As raízes do nacionalismo
O nacionalismo norte-americano sempre oscilou entre um pragmatismo brutal e um idealismo retórico. O que aconteceria se as pessoas levassem ao pé da letra o caráter progressista da Declaração da Independência?Normal Birnbaum
Quando Abraham Lincoln foi reeleito, em 1864, Karl Marx cumprimentou-o em nome da Associação Internacional dos Trabalhadores1. Charles Francis Adams, na época ministro do governo norte-americano, respondeu-lhe nos seguintes termos: “O governo dos Estados Unidos tem plena consciência de que sua política não é – e jamais deverá ser – reacionária. Devemos, no entanto, manter um princípio que sempre foi o nosso, ou seja, o de nos abstermos de qualquer tipo de propaganda ou de intervenções ilícitas no exterior. Nossos princípios nos impõem que apliquemos a mesma justiça a todos os seres humanos, e a todos os países, e apostamos nas conseqüências benéficas de nossos esforços para obter o apoio de nossos concidadãos, assim como o respeito e a amizade do mundo inteiro.” Uma frase de George W. Bush – “Ou você está conosco, ou contra nós” – leva a crer que o partido de Lincoln mudou. Como e por quê?
O nacionalismo norte-americano sempre oscilou entre um pragmatismo brutal e um idealismo retórico. Esse idealismo, que representa um perigo para os adeptos do pragmatismo, foi cinicamente explorado por estes últimos. Na realidade, o que ocorreria se as pessoas levassem ao pé da letra o caráter progressista da Declaração da Independência?
Os protestantes fundamentalistas
O atual governo apóia-se nos protestantes fundamentalistas, fanáticos que acreditam que o país tem um papel fundamental na luta do bem contra o mal
A descrição que Tocqueville faz dos Estados Unidos – uma nação dividida entre regionalismo e mobilidade, entre materialismo e religiosidade, entre privatização e um nacionalismo arrogante – continua atual. Continua sendo a república comercial condenada por Thomas Jefferson em 1826, quando morreu, cinco anos antes da viagem de Tocqueville. Jefferson e seus descendentes queriam reconciliar-se com o universalismo redentor da Declaração da Independência. Mas se esta ainda molda a imagem que a nação faz de si própria, isso se daria menos sob a forma da memória coletiva, e mais sob a forma de uma religião. Ou talvez mesmo de uma seita. Para participar dela, basta aceitar seus princípios, o que permitiu a integração – por mais imperfeita que seja – de católicos e protestantes, de gentios e judeus, de brancos e negros, de europeus, latinos e asiáticos.
O atual governo põe em prática uma mistura com toques surrealistas. O governo Bush exige o respeito pelos direitos humanos no Irã, mas pede à Justiça que ponha fim às investigações contra a transnacional Exxon, acusada de cumplicidade com a repressão na Indonésia.
Quem se lembra do stalinismo, reconhecerá os sintomas. Stalin, no entanto, não tinha a capacidade de modelar a opinião pública que o capitalismo norte-americano tem e vem aperfeiçoando há cerca de um século. O governo Bush é egresso de uma elite cujo lado cínico convém a esta era pós-moral, que há tanto tempo se acostumou com a cantilena da opinião pública e dos líderes políticos, tanto nos Estados Unidos como no exterior. O atual regime também se apóia nos protestantes fundamentalistas, esses fanáticos que acreditam que os Estados Unidos têm um papel essencial na luta bíblica do bem contra o mal e que se baseiam na certeza de que seu país deverá dirigir o mundo2.
Começa a expansão imperialista
Como é possível que se tenha chegado a esse ponto, após o governo Clinton, que chegou a defender uma versão de social-democracia internacional?
Como é possível que se tenha chegado a esse ponto, após a relativa modernidade do governo Clinton – que conseguiu a cooperação do capital transnacional, defendeu uma supremacia norte-americana mais serena, convidou dirigentes estrangeiros a participarem de decisões internacionais e, ainda que de modo um tanto minimalista, defendeu uma versão da social-democracia internacional?
Seria Bush um falso tradicionalista ou um falso moderno? De início, os republicanos eram adversários convictos da escravidão. Também foi esse o partido da expansão continental (o próprio Lincoln lutou na guerra contra o México3), da industrialização a todo vapor e de uma máxima abertura à imigração européia. Seu último objetivo era a defesa do modelo norte-americano e de seus interesses nacionais diante de um mundo corrompido. Seus grandes princípios econômicos eram a abertura do mercado aos produtos norte-americanos, o protecionismo para a economia e a importação maciça de capitais.
No final do século XIX, esse triunfalismo voltou-se para o mundo exterior. O Oeste tornou-se uma prioridade e os excedentes de recursos permitiram a conquista de novos territórios. Nacionalista e intervencionista, a população exigia a guerra contra a Espanha. As Filipinas foram anexadas em 1898 pelo republicano McKinley (1897-1901).
Isolacionismo e “internacionalismo”
Quando a invasão [das Filipinas] se transformou em luta armada, surgiu um movimento de protesto que permeou todas as camadas sociais
Quando a invasão se transformou em luta armada contra os ativistas pró-independência, surgiu um movimento de protesto que permeou todas as camadas sociais. Esse movimento seria lembrado por ocasião da guerra do Vietnã, quando os “sábios” (a classe dominante) incitaram Lyndon Johnson a pôr fim a uma guerra muito cara e que punha em perigo a paz civil. Entre 1897 e 1901, McKinley ainda podia se apoiar na doutrina do capitalismo incipiente. Nascia uma versão do imperialismo cuja ideologia se enraizaria e prevaleceria até os dias de hoje.
Seria transformado em princípio pelo sucessor de McKinley, Theodore Roosevelt (1901-1908). Reformista, Roosevelt procurou integrar os imigrantes e civilizar o novo capitalismo. Içou os Estados Unidos a uma posição de igualdade em relação às grandes potências e provocou uma revolução na Colômbia, em 1903, que levou à criação do Estado do Panamá – condição necessária à construção do canal. Também afirmou que os Estados Unidos deveriam desempenhar, no hemisfério ocidental, “um papel de polícia internacional”. Foi esse imperialismo preocupado com os pobres que deu origem ao Estado de bem-estar social militarizado que seria construído pelos sucessores de Roosevelt.
As igrejas, uma parte da intelligentsia laica e os socialistas manifestavam suas preocupações. Os agricultores do movimento populista – inimigos da modernidade encarnada pelas grandes cidades – se fazem passar pelos esquecidos do imperialismo. Suas queixas levariam ao isolacionismo raivoso – no período entre as duas guerras mundiais – que se opunha, dentro do Partido Republicano, ao internacionalismo de banqueiros e industriais.
Um aristocrata predador
Os republicanos acabariam por se afastar de Roosevelt, devido às suas reformas econômicas, cedendo a Presidência a um reformista democrata, Woodrow Wilson (1913-1921). Imperialista moral com tendências ao calvinismo, Wilson intensificou a intervenção na América Latina. O governo democrata continuou o processo de integração dos imigrantes, principalmente católicos, à vida política. A ala internacionalista do grande capital aplaudiu a guerra contra a Alemanha. Opuseram-se socialistas e elementos populistas do Partido Democrata, cujo líder, William Jennings Bryan, renunciou ao cargo de secretário de Estado.
O imperialismo preocupado com os pobres deu origem ao Estado de bem-estar social militarizado, construído pelos sucessores de Theodore Roosevelt
Mas a guerra conseguiu os votos dos ideólogos do imperialismo, dos novos tecnocratas, do grande capital e de uma parte considerável do movimento operário – todos favoráveis a um aumento das prerrogativas do governo federal. O grande projeto de Wilson – levar os Estados Unidos a integrarem a Liga das Nações – fracassou devido a oposições contraditórias: os isolacionistas de ambos os partidos, que assim se vingavam da entrada na guerra, e os unilateralistas, que avaliavam que os Estados Unidos deveriam ter a liberdade de usar seu novo poder. O adversário republicano de Wilson, senador Lodge, um aristocrata da Nova Inglaterra, afirmou que os Estados Unidos deveriam aproveitar a oportunidade porque se haviam tornado a maior potência do mundo.
Unanimidade quanto à dominação
No período entre as duas guerras, a elite que controlava a política externa tratou de administrar uma paz turbulenta enquanto se preparava para a próxima guerra. Os acadêmicos, banqueiros, jornalistas e juristas que trabalhavam para o grande capital eram, em sua maioria, naturais de Estados do Leste e protestantes. Reunidos no Conselho de Relações Exteriores, influenciavam o governo e a opinião pública, decidiam sobre prioridades internacionais e pontificavam sobre políticas “responsáveis” e “irresponsáveis”. O futuro secretário de Estado do presidente Dwight Eisenhower (1953-1961) seria uma de suas figuras de proa, enquanto representava, como advogado, os interesses do Terceiro Reich. Nelson Rockefeller convenceria o Conselho a apoiar a carreira de um jovem protegido seu, Henry Kissinger, professor em Harvard.
Essa elite iria integrar, indistintamente, governos democratas e republicanos. Se havia divergências quanto a determinados pontos, ficaria sempre unânime quanto à importância a ser dada à dominação norte-americana. Nesse pequeno núcleo, prevaleciam elementos republicanos originários da Costa Leste e outros, ligados a Wall Street. Dentro de seu próprio partido, enfrentaram os últimos adeptos do populismo, naturais do Centro-Oeste. Desconfiados em relação a Wall Street, estes republicanos defendiam um tipo de isolacionismo baseado numa visão de classe – próximo daquele de alemães e irlandeses, que recusavam qualquer aliança com a Inglaterra.
Um nacionalismo agressivo
O Partido Democrata de Franklin Roosevelt (presidente de 1933 a 1945) resultou de uma coalizão de bancadas entre socialistas, sindicalistas, tecnocratas e banqueiros. Incorporou ex-republicanos progressistas e teve a adesão de católicos e judeus. Seu internacionalismo foi wilsoniano, com pitadas de social-democracia. Mas as dissidências partidárias internas, assim como a pressão que foi exercida sobre ele e seu sucessor – Harry Truman (1945-1953) – por uma versão republicana de internacionalismo, levaram-no a fazer uma aliança com o grande capital no âmbito de um Estado de bem-estar social militarizado.
Nelson Rockefeller convenceu o Conselho das Relações Exteriores a apoiar a carreira de um jovem protegido seu, Henry Kissinger
Os republicanos abandonaram o isolacionismo em 1941. Mas, durante o período do macartismo e de desconfiança em relação aos europeus, incentivaram um nacionalismo agressivo. As igrejas protestantes – que mantinham, havia um século, o envio de missionários à China – ficaram furiosas com a chegada dos comunistas ao poder, em 1949. O unilateralismo desses republicanos transparece em sua recusa a reduzir armamentos, em seu fascínio pela teologia termonuclear e em sua retórica belicista. Porém, o mais espantoso é que os presidentes republicanos (Dwight Eisenhower, Richard Nixon, Gerald Ford e mesmo Ronald Reagan e George Bush, pai) continuariam a obedecer a essas elites, que elaboram a política externa e, em última instância, continuam sendo tão multilateralistas quanto os democratas.
A linhagem republicana de Bush
Operações secretas da CIA, intervenções econômicas, políticas e militares pelo mundo afora, manipulação de países aliados – tudo isso foi feito por democratas, como por republicanos. E, olhando para trás, as inúmeras diferenças que pareciam separá-los aparecem, hoje, como relativamente insignificantes. Com exceção de Reagan, nenhum presidente republicano atacou diretamente o contrato social. Limitaram-se, simplesmente, a aceitar sua degradação, provocada pela evolução do capitalismo.
Em que o atual presidente é diferente dos outros? Seu avô, Prescott Bush, nascido na Nova Inglaterra, foi sócio do mais rico dos democratas na época da New Deal, Averril Harriman. Governador e senador pelo Estado de Connecticut, Prescott era favorável ao internacionalismo de Roosevelt, assim como a seu reformismo social. Seu filho George (o ex-presidente) emigrou após a guerra do Texas, onde a economia se abria à indústria de armas, às finanças e à tecnologia de ponta. Após passar por dificuldades, ficou devendo sua carreira aos estreitos vínculos que mantinha com o mundo dos negócios (antes de se tornar vice-presidente de Reagan, foi embaixador na China, nas Nações Unidas e diretor da CIA).
Representante da velha elite republicana, não se sentia à vontade num partido a que Reagan deu um colorido bastante mais plebeu. Durante sua campanha presidencial, até teve que deixar o Conselho de Relações Exteriores, pois alguns republicanos obsoletos achavam que aquela instituição conspirava contra a soberania do país.
Tribos em decomposição
O Partido Democrata de Franklin Roosevelt resultou de uma coalizão de bancadas entre socialistas, sindicalistas, tecnocratas e banqueiros
George W. Bush não tem esse tipo de problemas. Seu domínio político sobre o Estado do Texas é esmagador. Nunca atacou de frente o Estado de bem-estar social, colabora com as comunidades negra e hispânica e preencheu um vazio ideológico ao defender uma versão individual e ritualizada da religião. Os democratas zombam de seu nepotismo, acusando-o de considerar a política um mero negócio. Porém, na realidade, ele compreendeu um aspecto fundamental do capitalismo: a submissão da esfera pública ao mercado. Assim como seu pai, conta com sócios no comércio de armas, na área financeira, na petroquímica e na tecnologia de ponta. E colocou representantes seus à frente das instituições e das agências federais.
Para bajular o país, Bush costuma contrapor um mundo exterior indiferente, ou hostil, a uma sociedade norte-americana correta e sadia. Quanto a suas veleidades de voltar a um mínimo de proteção social, elas parecem a menção fantasmagórica do período 1941-1964. Quando uma parte considerável da população compreendeu que setores do capitalismo se apóiam, integralmente, no crime organizado, torna-se difícil encontrar uma saída consensual4. Diante disso, o governo tenta mudar de assunto, desenvolvendo uma retórica belicosa. O Partido Democrata, acuado pelo lobby israelense que só pensa numa coisa – a guerra contra o Iraque e, se possível, contra o Irã -, não parece em condições de sair de seu coma político. Sua passividade diante do golpe de Estado judicial das eleições de 2000 foi fatal.
Com os democratas mergulhados numa imensa tempestade ideológica, Bush sabe que deve seu lugar a uma quase-ausência de oposição. Conseqüentemente, governa como líder de uma minoria, passando de uma eventual maioria a outra. Mas os atentados de 11 de setembro deram-lhe a oportunidade de decretar o estado de emergência por tempo indeterminado. E, apesar de ser óbvio seu vazio ideológico, seria ingenuidade ignorar seu controle absoluto sobre o esmagador aparelho repressivo. Fala da nação como de uma igreja, mas sua versão do republicanismo a reduz, de fato, a um amontoado de tribos em plena decomposição.
(Trad.: Jô Amado)
1 – A Associação Internacional dos Trabalhadores foi fundada em Londres, em setembro de 1864, por operários dos movimentos cartista (Chartism) e owenista (Robert Owen, galês, um dos precursores do socialismo) ingleses, proudhonista (Pierre-Joseph Proudhon) e blanquista (Louis-Auguste Blanqui) franceses, e por nacionalistas irlandeses e patriotas e socialistas poloneses, italianos e alemães. Marx deixou a “Internacional” quando sua sede foi transferida, em 1872, para Nova York.
2 – Ler, de Ibrahim Warde, “A sagrada aliança da ultra-direita”, Le Monde diplomatique, setembro de 2002.
3 – A guerra terminou em 2 de fevereiro de 1848, com o Tratado de Guadalupe Hidalgo.
4 – A