaginação, morar em Moscou e ter um emprego nas altas esferas dos grandes grupos
Mas a sangrenta guerra contra a população chechena e a retórica “antiterrorista” são os dois principais temas que permitem ao presidente Putin afirmar-se como um líder com mão de ferro: contra qualquer veleidade independentista, mas também contra qualquer forma de contestação. A Chechênia dilacerada, por sua vez, também se torna um terreno ideal para atividades econômicas fraudulentas. São os serviços de Informações Especiais Russas (FSB) que atualmente se encarregam do comando das operações “antiterroristas”, demonstrando sua supremacia sobre o exército e a polícia. Em nome da “segurança do Estado”, soldados saqueiam milhares de civis chechenos, que são mantidos presos em campos de “triagem”. Mesmo em Moscou, a polícia achaca, e até prende, cidadãos estrangeiros (de preferência, de pele escura) ou russos que estejam passeando sem “registro” (autorização de viagem).
Quando o Parlamento vira um circo
Essa repressão não poupa a oposição social e política. São incontáveis as intervenções brutais das forças da ordem para “dispersar” comícios, detenções de rotina – o dia-a-dia de qualquer militante. Por outro lado, o aparelho do Estado não perturba as organizações de extrema-direita e os terroristas “wahhabitas” chechenos, salvo em alguns casos. Algumas más-línguas chegam a insinuar que estes últimos seriam incentivados por baixo dos panos11…
Quanto à justiça, garantia da aplicação das leis do Estado, continua corrupta e subserviente, principalmente nas regiões – a reforma da primavera de 2001, sob o pretexto de aumentar a competência dos juizes, restringiu sua independência em relação aos organismos políticos. As raras sentenças em que é dada razão a um queixoso contra uma “autoridade” quase nunca são aplicadas. Como falar em Estado de direito se o próprio Tribunal Constitucional comprovou inúmeras vezes sua fidelidade ao poder político, inclusive com a célebre resolução segundo a qual a guerra na Chechênia não feria o “direito do homem à vida”?
Aliás, quase todos os contrapoderes em potencial caem, uns após os outros, sob o controle do Kremlin. O poder legislativo é completamente subordinado ao presidente. O Conselho da Federação só tem representantes nomeados pelos poderes regionais, perdendo desse modo tanto legitimidade como independência. Quanto à Duma, vem se tornando um espaço de ratificação cartorial. Basta a maioria presidencial (“Rússia unida”) para a aprovação das leis ordinárias. Em caso de reforma constitucional, o governo põe em campo suas armas. Por ocasião da sessão de outubro de 2002, para conseguir a proibição de plebiscitos em datas próximas à eleição presidencial, os métodos do governo chegaram a chocar os deputados: a Duma se transformou num imenso circo e os emissários do governo presidencial sentavam-se junto a deputados recalcitrantes, ameaçando alguns, subornando outros e chantageando os restantes.
Controle absoluto sobre a mídia
O grande capital reforça o controle sobre a indústria por meio de acionistas de origens variadas, dificilmente localizáveis, detrás de empresas de fachada
No Parlamento, a oposição reduz-se ao Partido Comunista, de Gennadi Ziuganov, que o Kremlin permite que faça uma oposição de opereta, mas impedindo-o de qualquer possibilidade real de uma ação crítica. Em abril de 2002, fez com que os comunistas fossem afastados das várias comissões que detinham na Duma, de forma a acelerar a apreciação de projetos de lei liberais e apresentando o PC como vítima. Em outubro, fez com que fosse proibida a campanha comunista por um plebiscito, temendo que ela pudesse questionar sua popularidade – mas também criando, dessa maneira, uma oposição conveniente para as futuras eleições.
Quanto aos meios de comunicação, em sua maioria abocanhados por grandes grupos privados no final da era Yeltsin, tornaram-se dependentes do Kremlin. É esse o caso específico da televisão, principal fonte de informação da Rússia “do andar de baixo”. O pólo de informação pública foi bastante ampliado, com a rede estatal RTR, a rede cultural Kultura, a agência de notícias Novosti, várias estações de rádio, os jornais oficiais e ainda 92 empresas de televisão regionais. Com o afastamento de Boris Berezovski, o Estado recuperou o controle da rede de televisão ORT e um pool de banqueiros próximos ao governo do presidente Putin comprou a TVS (ex-TV6). As outras redes, pertencentes a grupos privados ou públicas, situam-se na esfera de influência do Kremlin: a Gazprom possui a NTV e o gigante da eletricidade RAO EES controla a Ren-TV. Quanto à rede TVTs, controlada pelo prefeito de Moscou, Iuri Lujkov, também se alinhou ao governo, assim como seu mentor.
Ministro das Comunicações, Mikhail Lesin administra tudo com mão de ferro – e também para seu benefício pessoal, pois permanece à frente da Vídeo International, fornecedor exclusivo dos comerciais de publicidade para a televisão sob controle do Estado. Para justificar os lucros que embolsa, zela pelo respeito e pela reputação do presidente e de suas posições. Os combatentes pela independência da Chechênia, os militantes de oposição e os ativistas do incipiente movimento antiglobalização não têm direito à palavra – são tratados pela imprensa como “terroristas” ou “espiões12“.
(Trad.: Jô Amado)
1 – Pesquisa do instituto VTsIOM, final de novembro de 2002.
2 – Vedomosti, Moscou, 29 de dezembro de 2000.
3 – A parcela de impostos retidos pelas regiões passou de 50% para 33%.
4 – O nível de investimento correspondeu a 10% daquele de 1990.
5 – Estimativa da publicação Literaturnaia Gazeta, Moscou, maio de 2002.
6 – Moskovskie Novosti, Moscou, 9 de agosto de 2002.
7 – Ler, de Alexander Dynkin, “Y a-t-il une chance pour la Russie dans l?économie mondiale?”, in Pro i Contra, primavera de 2002, p. 42-67.
8 – Ler Expert, Moscou, 7 de outubro de 2002.
9 – Segundo informações da publicação Politkom, Moscou, 15 de maio de 2002.
10 – Ler Vesti, Moscou, 25 de novembro de 2001.
11 – Sobre os supostos vínculos entre os FSB e os extremistas de direita, ler, de Oleg Roldugin, “De qui a peur le FSB?”, in Sobesednik, Moscou, 4 de junho de 2002; ou a entrevista do sociólogo Alexander Tarasov, no site kom.ru, 10 de junho de 2002, dizendo que o