Atleta, questão de corpo
Os atributos do sexo não seriam deixados no vestiário. Os modos de engajamento esportivo dos homens e das mulheres traduzem a forma pela qual investem no espaço e no mundo. As representações “permitidas” às mulheres nos esportes são iguais aos trabalhos que lhes são “autorizados”Catherine Louveau
No campo do esporte, as mulheres não são mais consideradas inconvenientes ou incapazes. Cada vez mais elas praticam uma atividade física regular (64% das mulheres de 14 à 65 anos, e 72% dos homens) e todos os esportes são em teoria abertos a elas. Mas as práticas esportivas permanecem em territórios sexuados: homens e mulheres se distribuem de forma desigual e as imagens que projetam não são idênticas nem intercambiáveis.
Desde a infância, as meninas manifestam um interesse menor que os garotos por situações de confronto e de rivalidade que exijam um desempenho contabilizado, ou cronometrado, e de se comparar uns aos outros. Modalidades majoritárias de prática masculina do esporte: técnica, treinamento, apego a valores tradicionalmente instituídos do êxito (desempenho, classificação), coletivo, solidário. Para as mulheres, por outro lado, o jogo, a manutenção física, o apego às finalidades pessoais ou aos aspectos da relação são preponderantes, numa prática individual, e até solitária. Ou, como se isso pudesse ser natural: esporte para eles e corpo para elas.
A desejabilidade social
Os atributos do sexo não seriam deixados no vestiário. Os modos de engajamento esportivo dos homens e das mulheres traduzem, de fato, a forma pela qual investem no espaço e no mundo. As representações “permitidas” às mulheres nos esportes são as mesmas que os trabalhos que lhes são “autorizados”. Mostrar ou exercer força, se entregar a uma luta, dar ou receber murros e correr riscos corporais são atributos que as mulheres parecem não poder fazer seus e que seriam, portanto, próprios da masculinidade.
Olhando com atenção o que as mulheres fazem, o que se mostra delas, o que é dito delas (e também o que não é dito nem visto), vemos desenharem-se normas de aparência corporal: uma receita de feminilidade. As mulheres esportistas colocam (apesar delas) a questão do corpo e da feminilidade sujeitos à desejabilidade social.
Pouco espaço editorial
As mulheres são quase ausentes do noticiário, [1] e quando aparecem é de maneira estereotipada: trazidas à esfera afetiva ou sexual, à família, aos filhos. Quanto ao esporte nos meios de comunicação, continua maciçamente masculino.
Enquanto que o conjunto da profissão de jornalista conta com um terço de mulheres, elas são quase ausentes do jornalismo esportivo (90 mulheres entre 1.800 jornalistas filiados ao sindicato de jornalistas esportivos da França). Por ocasião dos Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996, o número de mulheres não passava de 10% dos jornalistas franceses credenciados. Conseqüência? Se na França as mulheres representam 30% dos desportistas de auto nível, elas não conseguem senão 10% do espaço no noticiário esportivo. [2] Para abrir caminho nas páginas das revistas, as atletas têm que ganhar de forma categórica.
O esporte feminino representa em média 16% do volume ocupado pelas páginas esportivas… que ocupam, no máximo, 1% das páginas da imprensa “feminina”. A televisão francesa, em 1997, dedicou dois terços de suas retransmissões aos esportes mais masculinos (futebol, ciclismo, rúgbi, esportes automobilísticos, boxe). O tênis, o atletismo e o golfe, onde figuram algumas atletas, não passou de 17% do tempo total… sobrando 25 horas (1,2% do total) de patinação, um esporte decididamente feminino.
Baixa o machismo
E de fato, embora vejamos agora mulheres iatistas, ciclistas, piloto de automóveis ou alpinistas… é na patinação artística e na ginástica esportiva que estão os esportes onde elas são mais visíveis. Onde se trata de “graça” nos gestos e nas figuras, onde as aparências são trabalhadas através das roupas e da maquilagem, onde o corpo produtivo, em suma, conta menos que o corpo estético: ali estão os esportes femininos que retêm a atenção, a audiência.
Basta ouvir os jornalistas esportivos: o homem é descrito naquilo que ele faz; quando se trata da mulher, é impossível escapar a uma apreciação estética. Quando a atleta aparece, procuram a mulher:”a sempre bela e sempre rápida Florence Griffith Joyner”, ou a alpinista Catherine Destivelle, que, “tranqüilamente temível atrás de seu belo sorriso, chega sempre ao cume”. A revista L’Équipe magazine [3] não hesitou em opor, na questão da “feminilidade”, a ciclista Jeannie Longo a Muriel Hermine (natação sincronizada). Em legenda de uma foto desta última (“bela e feminina”), a jornalista indicava: “De quem é a culpa se Longo rima com macho e Hermine com feminino?” [4] Uma estava em conformidade com o referente normativo da “feminilidade”, a outra não.
O estereótipo da excelência feminina
A praticante de natação sincronizada, a dançarina, a ginasta ou a patinadora representam o “modelo” da mulher esportiva. Isso fica bem claro quando as mulheres se dedicam a esportes “de tradição masculina”, ou quando sua morfologia difere daquela da mulher-padrão. No ciclismo, por exemplo: “A subida de Morzine, em particular, permite convencer os milhares de espectadores presentes que as garotas também sabem manter-se sobre uma bicicleta. É claro que seria mais feminino imaginá-las atrizes ou manequins, mas seria bom que o homem, em 1985, compreenda finalmente que a mulher não tem por papel permanente ser feminina a fim de seduzir o macho. Algumas garotas do pelotão, aliás (grifo nosso), nada têm a invejar, do ponto de vista físico, às modelos da Playboy. Tirem seu colant de ciclista, façam-lhes uma maquiagem e vocês não ficarão desiludidos.” [5]
Sob o maiô — bem como sob esses propósitos ambíguos —, no fundo é A Mulher que se procura… e que se exige. As atletas dos países do Leste europeu, por exemplo, não eram descritas, no fim da década de 80, como “erros da natureza” e “monstros”? [6] O esporte se coloca ao mesmo tempo como repositório de uma excelência feminina estereotipada e das virtudes viris. A diversidade das morfologias tem referenciais masculinos; ninguém acha que um saltador em altura possa ter a mesma corpulência que um lançador de peso. Mas no que se refere às atletas, existe o desejo de que fossem todas semelhantes, magras e longilíneas, como se, para elas, a eficácia do gesto e da técnica pudesse ser independente da capacidade física e de pré-requisitos morfológicos.
Tabus intocáveis
“O esporte ameaça a beleza?” é uma pergunta recorrente, conjugada exclusivamente no feminino: “Não há nada de mais belo no mundo que uma Mary Decker correndo. Suas pernas adoráveis, que a justo título foram homenageadas por uma grande revista norte-americana, engendram uma pancada que permanece elegante e distinta mesmo (grifo nosso) que implique num profundo esforço.” [7] Exige-se da atleta que ela demonstre (ou mesmo prove) sua identidade usando artifícios próprios às mulheres: cabelo arrumado, jóias, maquiagem ou unhas pintadas (esse tipo de pergunta foi feito às participantes da Volta à França feminina, [8] em 1999). A partir destes sinais, superficiais mas tidos como constitutivos da feminilidade, as atletas podem esperar ser notadas por aquilo que são e também por aquilo que fazem.
Olhando bem para as marginalidades toleradas e aquelas que não o são, dois campos de expressão da virilidade se destacam: um, de conhecimentos e experiência, o outro, mais “pessoal”, de uso e de imagens do corpo — um e outro caracterizam o homem em relação aos outros, aos objetos, ao mundo exterior. As mulheres podem, sem transgredir demais, se apropriar de certas prerrogativas do primeiro (veja-se, por exemplo, o reconhecimento de Florence Arthaud, Michèle Mouton, Catherine Destivelle), mas violam um tabu ao se apropriarem de certos aspectos do segundo (boxeadoras, lutadoras, jogadoras de rúgbi são invisíveis à mídia).
Masculinização “natural” ou “artificial”
Elas sofrem, então, um processo de virilização, que embora atual no esporte já caiu em desuso. Como as escritoras e artistas de antigamente, quando as mulheres saem dos espaços e dos papéis que lhes são estritamente destinados, são designadas como masculinas, “viris”, ou mesmo assexuadas. Ao romper o papel que cabe às mulheres, elas não podem senão masculinizar-se.
Os “casos” de dúvida quanto ao sexo real dos atletas são antigos. Na primeira metade do século XX pensava-se que o esporte masculinizava as mulheres. Esse “excesso de virilidade” levaria à instalação da prova de feminilidade, devido à desconfiança do uso de hormônios masculinos pelas atletas na década de 60. Com o passar do tempo, de fato, o biotipo morfológico de atletas mulheres e homens vem se aproximando: gestos e eficácia técnica se confundem, assim como os corpos, tanto em sua aparência como no plano funcional. O físico avantajado das atletas, devido à sua natureza, ao treinamento ou à absorção de andrógenos, são indistintamente relacionados a estes constantes processos. A masculinização “natural” ou “artificial” e a suspeita quanto à sua feminilidade se confundem ao longo da história. Como pudemos observar com Amélie Mauresmo, a homossexualidade (declarada ou presumida) leva a este mesmo processo: seriam elas realmente mulheres?
O imaginário do Outro
O esporte reivindica “verdadeiras” mulheres e “verdadeiros” homens no sentido mais clássico. Ora, a prática esportiva traz a questão da semelhança, e mesmo da confusão, entre homens e mulheres. Aqui, o corpo não é jamais ignorado. Ele é o vetor principal em que se inscreve a identidade do indivíduo. O corpo do atleta é ativo, determinado para ver, ser visto e observado.
Através desta representação dos corpos, o esporte torna-se o lugar onde se joga o imaginário do Outro. Uma masculinidade e uma feminilidade desenhadas por suas diferenças mais acentuadas aí se expressam e são encenadas. O esporte quer e forja mulheres ideais, belas para (o) seduzir, assim como homens idealmente viris, isto é fortes ou corajosos para (a) conquistar. As práticas, as imagens e os discursos do esporte têm este ponto em comum: é a imagem que ela dá a ver de si própria que faz a mulher, como é a ação que faz o homem.
Não ao espetáculo da dor
Aos murmúrios do esporte feminino, o barão Pierre de Coubertin impôs os limites do aceitável: “Tecnicamente, as jogadoras de futebol ou boxeadoras que tentaram exibir por aí afora não apresentam qualquer interesse — serão sempre imperfeitas dublês (…). Mas se as atletas forem cuidadosamente afastadas do elemento espetáculo, não há nenhuma razão para bani-las. Veremos em que é que isso vai dar”. [9] Mais tarde, em 1928, a lembrança que se guardou da primeira prova de 800 metros femininos foi a de que “não era uma coisa bonita”. E na década de 40 se dirá das ginastas que “elas não deveriam jamais dar, às barras paralelas, o espetáculo de rostos com sofrimento, causado por contrações dolorosas, por quedas difíceis”.
As imagens de atletas no auge do esforço permanecem minoritárias, quando não são mostradas como contra-exemplos. Por exemplo, durante a primeira maratona olímpica feminina, em 1984 em Los Angeles, as câmeras ficaram demoradamente direcionadas para a chegada de uma competidora que sofria e cambaleava… A imagem, inúmeras vezes reprisada, de Florence Griffith Joyner vencendo os 100 metros na Olimpíada de Seul, em 1988, não foi a de seu derradeiro esforço antes da linha de chegada, mas a de seu sorriso após tê-la atravessado.
Duas faces da mesma moeda
Através de uma atleta que só é mulher quando graciosa, sorridente ou ornamentada, não se destinaria a receita a uma única e mesma mulher — aquela que não podemos impedir, em termos da fantasia ao menos, de desejar possuir fisicamente, aquela que deve reservar alguns de seus aspectos (como o de dor) à intimidade e a um único homem (já que as marcas do prazer e da dor se confundem)? Em As Olimpíadas (1954), Henry de Montherlant escreveu: “Nestas jovens atletas, pode-se ver a oferta, com relação aos curiosos sob o olhar o de suas mães, deste último segredo que desprende de uma face desfigurada, este espasmo de dor onde antes só o marido teria tido o direito de se abandonar, sendo ele o criador e o senhor.” A atleta sorridente, de quem se celebra a “feminilidade”, e a atleta muito musculosa, angulosa, “masculina”, seriam assim duas faces de uma mesma moeda.
Como, portanto, espantar-se quando as representações tradicionais se reproduzem no campo do esporte, nos lugares (e na época) da descoberta de seu corpo em transformação, quando se desenham os contornos da masculinidade e da feminilidade? Desde a mais tenra idade, fazemos brincar os garotos e as garotas em campos diferentes. As práticas que lhes são propostas (ou impostas?), na escola ou no clube, também deveriam ser repensadas: que viriam as garotas fazer num clube se elas nã