As razões dos holandeses
No plebiscito de 1º de junho, a população dos Países Baixos não se pronunciou apenas sobre o Tratado Constitucional Europeu, mas sobre os diversos aspectos da política implementada pela coalizão que está no poderRink Van den Brink
Quase 62% disse “não”: como foi possível chegar a isso? A Holanda, um dos seis países fundadores da Comunidade, é um Estado pró-europeu por excelência: jamais manifestou a mínima reserva em relação à construção da União Européia. É preciso reconhecer que, em 50 anos, em nenhum momento seus cidadãos foram consultados sobre o processo de integração européia. Mas eles jamais deram o menor sinal de contestação em relação à posição pró-européia de seus sucessivos governos. Apenas a população de Luxemburgo manifestou, durante um certo tempo, apoio maciço ao projeto europeu.
Convém assinalar também que, por um longo período, a contribuição da Holanda para o orçamento europeu foi bem menor do que o total por ela recebido. Em 1992, a reforma da política agrícola da Comunidade (PAC), implementada pelo comissário europeu irlandês Ray MacSharry, inverte a tendência: Amsterdã passa a pagar mais do que recebe. E, depois de 1999, nenhum dos países membros contribui mais – per capita – para o caixa da União Européia do que a Holanda1 .
Sem desprezar os que acusam os holandeses de terem predisposição à avareza, a generosidade dos Países Baixos não tinha, até agora, desencadeado uma séria oposição. Até mesmo Pim Fortuyn2 e seu grupo não davam muita importância a isso: o líder populista pretendia, certamente, renegociar o nível da contribuição holandesa para a União, mas levando em conta a riqueza do país.
Política esquizofrênica
Pesquisa expõe distanciamento entre os partidos e seus eleitores, e entre um grande número de movimentos sociais e seus membros
Por que a opinião mudou tanto? Não é resultado do debate sobre a Europa. A mudança radical da atitude dos holandeses explica-se, primeiro, pela crise política. Uma pesquisa do partido de Pim Fortuyn expõe o distanciamento entre os partidos e seus eleitores, mas também entre um grande número de movimentos sociais e seus membros. O resultado da pesquisa está no “NOS Journaal”, do dia 21 de maio: as grandes centrais sindicais, o movimento pela paz, as associações de Direitos Humanos, o Touring Club, as organizações ecologistas, o patronato, as Igrejas, todas defendiam fervorosamente o “sim”, mas a maioria dos seus seguidores… o “não”.
Na verdade, a política holandesa tornou-se esquizofrênica. Apenas 23 deputados, entre os 150, se opõem à Constituição européia. Maioria e oposição fizeram campanha juntas pelo “sim”. Mas a metade dos eleitores do Partido do Trabalho (PvdA, social-democrata, de oposição) e do Partido popular pela liberdade e a democracia (VVD, liberal conservador, maioria) não os seguiu. Embora em menor grau, aconteceu o mesmo com os eleitores da Appel cristã-democrata (CDA, maioria) e com os da aliança verde-esquerda Groen Links (fusão dos antigos comunistas, pacifistas, radicais de esquerda e cristãos de esquerda). Apenas os Democratas 66 (D66, social-liberal) podem se orgulhar do seu eleitorado: dois terços votaram no “sim” defendido pelo partido.
No campo do “não”, os eleitores obedeceram amplamente as palavras de ordem das direções dos partidos: 90% dos membros do Partido Socialista (SP), uma ex-organização maoísta que se tornou populista de esquerda e 96% dos eleitores de Geert Wilders, que procura recuperar o eleitorado de Fortuyn3 . Dissidente, desde setembro de 2004, do VVD, Wilders pregava uma linha mais dura sobre a imigração, integração e segurança, recusando, ao contrário do seu partido, a entrada da Turquia na União Européia. Após a morte do cineasta Theo Van Gogh , no dia 2 de novembro, assassinado por um jovem fundamentalista (que pertencia, segundo a policia, ao grupo terrorista Hofstadgroep), Wilders ficou mais radical. Em um primeiro momento, ele parecia ter tido sucesso: as pesquisas realizadas no fim de novembro de 2004 indicavam que teria tantos deputados quanto à lista de Pim Fortuyn em 2002.
Recado para as elites
O plebiscito permitiu ao povo apresentar a fatura para “aqueles de cima”: a vitória do “não” constitui uma severa advertência à elite-governo
Porém, segundo uma recente pesquisa de opinião, em caso de eleições legislativas, ele teria apenas três cadeiras, apesar de sua campanha contra a Constituição européia. “Traídos” pelos seus representantes tradicionais, os holandeses transformaram a natureza do referendo do dia primeiro de junho. Não se tratava mais de um pronunciamento apenas sobre o tratado constitucional europeu, mas também sobre a adesão da Turquia à União Européia, a imigração, sua expansão e as ameaças ao emprego e aumento do desemprego, introdução do euro e o conseqüente aumento dos preços, a degradação do sistema de saúde pública e da educação nacional, sem esquecer da segurança…
Resumindo, os holandeses apoderaram-se do referendo para sancionar o conjunto da política da coalizão que está no poder. A política européia do governo era apenas um dos temas, entre outros muito mais importantes. E o plebiscito permitiu ao povo apresentar a fatura para “aqueles de cima”: a vitória do “não” constitui uma severa advertência à elite-governo, oposição, homens e mulheres políticos, direção de grandes organizações sociais etc.
Essa elite não acreditava que o “não” pudesse ganhar. Só muito tarde ela tomou consciência da cólera de uma parte da opinião pública. Como em 2002, ano da revolta populista da direita. Nada, é verdade, indicava a possibilidade de uma tal onda: em novembro de 2004, apenas 10% dos eleitores anunciavam que votariam no “não”, 39% se manifestaram pelo “sim” e 41% estavam indecisos (e 10% não pretendiam votar). Porém, em março de 2005, a opinião mudou: o “não” alcançava 24%, o “sim” 22%, os indecisos 48% (com 7% de abstenções). No dia 27 de maio, o rompimento se impunha: 52% de “não”, 29% de “sim”, 16% de indecisos (3% de abstenção4 ). O “não” francês acentuaria a tendência. Essa evolução se deve muito a uma campanha realizada pelos partidários do “não” – especialmente pelo SP, fortalecido pelos seus 44 mil adeptos, quase todos militantes. Onipresente nas ruas, este partido comprou muito tempo na televisão. Seus anúncios publicitários influenciaram muito nos temores de inúmeros holandeses com relação à Europa – incluindo a adoção do euro e suas conseqüências.
Aliado inesperado
Os simpatizantes do “não” foram favorecidos por um aliado inesperado: a desastrosa campanha em favor do “sim”
Por outro lado, os simpatizantes do “não” foram favorecidos por um aliado inesperado: a campanha do “sim”. Nunca uma campanha foi tão contraproducente. Ouvimos o liberal social Laurens-Jan Brinkhorst, ministro da Fazenda e promotor do plebiscito, declarar que este era um erro, os cidadãos não conheciam suficientemente a Constituição. O ministro do Interior e liberal conservador Joan Remkes pediu ao campo do “não” que parasse de incentivar o medo… mesmo quando os deputados europeus de seu partido divulgavam um filme que fazia propaganda do “sim” mobilizando as vítimas do Holocausto, os milhares de muçulmanos exterminados no massacre de Srebrenica, na Bósnia, e as vítimas do atentado islamita de Madrid… E o ministro da Justiça Piet-Hein Donner alertava contra uma situação semelhante à da Iugoslávia em caso de vitória do “não”…
A eficácia dessa campanha foi terrível. Por um único problema: ela, principalmente, convenceu os eleitores a votarem “não” 5 … Um “não” que não era claramente à esquerda e nem à direita: aí encontramos os dois componentes. Eis uma situação que não deixa de lembrar a “revolta Fortuyn”: esta – apesar de seu discurso xenófobo, islãfobo, de segurança e antielites, em resumo populista de direita – soube mobilizar em seu favor eleitores de todos os partidos, da extrema-direita à esquerda da esquerda. O “não” holandês tem, de certa forma, características similares.
(Trad.: Celeste Marcondes)
1 – Em 2002, a contribuição holandesa chegava a 180 euros por habitante, ou seja, 0,65% do produto nacional bruto: aproximadamente o dobro da Alemanha (0,38%). Ainda em 2002, a Holanda contribuiu com 4,5 bilhões de euros e recebeu 1,6 bilhões dos quais 3/4 em subvenções agrícolas. Em 2003, a Holanda contribuiu com 5,9 bilhões para a Comunidade Européia. Cf. www.minfin.nl
2 – Nove dias depois do assassinato de Fortuyn, no dia 6 de maio de 2002, seu partido tornou-se o segundo partido do país, com 26 das 150 cadeiras do Parlamento. Nas eleições de 2003, entretanto, ele perderia 2/3 dos se