Até o próximo fim do mundo…
A pandemia de Covid-19 transformou o mundo. Passear com um amigo é cada vez mais impensável quanto respeitar as metas fiscais: o banal torna-se a exceção; o inimaginável, cotidiano. Enquanto alguns celebram a oportunidade de fazer bons negócios, outros se perguntam: salvar vidas justifica ameaçar o livre comércio? Nos prontos-socorros como nas salas de reunião, uma questão lancinante se espalha: o vírus teria matado tanto se as políticas de austeridade não tivessem desmantelado os serviços públicos?
A arte da prestidigitação consiste em direcionar a atenção do público para que ele não perceba o que está diante de seus olhos. No coração da epidemia de Covid-19, o truque de mágica tomou a forma de um gráfico de duas curvas, transmitido por televisões de todo o mundo. Na abscissa, o tempo; na ordenada, o número de casos graves da doença. Uma primeira curva na forma de um pico agudo mostra o impacto da epidemia se nada for feito: ela quebra a reta horizontal que indica as capacidades máximas de acolhimento dos hospitais. A segunda curva ilustra uma situação em que as medidas de confinamento permitem limitar a propagação. Ligeiramente abobadada, como um casco de tartaruga, ela desliza para baixo do limiar fatídico.
Exibido de Washington a Paris, passando por Seul, Roma e Dublin, o gráfico aponta uma urgência: diluir o ritmo da contaminação ao longo do tempo para evitar a saturação dos serviços de saúde. Chamando atenção para as duas ondulações, os jornalistas escondem um elemento importante: essa linha reta, discreta, no meio do gráfico, que representa o número de leitos disponíveis para acomodar os casos graves. Apresentado como um dado caído do céu, esse “limiar crítico” deriva de escolhas políticas.
Se é necessário “achatar a curva”, é porque há décadas as políticas de austeridade diminuíram a altura da reta ao retirar dos serviços de saúde sua capacidade de acolhimento. Em 1980, a França dispunha de onze leitos hospitalares (todos os serviços combinados) por mil habitantes. Hoje há apenas seis, que um ministro da Saúde macronista propunha em setembro entregar aos bons cuidados dos bed managers (administradores de leitos), responsáveis por alocar esse recurso escasso. Nos Estados Unidos, os 7,9 leitos por mil habitantes registrados em 1970 foram reduzidos para 2,8 em 2016.1 Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Itália tinha 9,22 leitos dedicados a “casos graves” por mil habitantes em 1980, contra 2,75 trinta anos depois. Em todos os lugares, uma palavra de ordem: reduzir custos. O hospital funcionaria como uma fábrica de automóveis, no modo just in time. Como resultado, em 6 de março, a Sociedade Italiana de Anestesia, Analgesia, Reanimação e Terapia Intensiva (Siarti) comparou o trabalho dos médicos de emergência transalpinos à “medicina de catástrofe”. E alertou: dada a “falta de recursos”, “poderia ser necessário estabelecer um limite de idade para o acesso à terapia intensiva.”2 “Medicina de guerra”: um termo agora comum.
Assim, a crise do coronavírus se deve tanto à periculosidade da doença quanto à deterioração organizada do sistema de saúde. Eterna câmara de ressonância do credo contábil, a grande mídia evitou o exame crítico dessas opções para convidar leitores e ouvintes para um debate filosófico estonteante: como decidir quem salvar e quem deixar morrer? Dessa vez, porém, será difícil esconder a questão política por trás de um dilema ético. A epidemia de Covid-19 desvela aos olhos de todos uma organização econômica ainda mais aberrante do que todos suspeitavam. Enquanto as companhias aéreas operavam seus aviões vazios para manter os slots abertos, um pesquisador explicava como a burocracia liberal tinha desencorajado a pesquisa básica sobre os coronavírus.3 Como se fosse preciso sair do habitual para entender o desvio, Marshall Burke, professor de Ciência de Ecossistemas da Universidade de Stanford, observou esse paradoxo: “A redução da poluição atmosférica causada pela epidemia de Covid-19 na China provavelmente salvou vinte vezes o número de vidas perdidas devido à doença. É menos uma questão de concluir que as pandemias são benéficas que de medir quão ruins são nossos sistemas econômicos para a saúde. Mesmo na ausência de coronavírus”.4 O furo dessa viagem para o país do absurdo não estava nem no risco de escassez de medicamentos após a deslocalização das cadeias produtivas nem na obstinação dos mercados financeiros em castigar a Itália quando o governo tomava suas primeiras medidas sanitárias. Mas atrás das portas dos hospitais. Estabelecida em meados da década de 2000, a “tarifação da atividade” (T2A) proporcionou o financiamento dos estabelecimentos pelo número de procedimentos médicos realizados, cada um cobrado como em uma loja, e não de acordo com o planejamento de necessidades. Se tivesse sido aplicado durante a crise atual, esse princípio do cuidado-mercadoria importado dos Estados Unidos rapidamente teria estrangulado os estabelecimentos que recebem os pacientes mais afetados, uma vez que as formas críticas da Covid-19 exigem antes de tudo a aplicação de uma ventilação mecânica, um procedimento oneroso em termos de tempo, mas menos remunerador na grade tarifária que muitos exames negados por causa da epidemia…
Por um tempo, o micróbio por trás das medidas de confinamento mais severas já imaginadas em tempos de paz pareceu romper as barreiras do espaço social: o banqueiro de Wall Street e o trabalhador chinês não eram subitamente submetidos à mesma ameaça? E então o dinheiro retomou seus direitos. De um lado, os confinados das mansões, que trabalham a distância com um pé na piscina; de outro, os invisíveis do cotidiano, cuidadores, agentes de superfície, caixas de supermercado e trabalhadores da logística saídos por uma vez das sombras por estarem expostos a um risco que os mais abastados desdenham. Trabalhadores a distância enclausurados em um apartamento apertado onde reinam os ruídos das crianças; pessoas sem-teto que gostariam muito de ficar em casa.
Abordagem coletiva, coordenada e ampla
Em sua “tipologia dos comportamentos coletivos em tempos de peste” entre os séculos XIV e XVIII, o historiador conservador Jean Delumeau observa esta invariante: “Quando aparece o perigo do contágio, de início as pessoas tentam não enxergá-lo”.5 O escritor alemão Heinrich Heine observa que após o anúncio oficial da epidemia de cólera em Paris, em 1832, “os parisienses saracoteavam com ainda mais jovialidade nas avenidas” pelo fato de “fazer um tempo ensolarado e agradável”.6 Em seguida, os ricos fugiram para o campo. Depois, o governo colocou a cidade em quarentena. Então, de repente, explica Delumeau, “os laços familiares foram abolidos. A insegurança não surgiu apenas da presença da doença, mas também de uma desestruturação dos elementos que construíam o ambiente cotidiano. Tudo ficou diferente”. Os habitantes confinados de Wuhan, Roma, Madri ou Paris experimentam isso em uma escala sem precedentes.
As grandes pestes da Idade Média e do Renascimento eram frequentemente interpretadas como um sinal do Juízo Final ou da fúria de um Deus vingador desencadeada sobre um mundo que chegava ao fim. Então, cada um se virava alternadamente em direção ao céu para implorar graça e em direção à vizinhança em busca de culpados – os judeus, as mulheres. Na Europa do século XXI, a epidemia de coronavírus se abate sobre sociedades secularizadas, mas, desde a crise financeira de 2008, afetadas em graus variados pelo sentimento de uma “perda de controle” ecológica, política, financeira, demográfica, migratória etc.
Nessa atmosfera de “fim do mundo”, em que se misturam imagens da Notre-Dame de Paris em chamas e debates sobre o colapso que se aproxima, os olhos se voltam para o poder público: o Estado, fonte de agravamento do problema por sua obstinação em quebrar o sistema de saúde e única instância, no entanto, capaz de ordenar e coordenar uma resposta à epidemia. Mas até onde ir? Durante o mês de fevereiro, o confinamento obrigatório por várias semanas de 56 milhões de habitantes de Hubei, na China, o fechamento forçado das fábricas, o chamado à ordem dos moradores da cidade por drones equipados com câmeras e megafones provocaram na Europa comentários ridículos ou circunspectos sobre o punho de ferro do Partido Comunista. “Nenhuma lição pode ser aprendida com a experiência chinesa sobre a duração potencial da epidemia”, explicou a revista L’Express, em 5 de março. “Ela desacelerou lá por causa de medidas drásticas de confinamento, provavelmente inaplicáveis em nossas democracias.” Cansados diante dos vírus insensíveis à superioridade de “nossos” valores, devemos decidir colocar a decisão centralizada no primeiro plano e o liberalismo econômico no segundo.
O diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, especifica que “é possível repelir a epidemia, mas apenas com base em uma abordagem coletiva, coordenada e ampla, que envolva todo o maquinário.”7 Coletivo, coordenação, Estado: o inverso do mercado. Em alguns dias, as estruturas de interpretação do mundo social se revertem como uma luva: “Tudo está diferente”. As noções de soberania, de fronteira, de limite e até de despesas públicas, associadas há meio século nos discursos públicos ao “nacional-populismo” ou à Coreia do Norte, de repente tomam a forma de uma solução em um mundo até então regulado pelo culto aos fluxos e à austeridade orçamentária.
Estimulada pelo pânico, a vanguarda editocrática de repente descobre aquilo que estava tentando ignorar. “Não podemos dizer também que, no fundo, essa crise nos convida a repensar áreas inteiras da globalização: nossa dependência da China, do livre-comércio e do avião?”, perguntou na France Inter, em 9 de março, Nicolas Demorand, ao microfone diante do qual os carrascos do protecionismo, como Daniel Cohen, se seguem há anos.
A ignorância dos especialistas
É preciso que a razão de mercado tenha reconfigurado profundamente os entendimentos para que apenas a eclosão de uma pandemia mortal possa tornar audíveis ao poder os truísmos que os profissionais da área médica enunciaram durante décadas: “Sim, deve haver uma estrutura hospitalar pública com leitos permanentemente disponíveis”, resumiram os médicos André Grimaldi, Anne Gervais Hasenknopf e Olivier Milleron. “O novo coronavírus tem o mérito de lembrar o óbvio: não pagamos aos bombeiros apenas para ir apagar o fogo, queremos que eles estejam presentes e prontos em seus quartéis, mesmo quando estão apenas polindo o caminhão enquanto aguardam a sirene.”8
Prever o que acontece sem aviso (incêndio, doença, cataclismo, crise financeira): foi incorporando essa demanda popular em suas instituições, muitas vezes contra sua vontade, que o capitalismo se perpetuou e se renovou entre a crise de 1929 e o fim da Segunda Guerra Mundial. Planejar o inesperado exigia romper com a racionalidade do mercado que fixa um preço de acordo com a oferta e a procura, desconsidera o improvável e modela o futuro por meio de equações em que as sociedades não valem nada. Essa cegueira da economia-padrão, elevada a seu ponto mais alto nas salas de negociação, atingiu o ex-corretor e estatístico Nassim Nicholas Taleb. Em um livro publicado alguns meses antes da crise de 2008, ele observou sobre os futurólogos de curto prazo: “O problema com os especialistas é que eles não têm ideia do que estão ignorando”.9 Negligenciar o imprevisto em um mundo marcado pela multiplicação de eventos inesperados, os “cisnes negros”, é, segundo ele, absurdo. No final de março de 2020, qualquer um que ouvisse à sua janela o argumento do silêncio da cidade confinada podia meditar sobre a obstinação do Estado em se despojar não apenas dos leitos de reanimação, mas também de seus instrumentos de planejamento, agora monopolizados por algumas multinacionais de seguro e de resseguro.10

A fissura causada pela pandemia pode reverter esse curso? Reimplantar o eventual e o fortuito na condução dos assuntos públicos, enxergar além do cálculo de custo/benefício e implementar um planejamento ecológico envolveria socializar a maioria dos serviços essenciais à vida das sociedades modernas, da limpeza às redes digitais, passando pela saúde: uma oscilação tamanha que raramente ocorre em tempos comuns. O olhar de um historiador sugere que as mudanças de regime, trajetória, modo de pensar a vida coletiva e a igualdade permanecem fora do alcance das deliberações políticas comuns. “Em todos os momentos”, escreve o historiador austríaco Walter Scheidel, professor de Stanford, “os maiores achatamentos resultaram dos choques mais severos. Assim, quatro tipos de rupturas violentas conseguiram aplanar as desigualdades: guerra, quando envolveu uma mobilização em massa, as revoluções, as falências estatais e as pandemias mortais”.11 Estaríamos nessa situação? Por outro lado, o sistema econômico mostrou ao longo de sua história uma extraordinária capacidade de absorver os choques cada vez mais frequentes a que sua irracionalidade dá origem. Tanto é assim que as convulsões mais brutais geralmente beneficiam os fiadores do status quo, que se apoiam na catástrofe para estender o domínio do mercado. Esse capitalismo do desastre dissecado pouco antes da grande recessão de 2008 por Naomi Klein zomba do esgotamento de recursos naturais e das instituições de proteção social capazes de amortecer as crises. Num ímpeto de otimismo, a ensaísta canadense observou: “Nem sempre reagimos a choques regredindo. Em tempos de crise, às vezes crescemos – e rápido”.
É uma impressão desse tipo que o presidente francês Emmanuel Macron quis passar ao expressar, em 12 de março de 2020, seu desejo de “questionar o modelo de desenvolvimento em que nosso mundo se lançou há décadas e que revela suas falhas à luz do dia, questionar as fraquezas de nossas democracias. O que essa pandemia revela a partir de agora é que os cuidados de saúde gratuitos, independentemente da renda, carreira ou profissão, e nosso Estado de bem-estar não são custos ou encargos, mas bens preciosos, bens essenciais quando o destino ataca. O que essa pandemia revela é que existem bens e serviços que devem ser colocados fora das leis do mercado. Delegar nossa alimentação, nossa proteção, nossa capacidade de cuidar de nosso ambiente de vida a outras pessoas é loucura. Devemos recuperar o controle disso tudo”. Três dias depois, ele adiava a reforma da previdência, outra do auxílio-desemprego, depois decretava a implementação de medidas consideradas até então impossíveis – limitação das demissões, abandono de todas as restrições orçamentárias. As circunstâncias acentuarão por si mesmas essa redução: com o colapso dos valores do mercado de ações, a obsessão do presidente em levar a poupança e as pensões dos executivos para os mercados de ações soa como um golpe de gênio visionário. No entanto, suspender a lei trabalhista, restringir as liberdades públicas, financiar as empresas de guichês abertos, isentá-las das contribuições para a previdência social nas quais se ampara o sistema de saúde não marca uma ruptura radical com as políticas anteriores. Essa transferência maciça de dinheiro público para o setor privado é uma reminiscência do resgate dos bancos pelo Estado em 2008. A conta tinha assumido a forma de austeridade imposta aos funcionários e serviços públicos. Menos leitos? Sim: era preciso socorrer os bancos.
É por isso que a epifania do chefe de Estado evoca aquela que atingiu Nicolas Sarkozy em um dia de setembro de 2008, logo após o colapso do Lehman Brothers. Diante de seus apoiadores estupefatos, o presidente da República anunciou solenemente: “Uma ideia de globalização termina com o fim de um capitalismo financeiro que havia imposto sua lógica a toda a economia e tinha contribuído para pervertê-la. […] A ideia de que os mercados estão sempre certos era uma ideia louca”.12 Algo que não o impediu de, passada a tempestade, retomar o curso da loucura habitual.
*Renaud Lambert e Pierre Rimbert são jornalistas do Le Monde Diplomatique.
1 Fonte: OCDE.
2 “Raccomandazioni di etica clinica per l’ammissione a trattamenti intensivi e per la loro sospensione” [Procedimentos clínicos éticos para a admissão em tratamentos intensivos e para sua suspensão], Siaarti, Roma, 6 mar. 2020.
3 Bruno Canard, “J’ai pensé que vous avions momentanément perdu la partie” [Eu pensei que havíamos perdido temporariamente o jogo], declaração de 5 mar. 2020, disponível no site da Academia, https://academia.hypotheses.org.
4 Twitter, 9 mar. 2020.
5 Jean Delumeau, La Peur en Occident, XIVe-XVIIIe siècle [Medo no Ocidente, séculos XIV-XVIII], Fayard, Paris, 1978.
6 Heinrich (Henri) Heine, De la France, Gallimard, Paris, 1994.
7 New York Times, 9 mar. 2020.
8 Le Monde, 11 mar. 2020.
9 Nassim Nicholas Taleb, The Black Swan. The Impact of the Highly Improbable [O cisne negro. O impacto do altamente improvável], Random House, Nova York, 2007.
10 Razmig Keucheyan, La Nature est un champ de bataille. Essai d’écologie politique [A natureza é um campo de batalha. Ensaio de ecologia política], La Découverte, Paris, 2014.
11 Walter Scheidel, The Great Leveler. Violence and the History of Inequality from the Stone Age to the 21st Century [O grande nivelador. A violência e a história da desigualdade desde a Idade da Pedra até o século XXI], Princeton University Press, 2017.
12 Discurso de Toulon, 25 set. 2008.