Béria pai visto por Béria filho
Jean-Jacques Marie
Transportando o mito de Janos para a vida moderna, Stalin inventou os indivíduos de duas caras, uma pública e mentirosa, outra verídica mas dissimulada. A expressão poderá se aplicar ao filho de Lavrenti Béria, cuja versão francesa de suas memórias publicada em 1999, diz outra coisa, até mesmo o inverso daquilo que afirmavam suas recordações publicadas em 1994, na Rússia; sua memória se transforma com o correr do tempo ou da pressão social.
Na edição russa, o chefe da GPU georgiana Mikeladzé , vendo um navio costeiro (no qual se encontrava Stalin), atirou para o alto para chamar a atenção da tripulação: “Eu reafirmo: para o alto e não no barco” (pág. 28). Mas, em francês, ao contrário: “Inadvertidamente, atirou no navio no qual Stalin passeava” (p.53).
Na edição russa, o georgiano Koudriavtsev é torturado para “confessar que Béria era trotskista” (p.80). Esse trotskismo desaparece em francês (p.48). Ao contar a chegada a Leningrado, em maio de 1941, de um submarino alemão cujo oficial entrega a seu pai os planos de guerra de Hitler, ele afirma em russo: “não subi a bordo” (p.173). Mas muda de opinião em francês:”Nós entramos no submarino” (p. 108). Esses detalhes ilustram o esquema geral da obra.
Na edição russa , Béria filho denuncia como “uma acusação absolutamente sem fundamento” (p.217) a afirmação de que no dia seguinte ao término da guerra Stalin abandonou os membros da resistência, comunistas gregos; já na publicação em francês, ele se gaba de, em 1946, por ocasião de um seminário de formação política, ter heroicamente ” explicado como tínhamos deixado os comunistas gregos escolher seu caminho após o acordo com Churchill” (p.267).
Mentira e pretensão
O cúmulo é a valsa dos furos. Em russo, o filho de Béria pretende: “Desde antes da 2a guerra mundial os serviços de informação soviéticos estavam estreitamente ligados à Igreja polonesa, sobretudo à Igreja católica. Um dia, um novo convidado aparece em nossa casa (…) um bispo da Polônia. Meu pai declararia mais tarde que o homem que lá estivera tinha em suas mãos todos os serviços de informação europeus” (p.146). Este prelado polonês, que controlaria a espionagem européia para o Kremlin foi retirado da versão parisiense.
Um outro estranho convidado, desaparece surpreendentemente também em francês. Em russo, “em fins de 1939 um jovem apareceu lá em nossa casa”: (p.288) Robert, que falava inglês e que os Béria hospedaram por duas semanas. O jovem Oppenheimer viera lhes propor “realizar um projeto” …atômico! (p.289). Este “furo” capaz de provocar uma síncope em um membro da CIA desapareceu na edição da Plon, da mesma forma que a acusação feita contra Kruschev de ter afirmado aos americanos que “Ethel e Lilian Rosenberg eram nossos espiões” (p.287).
O jogo dos acréscimos completa o das supressões. O leitor francês fica sabendo assim – o que o moscovita ignora — que a austera e piedosa mãe de Stalin era, na realidade, uma mulher leviana. Mas, sobretudo, fica sabendo que Stalin preparava a conquista da Europa e do mundo. Em russo, Sérgio Béria se contenta em afirmar que “a União Soviética desencadeou a guerra da Coréia” (p.402). A Edição francesa inclui um novo capítulo intitulado “O Grande Projeto de Stalin”, onde podemos ler: “Em 1952, o país inteiro estava em pé de guerra. Os objetivos do Comitê Central eram perfeitamente claros: nós preparávamos a terceira guerra mundial e esta seria uma guerra nuclear” (p. 324) . E viva a OTAN!
Sérgio Béria apresenta seu pai, o chefe de polícia, como um humanista liberal, hostil à repressão e anticomunista. Em russo, como em francês, o filho, em nome do pai, amaldiçoa o “bolchevismo”, fonte de todos os males. Béria anticomunista é uma das raras constantes nas duas versões e uma de suas raríssimas verdades…
Serge Béria, Béria, mon pè