Basta de presença francesa na África!
O slogan “França, vá embora!” espalha-se pelas antigas colônias francesas, sessenta anos após a independência. Manifestantes e intelectuais reivindicam o fim do franco CFA e a interrupção da operação militar Barkhane, empregada no Mali desde 2013. A dimensão da manifestação pegou Paris de surpresa
Um galo nas cores da bandeira francesa bicando um imponente saco de grãos com o formato do continente africano: no fim de 2019, essa charge viralizou nas redes sociais africanas, principalmente nos países de língua francesa. Seu sucesso é parte de uma onda inédita de críticas à França no que até recentemente era chamado de “seus domínios senhoriais”.1 Artigos de jornal, debates na TV, declarações e manifestações espalham essa crítica por toda a África ocidental. “Abaixo a França!” – esses eram os gritos ouvidos nas ruas de Bamako, no Mali, entre o fim de 2019 e o início de 2020, quando centenas de manifestantes se reuniram para exigir a saída das tropas da Operação Barkhane, destinada a combater os movimentos jihadistas. No mesmo momento, em Niamey, no Níger, estudantes rasgavam uma bandeira francesa.
Diante de tais protestos, autoridades francesas, inclusive o próprio presidente, Emmanuel Macron, começaram a falar em “mal-entendido” e até em uma “campanha de desinformação” liderada por uma potência concorrente – acusando, sem dar nome aos bois, a Rússia. É bem verdade que esta aproveitou o clima desfavorável à França para tomar uma parte do mercado de segurança na República Centro-Africana, em 2018, e que algumas das informações que correm as redes são falsas ou de má-fé, como a fotomontagem de dezembro de 2019 que sugeria, erroneamente, que o Exército francês havia entregado motocicletas aos jihadistas no Mali. Mas a crescente insatisfação tem sua origem na política da própria França para a África. “É um descontentamento, uma revolta, uma recusa ao controle do Estado francês sobre nossas autoridades e, por extensão, sobre nossas economias, sobre nossos povos”, resume, em um vídeo, o economista e membro da oposição marfinense Mamadou Koulibaly, ex-presidente da Assembleia Nacional de seu país.2
Embora não seja nova, a crítica ao imperialismo francês e à “Françáfrica”3 tem saído dos círculos intelectuais e militantes e ganhado as ruas. Essa mudança se explica pelo “amadurecimento de uma geração que não se preocupa mais com o que a França pode ter representado para os mais velhos, que olha cada vez menos para ela”, explica o escritor Boubacar Boris Diop, que escreveu, com a ex-ministra do Mali e militante antiglobalização Aminata Dramane Traoré, um livro cujo título já diz muito: La Gloire des imposteurs [A glória dos impostores] (Philippe Rey, 2014). As redes sociais, como sempre, funcionam amplificando e acelerando todo esse processo.
“Uma guerra por recursos naturais”
Entre as queixas dirigidas à antiga potência colonial está a “cooperação monetária” com catorze países africanos desde 1960. Retomando uma crítica até então confidencial,4 militantes, economistas e opositores começam a fazer campanha aberta pelo fim da moeda herdada da colonização e atualmente dividida em duas áreas: o franco CFA da África ocidental e o franco CFA da África central. Ligada ao euro, a moeda permanece sob a tutela da França, que garante sua conversibilidade. Para os críticos, o franco CFA dificulta o desenvolvimento de países que acabam sendo privados de parte de sua soberania. Eles defendem a criação de moedas regionais ou nacionais. No Senegal, por exemplo, a Frente Revolucionária Anti-Imperialista Popular e Pan-Africana (Fraap) adota um slogan bem direto: “França, vá embora!”.
Essa mobilização obrigou Macron, que em 2017 havia declarado que o franco CFA era um “não assunto para a França”, a mudar radicalmente seu discurso. Em dezembro de 2019, durante uma visita a Abidjan, ele anunciou – para surpresa de todos – uma reforma do franco CFA da África ocidental. Os oito Estados envolvidos não precisarão mais colocar 50% de suas divisas no Tesouro francês. No entanto, meia centena de intelectuais africanos denunciam a persistência dos “laços de subordinação monetária”, sobretudo a manutenção de paridade fixa com o euro.5
Com o recrudescimento dos ataques no Sahel, a presença militar francesa na África tornou-se outro assunto polêmico, que mobiliza o grande público. Desde 1960, a França mantém uma rede de bases permanentes e temporárias em suas antigas colônias.6 O Exército francês costuma ser usado para levar ao poder ou proteger líderes aliados, como Omar Bongo, no Gabão, em 1990, ou Idriss Déby Itno, no Chade, em 2008. Em 2011, a intervenção das forças francesas para permitir que Alassane Ouattara assumisse a presidência da Costa do Marfim, após uma crise pós-eleitoral que acabou em um massacre, foi vista como um acerto de contas com o chefe de Estado que deixava o poder, Laurent Gbagbo.7 Na cidade camaronesa de Duala, centenas de condutores de mototáxi manifestaram sua desaprovação em relação à “ingerência francesa”.
Desde 2013 e a Operação Serval, que pôs fim à ofensiva jihadista em Bamako, as críticas se intensificam à medida que grupos armados recuperam terreno, semeando a morte no Mali e em Burkina Faso. Parte dos malineses avalia que “a França só intervém por interesses econômicos e estratégicos ocultos, que ela participa da desestabilização do país para legitimar sua presença, mas, acima de tudo, que ela tomou o partido dos ex-rebeldes tuaregues”, analisa Boubacar Haidara, pesquisador associado do laboratório Les Afriques dans le Monde (LAM) [As Áfricas no Mundo], do Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux. “Muito me espanta que os franceses não tenham sido capazes de erradicar esses bandos terroristas. […] Eles realmente querem acabar com tais grupos, ou têm outros objetivos?”, pergunta Chérif Sy, ministro da Defesa de Burkina Faso, em uma entrevista ao semanário sul-africano Mail & Guardian, em junho de 2019.8
As alianças forjadas pelo Exército francês, como a que ele mantém com o Movimento Nacional de Libertação do Azauade (MNLA), alimentam a desconfiança. Com os islamistas do Ansar Dine, esse grupo armado foi responsável, em 2012, pelos primeiros ataques contra campos militares no norte do Mali. Pouco depois, o Exército francês transformou-o em parceiro na guerra contra os jihadistas. As forças europeias “deram” ao MNLA a cidade de Kidal, depois de libertá-la, em 2013, segundo as palavras do ex-embaixador francês Nicolas Normand em Bamako.9 O fato de Macron ter sido o primeiro a anunciar, em novembro de 2019, que o chefe do governo do Mali logo visitaria a cidade, ainda controlada pelo MNLA e seus aliados, reforça as suspeitas. “Para alguns malineses, essa é a prova de que ele poderia resolver o problema de Kidal”, comenta Haidara. “Os malineses não veem nada além da ineficácia – real ou suposta – das forças estrangeiras, nem sempre levando em conta a grande dificuldade de lidar com o problema da segurança, cujos fatores são muito complexos”, acrescenta, esclarecendo que outras forças armadas estrangeiras provocam desconfiança, inclusive as forças da ONU.
Até então silencioso, o mundo da cultura está se envolvendo nessas questões. Em uma carta aberta endereçada a Macron, Cheick Oumar Sissoko, cineasta e ex-ministro da Cultura do Mali, denuncia o “habitus colonial”, essa “disposição de espírito feita de complexo de superioridade e soberano desprezo em relação aos povos dominados, explorados pelo colonialismo francês, que é ancorada, cultivada e mantida […] dentro da classe dominante francesa”. O cantor malinês Salif Keïta causou uma grita no lado francês ao dizer que não existem “jihadistas na África, e sim mercenários pagos pela França”. Ele acusou o presidente do Mali, Ibrahim Boubacar Keïta, de “perder tempo tentando agradar esse Emmanuel Macron, um garoto”. O músico, que fez essas declarações do exterior, teve uma recepção triunfante quando voltou a Bamako. “Chamar o presidente francês de ‘rapazinho’ é algo que ninguém jamais fez. E todos adoraram”, observa Boubacar Boris Diop.
As autoridades francesas só fazem negar as alegações. “A França não está ali com objetivos neocoloniais, imperialistas ou com finalidades econômicas. Estamos lá pela segurança coletiva da região e pela nossa própria segurança”, afirmou Macron em 4 de dezembro de 2019. “A França não tem nenhum interesse no Mali, nenhum objetivo econômico ou político”, já havia sustentado o presidente François Hollande em 2013. Mas essas negações pesam pouco diante dos comentários, insistentemente repetidos nas redes sociais, de Hama Ag Mahmoud, ex-membro do MNLA e ex-ministro do Mali: “Há uma guerra por recursos minerais”.10
Macron não consegue esconder a irritação. No final de 2019, ele reclamou da “ambiguidade” exibida pelas “autoridades políticas” africanas em relação aos “movimentos antifranceses”. Mirando nos dirigentes dos países do G5 Sahel (Burkina Faso, Mali, Mauritânia, Níger e Chade), o presidente lançou um ultimato: “Espero que eles esclareçam e formalizem suas demandas em relação à França e à comunidade internacional”, e acrescentou: “Preciso que afirmem isso politicamente diante de suas opiniões públicas”. Comentários imediatamente interpretados como um desejo de calar as críticas. “Estamos em uma democracia”, respondeu pela mídia o presidente de Burkina Faso, Roch Marc Christian Kaboré. “Não podemos impedir que as pessoas expressem suas opiniões.”
Diante das críticas, as autoridades francesas parecem ainda mais febris, pois, além da Rússia, outros Estados poderosos, incluindo a China e a Turquia, buscam ampliar sua influência comercial e militar no continente, multiplicando as parcerias bilaterais. Dessa forma, a França se vê empurrada por todos os lados, num momento em que seus recursos financeiros diminuem.
Presidentes de mãos atadas
“O que os franceses devem fazer? Resignar-se à descolonização. Eles já alongaram muito o prazer ali – ou o suplício, dependendo do ponto de vista. Mas é preciso aceitar o veredicto da história. Quando Salif Keïta disse a Ibrahim Boubacar Keïta: ‘Saia antes que seja tarde demais’, isso também vale para a França”, destaca Boubacar Boris Diop. “Embora saibamos que não é tão simples assim.” Ainda mais que, apesar do “descontentamento geral”, há um dado que não muda, observa o escritor: “Sejam do poder ou da oposição, os políticos têm, com poucas exceções, pavor de dizer qualquer coisa de ruim sobre a França”.
Agora, os presidentes da África francófona, alguns dos quais no cargo há várias décadas, estão presos entre, de um lado, uma crescente demanda popular por emancipação e, de outro, pressões das autoridades francesas, atentas a seus interesses econômicos e de segurança. Muitos sabem que não estariam no poder sem a ajuda da França. Nenhum deles esqueceu as represálias a seus antecessores que se opuseram à França, como o guineense Ahmed Sékou Touré, que sofreu diversas tentativas de desestabilização, e o burquinense Thomas Sankara, derrubado por um golpe de Estado e assassinado em 1987.11 Em 2 de dezembro de 2019, as autoridades da Costa do Marfim viram-se obrigadas a expulsar Nathalie Yamb, uma suíço-camaronesa estabelecida em Abidjan e membro do partido de oposição marfinense Liberdade e Democracia para a República, por “atividades incompatíveis com o interesse nacional”. No final de outubro, durante a cúpula Rússia-África em Sochi, Nathalie acusou a França de considerar a África “sua propriedade” e chamou os líderes da zona do franco de “lacaios da França”. Nos últimos anos, apenas os dirigentes de Camarões usaram a alavanca “anti-França”, em um confronto com Paris sobre o futuro político do país: durante alguns meses, a mídia próxima à presidência adotou um discurso virulento contra as autoridades francesas.
Entre os opositores, raros são aqueles para os quais a crítica ao imperialismo francês é também uma oportunidade de reavivar os ideais de desenvolvimento nacional outrora defendidos pelo malinês Modibo Keïta ou pelo burquinense Sankara. Enquanto isso, o governo francês segue no mesmo rumo: em 2 de fevereiro de 2020, ignorando as opiniões de muitos atores e observadores que avaliam que a “prioridade securitária” não bastará para estabilizar o Sahel, anunciou o reforço dos efetivos da Operação Barkhane, elevados de 4.500 para 5.100 homens.12
Fanny Pigeaud é jornalista e autora, com Ndongo Samba Sylla, de L’Arme invisible de la Françafrique. Une histoire du franc CFA [A arma invisível da Françáfrica. Uma história do franco CFA], La Découverte, Paris, 2018.
1 Ler Olivier Piot, “La fin du pré carré” [O fim dos domínios senhoriais], Manière de Voir, n.165, jun.-jul. 2019.
2 “Jeudi, c’est Koulibaly! ‘M. Macron, vous pouvez donner mille instructions à nos chefs d’État…’” [Olha a quinta aí, é dia de Koulibaly! “Macron, você pode dar mil instruções a nossos chefes de Estado…”], YouTube, 5 dez. 2019.
3 Cf. François-Xavier Verschave, La Françafrique. Le plus long scandale de la République [Françáfrica. O mais longo escândalo da República], Stock, Paris, 1998.
4 Ler Sanou MBaye, “Le franc CFA, monnaie anachronique” [O franco CFA, moeda anacrônica], Manière de Voir, n.165, jun.-jul. 2019.
5 “Des intellectuels africains réagissent aux réformes du franc CFA” [Intelectuais africanos reagem às reformas do franco CFA], SenePlus, 7 jan. 2020. Disponível em: www.seneplus.com.
6 Ver mapa “Interventions militaires françaises en Afrique” [Intervenções militares francesas na África], Manière de Voir, n.165, jun.-jul. 2019.
7 Ler “Débâcle de l’accusation contre M. Gbagbo” [Acusação contra Gbagbo desaba], Le Monde Diplomatique, dez. 2017.
8 Simon Allison, “I question France’s motives, says Burkina Faso’s defence minister” [Eu tenho dúvidas sobre os motivos da França, diz ministro da Defesa de Burkina Faso], Mail & Guardian, Johannesburgo, 4 jun. 2019.
9 Christine H. Gueye, “Un ex-ambassadeur français au Mali éclaire les propos de Salif Keïta sans les excuser” [Ex-embaixador francês no Mali esclarece as palavras de Salif Keïta, sem desculpá-las], Sputnik, 22 nov. 2019. Disponível em: https://fr.sputniknews.com.
10 “‘La France nous avait donné son feu vert pour l’indépendance de l’Azawad’” [“A França nos deu sinal verde para a independência do Azauade”], Le Courrier du Sahara, 9 abr. 2015.
11 Ler Manière de Voir, n.165, jun.-jul. 2019.
12 Cf. Marc-Antoine Pérouse de Montclos, Une guerre perdue. La France au Sahel [Uma guerra perdida. A França no Sahel], Jean-Claude Lattès, Paris, 2020.