A assustadora atualidade de Blade Runner 2049
Sem dúvida, a maior contribuição de Blade Runner 2049 é a sua assustadora atualidade – mesmo vislumbrando como seria o mundo daqui a 32 anos. As suas propostas – desde a continuação da história do filme original até as novas e geniais criações de plot e arco dramático – constituem, a meu ver, um dos pontos principais do filme.
O culto em torno de Blade Runner – O Caçador de Androides[i] tornou o filme, ao longo de pouco mais de três décadas, um clássico da ficção científica, daqueles que não se imagina tendo uma continuação ou uma refilmagem, tal o processo de sacralização que se operou em seu entorno. Durante 35 anos, a mínima menção a essa possibilidade já era motivo para as mais acaloradas reações por parte de um peculiar público cinéfilo, sempre refratário.
Eis que, há uns dois anos, mais ou menos, se anunciou que estava em curso a produção de uma continuação de Blade Runner. A principal informação era a de que o novo filme iria contar com Harrison Ford, que deu vida eterna ao policial Rick Deckard, mas não com Ridley Scott na direção. Essa função caberia ao canadense Dennis Villeneuve, que vinha, até então, com um currículo respeitável na bagagem – com filmes como Os Suspeitos (2013), O Homem Duplicado (2013) e Sicario: Terra de Ninguém (2015), completada por A Chegada (2016). A Scott caberia a produção executiva do novo filme.
Aos poucos, o frisson foi tomando conta tanto daquela geração privilegiadíssima que assistiu à primeira versão do filme original nos cinemas (com narração em off de Harrison Ford e cenas finais emprestadas de O Iluminado[ii] de Stanley Kubrick) quanto daquela que foi se tornando fã incondicional ao longo desses 35 anos. E começaram a surgir os inevitáveis questionamentos. A continuação estaria à altura do primeiro filme? A refilmagem não iria “conspurcar” a veneração em torno da película de 1982? Era realmente necessário se fazer uma continuação de um filme que merecidamente passou do status de “cult” para o de “clássico absoluto”?
À medida que a estreia de Blade Runner 2049[iii] se aproximava, a expectativa ficava ainda maior, potencializada por postagens nas redes sociais e pela liberação em doses homeopáticas, e cercadas do mais absoluto sigilo (um feito num mundo infestado de hackers), das primeiras imagens, até chegar à divulgação do trailer. E então chegou a data mais aguardada de 11 entre dez cinéfilos praticantes em todo o mundo: 5 de outubro de 2017 – isso, no Brasil e em alguns países, porque, nos Estados Unidos, a estreia (vejam só!) foi um dia depois.
Lá fui eu, com a adrenalina em dia, a uma sala de cinema de um shopping center de Ponta Grossa, no Paraná (diga-se de passagem, a única das nove salas da cidade na qual Blade Runner 2049 foi exibido na versão legendada, e durante apenas uma semana!) reencontrar-me com um Deckard 30 anos mais velho e encontrar-me com a continuação de uma trama que se tornou uma das maiores reflexões filosófico-existenciais da história do cinema. Importante lembrar que, como deve ter acontecido com todos os adoradores do primeiro filme, principalmente da geração que assistiu à primeira versão, eu fui ao cinema com o dever de casa cumprido: revi o primeiro filme em DVD (da chamada “versão original do diretor”, lançada em 2007[iv]).
Assisti a Blade Runner 2049 do primeiro fotograma (a imagem em primeiríssimo plano de um olho humano) até a última informação da produção que rolou nos letreiros finais. E permaneci dentro da sala por um bom tempo absolutamente embasbacado, absorto, ainda mergulhado no poderoso turbilhão de imagens e sons que o filme havia me proporcionado e que ainda reverberavam na minha mente.
Mas, antes, vamos às comparações – tanto de enredo quanto de temática – entre Blade Runner – O Caçador de Androides e Blade Runner 2049. De acordo com o filme de 1982, no início do século XXI, uma grande corporação – a Tyrell Corporation – desenvolve robôs que são mais fortes e ágeis que o ser humano e equiparáveis em inteligência. São conhecidos como “replicantes” e utilizados como escravos na colonização e exploração de outros planetas. Porém, quando um grupo dos replicantes mais evoluídos provoca um motim, em uma colônia fora da Terra, esse incidente os faz serem considerados ilegais na Terra, sob pena de morte. A partir de então, policiais de um esquadrão de elite, conhecidos como Blade Runner, têm ordem de atirar para matar replicantes encontrados na Terra – o que eles chamam, não de execução, mas sim de “remoção”, ou “aposentadoria”. Até que, em novembro de 2019, em Los Angeles, quando cinco replicantes chegam à Terra, um ex-Blade Runner, Rick Deckard (Harrison Ford), é encarregado de caçá-los[v].
No novo filme, como o próprio nome já entrega, a história se passa 32 anos depois do enredo do primeiro. No estado norte-americano da California, após os problemas enfrentados com os androides da geração Nexus 8, uma nova espécie de replicantes é desenvolvida, de forma que seja mais “obediente” aos seres humanos. Um deles é o oficial KD6-3.7 (Ryan Gosling), um blade runner que caça replicantes foragidos para a Polícia de Los Angeles. Após encontrar Sapper Morton (Dave Bautista), K. descobre um fascinante segredo: a replicante Rachael Rosen (Sean Young), do primeiro filme, teve um filho, que foi mantido em sigilo até então. A possibilidade de que replicantes se reproduzam pode desencadear uma guerra deles com os humanos, o que faz com que a tenente Joshi (Robin Wright), chefe de K, o envie para encontrar e eliminar a criança[vi].
Sim, Villeneuve conseguiu. Blade Runner 2049 não deve nada ao filme de 1982 – muito pelo contrário. O novo filme é um deslumbre visual (potencializado pela fotografia acachapante de Roger Deakins, que já foi indicado 13 vezes ao Oscar), que propõe reflexões tão ou mais filosófico-existencialistas que a película original e conta com um elenco que é de encher os olhos – com destaque para Ryan Gosling, Harrison Ford (Rick Deckard), Jared Leto (Niander Wallace), Ana de Armas (Joi), Dave Bautista, Robin Wright (Lieutenant Joshi), Sylvia Hoeks (Luv) e Mackenzie Davis (Davis Mariette). Além disso, enfim, mostra o que aconteceu com Deckard e a replicante Rachael Rosen depois da “viagem para o Norte” – na primeira versão exibida nos cinemas, na década de 80 – ou após os dois entrarem no elevador – na versão do diretor. E é exatamente aí que reside o plot principal do novo filme.
Trata-se de uma obra-prima, um dos melhores filmes já realizados na história do cinema e muito provavelmente o melhor do século 21. Sem concessões. Com uma gama de significações que só fazem confirmar um dos mais eficazes usos do que se convencionou chamar de “gramática cinematográfica”. Está tudo lá. E com um requinte que traz uma surpresa para quem é, não somente cinéfilo de primeira hora do “universo Blade Runner”, como também estudioso do romance sci-fi que deu origem a tudo – Androides sonham com ovelhas elétricas?: não contente em ousar dar continuidade ao primeiro filme, Blade Runner 2049 ainda traz referências diretas ao livro de Philip K. Dick.
Dois momentos no filme exemplificam isso. Na cena em que K. chega em casa e é recebido por sua “namorada” virtual, Joi (Ana de Armas, belíssima) – na verdade, um aplicativo fabricado pela empresa Wallace Corporation –, há um clima bem cotidiano que remete ao início do livro de Philip K. Dick, entre Deckard e sua esposa Iran. O detalhe é que isso não aparece no filme de 1982. E na cena em que K. encontra o policial Gaff (Edward James Olmos), remanescente do primeiro filme, em uma espécie de asilo, com o objetivo de saber dele alguma pista que leve a Deckard. Quase ao final da conversa entre ambos, Gaff coloca sobre a mesa uma pequena ovelha feita em origami, uma referência direta à “ovelha elétrica” do título do livro, que é o animal que Dekard “cria” em sua casa, na obra original.
Mas, sem dúvida, a maior contribuição de Blade Runner 2049 é a sua assustadora atualidade – mesmo vislumbrando como seria o mundo daqui a 32 anos. As suas propostas – desde a continuação da história do filme original até as novas e geniais criações de plot e arco dramático – constituem, a meu ver, um dos pontos principais do filme. A começar por alguns itens tecnológicos, como hologramas, drones e inteligência artificial[vii]. Os hologramas são utilizados de forma fantástica. Podem ser de pessoas em tamanho natural ou de tamanho gigantesco. São inesquecíveis a bailarina, que dança no meio da rua, ainda no início do filme, e a própria Joi, que, no terço final, aparece completamente nua, próxima a uma ponte. No caso dos drones, o carro voador de K. (chamado de “hovercar”, no livro de Philip K. Dick) conta com um dispositivo capaz de fazer tomadas aéreas do terreno onde o policial realiza as suas investigações. No caso da inteligência artificial, Joi “lembra” de tudo sobre sua vida e até interpreta sentimentos. Nesse caso, trata-se de uma evolução de como o tema é proposto no filme de 1982, no qual as “memórias” dos replicantes são implantadas e eles a referem por meio de fotografias antigas da sua própria “infância”. Outros itens ainda não são realidade, no entanto. Como os carros voadores, as viagens interplanetárias e os próprios replicantes.
Mas o tema por excelência que confere uma atualidade assombrosa a Blade Runner 2049 é o aquecimento global. “Chegaremos a 2049? No filme, Los Angeles é circundada por uma gigantesca muralha contra as marés. Se o aquecimento do planeta seguir no ritmo atual, a previsão é que o nível do mar se eleve, em média, 28 cm a 89 cm até 2100”, relata reportagem do jornalista Ricardo Ampudia[viii].
Apenas a título de exemplo, uma reportagem do site Russia Beyond[ix] informa que, de acordo com cientistas russos, o planeta Terra enfrentará, em breve, “esfriamento profundo”. “As consequências para a Terra podem ser uma temporada mais intensa frio, gelo e fortes nevascas. A última chamada ‘pequena Era do Gelo’, observada nos séculos 17 e 18, coincidiu com a conhecida ‘falha do ciclo solar, durante a qual, por 50 anos, quase não houve manchas solares no Sol’, explicam os acadêmicos”, diz a reportagem.
No filme, quando não está chovendo, neva. Os cenários são desoladores e em momento algum apontam para uma mudança, digamos, mais acolhedora. Mostram, invariavelmente, destruição e demolição – tudo, enfim, que denota um mundo pós-apocalíptico. As cidades são um caos, nas áreas centrais, e enormes lixões conurbados, na periferia, formando gigantescas favelas. Em uma cena, aparecem centenas de crianças trabalhando (referência ao filme Mad Max 3, Além da Cúpula do Trovão[x]). Não obstante o calor intenso que tem feito em vários lugares do mundo, não é muito difícil vislumbrar esse cenário nos dias atuais ou mesmo em um futuro próximo.
É bom lembrar, aliás, que o primeiro acordo universal para luta contra as mudanças climáticas e o aquecimento global foi alcançado por delegados de 196 países presentes na “Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP21)”, em Paris, em 12 de dezembro de 2015[xi]. Segundo a reportagem, os principais pontos do chamado Acordo de Paris são manter o aumento da temperatura média global abaixo de 2ºC e ajudar financeiramente os países em desenvolvimento. “Após a retirada dos EUA, segundo maior emissor global de gases do efeito estufa, a China e a União Europeia (respectivamente, 1º e 3º entre os que mais poluem) se comprometeram a dar continuidade ao Acordo. A Rússia, 5º maior poluidor global, atrás da Índia, é a maior nação industrializada a não ter ratificado o tratado”[xii].
Cinematograficamente, Blade Runner 2049 é um deleite, e arrisco dizer, parafraseando Paulo Perdigão quando se referia à sequência final de Rastros de Ódio[xiii], de John Ford, que não vai demorar muito e ele deverá ser visto ajoelhado e com os braços abertos, tamanha será a sacralização em torno dessa continuação magnífica e em tudo surpreendente. Assim como aconteceu, aliás, com Blade Runner – O Caçador de Androides. Uma das sequências finais do filme de 1982, batizada sugestivamente de “Lágrimas na Chuva” – em que o replicante Roy (Rutger Hauer) está sentado no topo de um edifício, após ter salvado o policial Rick Deckard – é antológica. “Eu vi coisas que vocês não imaginariam. Naves de ataque em chamas ao largo de Órion. Eu vi raios-C brilharem na escuridão próximos ao Portão de Tannhäuser. Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer[xiv]“, diz Roy a um Deckard incrédulo e estupefato.
Não à toa, Dennis Villeneuve faz uma homenagem-citação a essa cena na sequência final de Blade Runner 2049 com o policial K. deitado de costas sobre uma escadaria “sentindo” cada minúsculo floco da neve que cai insistentemente em seu rosto. Tudo ao som da trilha sonora de Hans Zimmer e Benjamin Wallfisch – que, claro, lembra muito a já clássica trilha do grego Vangelis, no filme de 1982. Sublime.
*Helcio Kovaleski é jornalista, roteirista e crítico de cinema, TV e teatro, autor do livro “Festival Crítico – Dez Anos escrevendo Sobre o Fenata (Festival Nacional de Teatro)”. Atualmente, é assessor parlamentar na Câmara Municipal de Ponta Grossa, Paraná