Big Brother
A febre do fenômeno “Loft Story” (versão francesa do programa de TV “Big Brother”, que inspirou o brasileiro “No Limite”) assumiu tamanhas proporções que o próprio Festival de Cannes e a fase final da Liga dos Campeões de futebol foram obscurecidosIgnacio Ramonet
Jamais, na história dos meios de comunicação da França, um programa de televisão conseguiu apaixonar, fascinar, agitar, perturbar, enervar e irritar o país tanto quanto o vem fazendo, desde o dia 26 de abril, o programa “Loft Story”, no canal M6, que chega a atingir, em alguns momentos, uma audiência de mais de dez milhões de telespectadores… Simplesmente, não há precedentes… Seria, em seu sentido mais cru, uma situação única, sem referências. Embora sabendo que as imagens nos informam mais sobre a sociedade que as vê do que sobre si próprias, aqui, o seu significado está longe de ser claro.
O fenômeno assumiu tamanhas dimensões que o próprio Festival de Cannes e a fase final da Liga dos Campeões de futebol foram, em grande parte, obscurecidos pela febre “Loft Story”. Uma febre que assumiu proporções de tal forma extravagantes que a grande imprensa internacional — deixando de lado outros problemas políticos, econômicos e sociais — não hesitou em dedicar várias reportagens a essa “França tomada pela loucura Loft Story”.1
Assunto de Estado ou fascismo?
“’Loft Story’ passou a ser um autêntico assunto de Estado”, declarou Hervé Borges, ex-presidente do Conselho Superior do Audiovisual
Importantes jornais nacionais diários (Le Monde, Le Figaro, Libération, Le Parisien, France-Soir, Le Journal du Dimanche etc.), assim como semanários de grande tiragem (L’Express, Le Point, Le Nouvel Observateur, Marianne, VSD, Télérama etc.), foram rapidamente levados, por um efeito de “mimetismo midiático”2, a dedicar suas manchetes de capa, e por várias vezes, a esse fenômeno das comunicações que invade o meio sociológico. Com isso, alcançaram recordes de vendagem e contribuíram para ampliar a onda em expansão do sucesso de “Loft Story”.
Psicodrama nacional, estado de choque absoluto: em todos os meios de comunicação, polêmicas e debates — a favor e contra o programa — multiplicaram-se. “Loft Story deixa de ser um evento de programação e passa a ser um autêntico assunto de Estado!”, declarou, por exemplo, Hervé Bourges, ex-presidente do Conselho Superior do Audiovisual (CSA).3 “Esse tipo de programa contribui para instaurar um fascismo hipócrita”, afirmou Jérôme Clément, presidente do canal Arte France.4 “Loft Story”, avaliou a Conferência dos Bispos da França, “é um excelente exemplo dos descaminhos a que pode conduzir a busca desenfreada por lucros. Os jovens que participam do programa são tratados como cobaias de um cientista louco que teria amontoado alguns ratos e ratazanas numa caixa de sapatos, sem se preocupar com o que aconteceria com eles.”5
O jogo da eliminação progressiva
“Esse tipo de programa contribui para instaurar um fascismo hipócrita”, afirmou Jérôme Clément, presidente do canal Arte France
Radicalmente hostis ao programa, algumas associações e coletivos de cidadãos — tais como “Sorria, você está sendo filmado”, “Zalea TV”, “Aprendizes de agitador para uma rede de resistência global”, “Solidarloft” etc., apoiados, entre outros, pela Liga Comunista Revolucionária, Juventude Comunista, o sindicato anarquista CNT, Attac e o Forum da Juventude do Partido Verde — chegaram a fazer manifestações, em Paris, Nantes, Rennes, Toulouse e Marselha, em frente às sedes do canal M6, depositando sacos de lixo e, às vezes, partindo para confrontos violentos com as forças da ordem… Trinta e dois anos após maio de 68, a França se reencontra subitamente dividida em duas e mergulhada num “maio de Loft Story”.
Em que consiste exatamente esse programa? Apresentado pelo canal M6 como “uma ficção real interativa”, “Loft Story”6 é uma espécie de jogo coletivo cuja dinâmica se baseia na eliminação progressiva dos participantes através do voto dos telespectadores. Trancados durante dez semanas (70 dias), num amplo loft7 de 225 metros quadrados com jardim e piscina, isolados do resto do mundo — sem televisão, telefone, jornais, rádio ou Internet — e sendo filmados praticamente 24 horas por dia por todos os cômodos da habitação (exceto nos banheiros), onze pessoas solteiras (seis rapazes e cinco moças) de idade inferior a 35 anos (selecionadas entre 38 mil candidatos…), devem se integrar a uma vida de grupo, revelar as personalidades uns dos outros, para, finalmente, constituir um casal ideal. Estas duas pessoas ganharão uma casa no valor de 3 milhões de francos (cerca de 1 milhão de reais)…, onde deverão morar juntas por mais seis meses — sempre sendo filmadas — para, enfim, ganhar o direito definitivo à propriedade.
Um processo de cretinização
“Um exemplo dos descaminhos a que pode conduzir a busca desenfreada por lucros”, avaliou a Conferência dos Bispos da França
Nada menos de 26 câmeras, três das quais com filtros infra-vermelhos, e cinqüenta microfones equipam o apartamento, sob o controle de mais de uma centena de técnicos e diretores, mobilizados noite e dia, para garantir a filmagem sem cortes. O programa vai ao ar gratuitamente pelo canal M6 (mas entulhado de anúncios) na forma de resumos diários de 52 minutos, e pode ser obtido, mediante o pagamento de uma assinatura, em sua forma integral (embora depurado de imagens ou cenas consideradas chocantes), através de um pacote digital de televisão por satélite, assim como pela Internet (loftstory.com).
Sob o nome de Big Brother,8 esta concepção de programa teve origem na Holanda, em setembro de 1999, onde foi realizado pela empresa Endemol (resultado da fusão dos nomes de seus fundadores, Joop Van den Ende e John de Mol). Difundido pelo pequeno canal “Veronica”, este veria imediatamente sua audiência explodir. A partir de então, esse modelo de programa — filmar sem parar, e sem cortes, um grupo de pessoas simpáticas que fica evoluindo num espaço fechado — foi exportado, com variantes mais, ou menos, sórdidas,9 para uns vinte países, do Brasil à Polônia, dos Estados Unidos à Espanha, da Argentina à Suécia e à Austrália. Assim como atualmente na França, o programa teve em quase todos os países um prodigioso sucesso de audiência (nos Estados Unidos, Survivor teve uma audiência superior a 50 milhões de telespectadores!), a ponto de alguns canais terem chegado a vender em leilão lençóis e objetos usados pelos participantes.10 Como se tivesse sido globalizado aquilo que Annie Le Brun denomina “um processo de cretinização geral, reunindo devotos de todos os países, assim como de todas as classes e de todas as idades”.11
Controvérsias e debates alucinantes
Trinta e dois anos após maio de 68, a França se reencontra subitamente dividida em duas e mergulhada num “maio de Loft Story”
Filmado com ajuda de câmeras de vigilância e através de espelhos unilaterais (vidro espelhado), o programa reproduz um ambiente típico de controle (policial, carcerário, militar), reforçado pela eliminação de ângulos fechados, pela multiplicação de plongées, pelas câmeras com filtros infra-vermelhos… O que dá ao espectador uma sensação de poder, de autoridade, de dominação (várias cenas são filmadas de cima) e, ao mesmo tempo, acaba reforçando, com o tempo, um sentimento protetor (paternalista) com relação aos prisioneiros voluntários.
Esse sentimento de onipotência, fortalecido pelo fato de as personagens terem, em geral, um comportamento psicológico simples, fácil de decifrar (e ainda por cima vêm justificar esse comportamento, olhos nos olhos, no “confessionário”), leva os telespectadores a sentirem uma relação afetiva com os heróis da série. Essa seria, pelo menos em parte, uma explicação óbvia para esse fascínio coletivo diante de cenas tão simples, vazias, banais, ocas, e de tantos diálogos imbecis e de tantas situações inúteis.
O programa também provocou por toda parte enormes controvérsias e debates alucinantes, que às vezes chegaram a exorbitar (na Itália, o próprio papa João Paulo II foi obrigado a uma intervenção, condenando-o explicitamente).
Seríamos todos voyeurs?
“Loft Story” é uma espécie de jogo coletivo cuja dinâmica se baseia na eliminação progressiva dos participantes através do voto dos telespectadores
Numa rápida análise da arqueologia televisiva, compreende-se facilmente que uma porção de sinais e sintomas já vinha apontando há algum tempo para a inevitável chegada desse tipo de programa, onde se entrelaçam de forma inextricável o voyeurismo e o exibicionismo, a vigilância e a submissão.
Sua remota matriz talvez se encontre num célebre filme de Alfred Hitchcock, Rear Window (A janela indiscreta), de 1954, no qual um repórter fotográfico (James Stewart), imobilizado, em casa, com uma perna engessada, observa, por falta do que fazer, o comportamento dos vizinhos do prédio oposto. Num diálogo com François Truffaut, Hitchcock confessa: “É, o homem era um voyeur. Mas não seríamos todos nós voyeurs?” E Truffaut reconhece: “Somos, na verdade, voyeurs, principalmente quando assistimos a um filme intimista. Aliás, a situação de James Stewart, à sua janela, é a de um espectador assistindo a um filme.” E Hitchcock constata: “Eu aposto com você que nove em cada dez pessoas não resistem a olhar se vêem, do lado oposto do pátio, uma mulher se despindo antes de se ir deitar ou simplesmente um homem arrumando seu quarto. Poderiam desviar o olhar, dizendo: ’Não tenho nada com isso’, poderiam fechar a janela, mas pode ter certeza que não o fariam, ficariam olhando.”12
A intimidade pelo olho mágico
Sob o nome de Big Brother, esta concepção de programa teve origem na Holanda, em setembro de 1999, onde foi realizado pela empresa Endemol
A essa pulsão irresistível de olhar, de observar, de ver sem ser visto, corresponde, de certa forma, o contrário: a vontade impudica de se mostrar. E esta, com o impulso da Internet, passou por uma espécie de explosão, através das webcams,13 essas filmadorazinhas que expõem imagens na Rede, a intervalos regulares. O fenômeno das webcam faz furor por toda parte. Um exemplo: já há vários anos, cinco estudantes (rapazes e moças) da cidade de Oberlin, no Estado de Ohio (Estados Unidos), exibem-se on line (www.hereandnow.net), 24 horas por dia, em qualquer das dependências dos dois andares de sua casa. São acompanhados por cerca de 40 câmeras (mais que no “Loft Story”), dispostas por todos os cômodos da casa. Existem milhares como eles, solteiros, casados, famílias que convidam — sem qualquer constrangimento — internautas do mundo inteiro a partilharem sua intimidade e a observarem sua vida diária praticamente sem qualquer proibição.14
Porém, mesmo sem Internet, as pessoas hesitam cada vez menos em se expor sem tabus ao olhar de outras. Na Maison Radieuse (Casa Radiosa), por exemplo, um prédio projetado por Le Corbusier em Reze, perto de Nantes, os moradores criaram uma curiosa diversão: serem observados por desconhecidos. Inverteram o olho mágico de sua porta e exibem a sua intimidade a qualquer pessoa que encostar o olho na porta…15
O Jornal da morte
Um outro aspecto que fere a idéia que se poderia ter de proteção da vida privada é o fato de estarem se multiplicando os jornais íntimos na Internet. Se até agora eram sigilosos e pessoais, as autobiografias e os diários íntimos circulam livremente pela Rede. Um número cada vez maior de pessoas compartilha, sem censura, seus pensamentos mais profundos, seus sentimentos mais ocultos, sua intimidade, com uma massa de internautas.
No ano passado, cegamos ao ponto de poder ver, na Internet, um chinês, Lu Yuqing, apresentar seu Jornal de morte, que se tornou um fenômeno na literatura eletrônica. Ao tomar conhecimento que iria morrer, esse jovem corretor imobiliário de Xangai decidiu compartilhar com seus contemporâneos, até o último instante, a luta que travava contra o câncer que destruía o seu estômago. Em seu último suspiro, disse: “Estou desligando. Eu amo vocês.”16
“Não gosto de usar roupa”
Com variantes mais — ou menos — sórdidas, o programa foi exportado para uns 20 países, do Brasil à Polônia, dos Estados Unidos à Suécia e à Austrália
Já nos programas comuns de televisão, multiplicaram-se os chamados programas de “Trash TV”, de tevê-lixo, que mostram pessoas exibindo, sem o mínimo pudor, seus problemas mais íntimos e suas paixões mais ocultas. O mais célebre desses programas é o “Jerry Springer Show”, onde convidados vêem fazer, ao vivo e diante de uma platéia delirante, confidências escandalosas ou revelações inacreditáveis sobre sua vida privada. Os temas são edificantes — “Querido, eu faço trottoir”, “Estou grávida de seu marido”, “Mamãe, você casa comigo?”, “Minha irmãzinha é prostituta” — e as revelações são feitas diante do seu parceiro, ou parceira, de sua família, acabando muitas vezes em insultos, brigas e agressões. E tem mais. No ano passado, o ódio acumulado durante um programa de Jerry Springer — que se chamava “Frente-a-frente das amantes rivais” — levou um casal a assassinar a ex-mulher do marido17… Com mais de 8 milhões de telespectadores, esse programa recebe a cada semana mais de 4 mil telefonemas de norte-americanos dispostos a revelar tudo por 15 minutos de fama.
Na França, um programa seguindo os mesmos conceitos — “com pessoas verdadeiras, que falam a verdade sobre suas verdadeiras vidas” — foi lançado, no outono do ano passado, com o título de “C’est mon choix” (É a minha opção), pelo canal FR3, foi um sucesso de audiência (7 milhões de adeptos) e provocou uma enorme polêmica.18 Os temas não ficam a dever nada aos do “Jerry Springer Show”: “Gosto de mostrar o meu corpo”, “Eu como uma farmácia”, “Odeio cabelos e pelos”, “Não gosto de usar roupa”, “Eu mostro minha vida privada na Internet”…
Um realismo que dá calafrios
É como se tivesse sido globalizado o que Le Brun denomina “um processo de cretinização geral, reunindo devotos de todos os países, classes e idades”
O crescente sucesso do sórdido no espaço televisivo intensificou o gosto por formas ainda mais óbvias de voyeurismo. O canal a cabo norte-americano Court TV, por exemplo, especializou-se na transmissão de processos filmados nos tribunais. Teve sua hora de glória por ocasião do processo de O.J. Simpson (jogador de futebol americano acusado de ter assassinado a mulher), no final da década de 90.
Com a concorrência dos canais que transmitem “Survivor”, a versão norte-americana de “Big Brother”, a Court TV decidiu ir mais fundo na busca pelo sensacional. Passou a transmitir as confissões dos criminosos. Com um realismo que dá calafrios na espinha, não hesita, por exemplo, em apresentar “as confissões de Steven Smith, que descreve o estupro e assassinato de uma médica num hospital de Nova York, em 1989, as de Daniel Rakowitz, que matou uma amiga e depois a esquartejou e cozinhou seu corpo, e as de David Garcia, um prostituto que conta a morte de um cliente imobilizado numa cadeira de rodas, em 1995…”19
Confusão entre fato e ficção
Filmado com câmeras de vigilância e através de espelhos unilaterais, o programa reproduz um ambiente típico de controle (policial, carcerário, militar)
O desconcertante sucesso popular desse tipo de programas lúgubres explica o motivo que levou 3.400 jornalistas (mais da metade dos que cobriram, em Sydney, os últimos Jogos Olímpicos) a se credenciarem para acompanhar a execução — prevista para 16 de maio deste ano e posteriormente adiada — de Timothy McVeight, autor de um atentado, em abril de 1995, que provocou 168 mortes em Oklahoma City. E também explica por que o próprio McVeight deseja que sua execução, pela injeção de um produto mortal, seja transmitida ao vivo pela televisão… O que parece confirmar esta reflexão de Paul Virilio: “Depois da publicidade e da propaganda política, a pornografia e a hiper-violência dos meios de comunicação abriram caminho a um conformismo da abjeção.”20
Esses programas provocaram o recuo progressivo dos limites do “mostrável” e aprofundaram a confusão entre documento e ficção, vida real e criação fictícia (leia, nesta edição, o artigo de Marc Augé). Desse ponto de vista, o ancestral mais direto de “Loft Story” seria, sem dúvida, “The Real Life” (A Vida Como Ela É), um seriado criado há dez anos pelo canal a cabo norte-americano MTV. Por um período determinado, sete jovens, “egressos da vida real”, selecionados entre milhares de voluntários, são convidados a viverem juntos numa casa onde passarão a ser permanentemente filmados. Não ficam presos na casa e, se é que se pode dizer assim, levam uma vida normal — vão à faculdade, ao trabalho etc. A cada ano, o programa é feito numa cidade diferente — Nova York, Miami, Seattle, Boston… Mas as características dos jovens adultos (homens e mulheres) são quase sempre as mesmas: o cara legal, a garota sexy, o jovem gay, a garotinha do interior, o obcecado por sexo etc.
Esperanças e desilusões sentimentais
A essa pulsão irresistível de olhar, de observar, de ver sem ser visto, corresponde, de certa forma, o contrário: a vontade impudica de se mostrar
Nos últimos dez anos, a cada dia, 26 semanas por ano, a MTV apresenta um episódio com uma montagem, dramatizada, dos momentos mais emocionantes do capítulo anterior. Entre todos os programas transmitidos pelos canais a cabo, este é o que tem maior audiência, em especial de telespectadores na faixa 12-34 anos. “Uma das principais coisas que são reveladas por esse programa a quem o assiste”, diz Jonathan Murray, produtor do seriado, “é ver como jovens tão diferentes conseguem compreender-se uns aos outros e acabam criando entre si vínculos muito emotivos.”21
Esse sucesso foi fonte de inspiração para recentes seriados de ficção (Sex and the City, Ally Mc Beal), e, em especial, o seriado cult Friends, produzido pela NBC, cujas personagens — seis amigos de Nova York (Joey, Ross, Rachel, Phoebe, Chandler e Monica) — são diretamente plagiadas de “The Real Life”. Baseado na idéia de que — para jovens urbanos, quase adultos, que saíram de casa mas ainda não se estabeleceram — a amizade é mais forte que qualquer outra coisa, Friends atinge, em média, uma audiência de 23 milhões de telespectadores… “No bar ou na ’república’ em que moram”, diz Marc-Olivier Padis, que faz o comentário desses seriados, “em torno do grande sofá (nem divã, nem poltrona) que é a marca registrada do seriado Friends, as esperanças e as desilusões sentimentais organizam o diálogo. As quatro amigas de Sex and the City têm mais mobilidade: elas passam pelos lugares mais badalados de Nova York, discutem nos ambientes mais variados, às vezes até em outros países. Em Ally McBeal, o escritório de advocacia, a sala de audiência do tribunal e o bar com música são os principais ambientes de uma ação que, também aí, consiste basicamente de um diálogo entre amigos e colegas de trabalho sobre a vida privada e sobre processos (divórcios, adoções, assédio…) que são assuntos íntimos.”22
Arqueo-televisão e neo-televisão
Um número cada vez maior de pessoas compartilha, sem censura, seus pensamentos, seus sentimentos, sua intimidade, com uma massa de internautas
Inevitavelmente, o consumo em massa do tema da intimidade pelo grande público não podia deixar de inspirar os produtores de cinema. São principalmente dois os filmes que abordam o assunto de frente: The Truman Show (1998), de Peter Weir, e Ed TV (1999), de Ron Howard. O primeiro, interpretado por Jim Carrey, conta a história de um jovem cuja vida evolui, desde a nascença e sem que ele o saiba, num imenso estúdio. Sua vida é permanentemente filmada por dezenas de câmeras ocultas e transmitida por um canal de televisão. Em Ed TV, a história é a seguinte: um canal de documentários de São Francisco com a audiência em declínio, a True TV, decide acompanhar, ao vivo, a vida de um homem comum, 24 horas por dia. Ed Pekurny (interpretado por Matthew McConaughey), vendedor de uma loja de vídeo games, é o candidato ideal. Permanentemente acompanhado por duas equipes, o jovem transforma-se na coqueluche dos telespectadores. Mas a coisa complica-se quando Ed descobre que está apaixonado pela noiva de seu irmão… Os dois filmes são parábolas sobre a vigilância permanente e a liberdade individual, assim como sobre a relação entre a aparência e a realidade, entre a vida privada e o espetáculo público.
Essa quantidades de precedentes teria que resultar, de forma quase inevitável, num programa do tipo “Loft Story”. Umberto Eco dividia a história da televisão em duas etapas: a arqueo-televisão de antes da década de 80, quando para aparecer na telinha era necessário ter algum valor (campeão de alguma coisa, ou um grande escritor, ou uma pessoa famosa etc.) e se apresentar em trajes de domingo, engravatado, expressando-se de maneira absolutamente correta. Era a televisão-pódio: só os melhores tinham acesso. Depois veio a neo-televisão (introduzida na França ainda na década de 80, justamente com o Canal 5, de Silvio Berlusconi), onde, por meio da multiplicação de jogos e de programas de auditório, o público, sem nenhum mérito específico, passou a ter acesso direto à telinha — bastava ser natural, ainda que vestido de maneira relaxada e falando gíria, para se tornar o herói instantâneo de um programa popular. (Exemplo disso nos dias de hoje seriam os programas Ça se discute, C’est mon choix e Voulez-vous gagner des millions?) Era a televisão-espelho, que supostamente reflete as pessoas tal como elas são.
As celebridades descartáveis
Os temas do “Jerry Springer Show” são edificantes: “Querido, eu faço trottoir”, “Mamãe, você casa comigo?”, “Minha irmãzinha é prostituta”…
Com programas do tipo Big Brother, como “Loft Story”, passa-se a uma nova etapa. Agora, o público (representado pelos prisioneiros voluntários) não só tem acesso direto a um programa comum, mas a um seriado televisivo. Ou seja, a algo que tem toda a aparência de ficção filmada. A recompensa simbólica não é apenas a satisfação pessoal, o narcisismo de ter aparecido na televisão, de ter conseguido fazer uma única e efêmera passagem (num jogo, num concurso, num depoimento). Agora, é tornar-se a personagem de uma história.
O que apaixona o público, mesmo que não tenha consciência disso, é a metamorfose que se opera sob seus olhos e que transforma pessoas basicamente comuns, retiradas da vida real, em personagens>/i< de uma história, de uma narrativa, de um roteiro que se parece com uma novela, com ficção. Os participantes do programa são simultaneamente eles próprios e, ainda mais, eles próprios, já que, ao se oferecerem como espetáculo, acabam tornando-se protagonistas de uma ficção filmada. E a aura da ficção facilita o acesso à fama.
Em nossas sociedades cada vez menos solidárias, transformadas em repúblicas da solidão, assistir à fama sendo construída sob seus olhos — com uma facilidade aparentemente tão grande — fascina (ou escandaliza) o público, especialmente o mais jovem. O qual nem sempre se apercebe que, no fundo, trata-se de um conto-do-vigário. Isso porque, em plena guerra de concorrência, o sistema dos meios de comunicação necessita freneticamente de pessoas famosas. Quer produzi-las rapidamente — como o faz em “Loft Story” — e explorá-las em cima da hora. Assim como também quer — para dar lugar a outras e mais novas celebridades — desfazer-se delas o mais rápido possível. Isso porque nesta fase canibal da cultura de massa — e numa hora em que, como diria Guy Debord, os progressos da subserviência ganham uma velocidade incrível — trata-se de fabricar celebridades descartáveis. Celebridades precárias.
(Trad. Jô Amado)
1 – Cf. , por exemplo, artigo de primeira página do International Herald Tribune, 21 de maio de 2001.
2 – Ler La Tyrannie de la communication, ed. Galilée, Paris, 1999.
3 – La Correspondance de la presse, 23 de maio de 2001.
4 – Le Monde, 15 de maio de 2001.
5 – Le Monde, 8 de maio de 2001.
6 – O título do programa inspira-se abertamente no de um célebre romance do escritor norte-americano Erich Segal, Love Story, lançado em 1970, que é até hoje um dos maiores sucessos editoriais do século XX, com mais de 21 milhões de livros vendidos na edição em inglês e traduzido para 23 línguas… O romance conta a história de dois estudantes — Oliver e Jenny — que, apesar da oposição dos respectivos familiares, se casam e descobrem, quando tudo parece um mar de rosas, que Jenny tem câncer… A quase imediata adaptação do livro para o cinema, num filme dirigido por Arthur Hiller e com os atores Ryan O’Neal e Ali MacGraw nos papéis principais, também conheceu um enorme sucesso mundial.
7 – Loft: um antigo estabelecimento comercial, ou industrial, transformado em moradias.
8 – Em alusão ao livro 1984, de George Orwell, publicado em 1949 e cujas personagens vivem sob a vigilância permanente de câmeras e microfones, no âmbito de um regime ditatorial cujo chefe é chamado Big Brother.
9 – Ler “Reality Show, la nuova frontiera”, La Repubblica, Roma, 15 de abril de 2001, e “Télé-réalité: le pire est-il à venir?”, Le Monde Télévision, 20 de maio de 2001.
10 – Na Austrália, onde foi rodado o programa Survivor II, as agências de turismo oferecem visitas, com guia, aos locais de filmagem da série…
11 – Ler, de Annie Le Brun, Du trop de réalité, ed. Stock, Paris, 2000.
12 – Ler, de François Truffaut, Le cinéma selon Hitchcock, ed. Robert Laffont, Paris, 1966.
13 – www.webcamvideo.com
14 – Ler, de Denis Duclos, “La vie privée traquée par les technologies”, e, de Paulo Virilio, “Le règne de la délation optique”, respectivamente nas edições de agosto de 1999 e agosto de 2000 de Le Monde Diplomatique
Ignacio Ramonet é jornalista, sociólogo e diretor da versão espanhola de Le Monde Diplomatique.