Biocentrismo ancestral: uma ecologia mais profunda
Um novo constitucionalismo está sendo apresentado na América Latina. Entre suas bases estão o paradigma biocêntrico, os direitos da natureza e o diálogo de saberes com povos originários. O biocentrismo ancestral mostra-se como a única saída possível para a crise ecológica e civilizatória, para uma percepção aprofundada da ecologia e como prática política e garantia de vida. Confira no novo artigo da série Desafios da integração.
Uma série de processos que tiveram uma de suas manifestações mais marcantes no Novo Constitucionalismo Latino-Americano e no que poderíamos chamar de sua culminância no Equador, em 2008, e na Bolívia, em 2010, expressou em conceitos como Bem Viver ou Direitos da Pachamama a potencialidade das propostas que surgiram, fundamentalmente, a partir dos movimentos indígenas. Nesses processos, e especialmente na consagração dos Direitos da Natureza ou Pachamama da Constituição equatoriana, houve um diálogo de saberes entre as propostas indígenas e algumas advindas da chamada Ecologia Profunda, fundamentalmente consolidada na Europa, embora tenha elementos de autores latino-americanos, como o jurista Godofredo Stutzin no Chile.
Essa proposta ecológica proporcionou o surgimento do conceito de paradigma biocêntrico, que contém um enorme potencial epistêmico e político, embora o aprofundamento de suas consequências em ambas dimensões não tenha sido ainda claramente desenvolvido. A consagração constitucional dos Direitos da Natureza constituiu uma novidade a nível global, uma novidade que contrasta com a natureza ancestral da sua prática nas comunidades originárias e que demonstra o absurdo e injusto dos processos genocidas, etnocidas e invisibilizadores que foram elementos centrais da formação dos nossos Estados-nação.
Uma das chaves epistêmicas para uma leitura latino-americana-caribenha desse paradigma biocêntrico na Constituição equatoriana é a palavra “ou”, talvez a mais relevante em todo o texto constitucional. Porque em seu artigo 71 a Constituição fala dos Direitos da Natureza ou Pachamama e isso nos permite entender a Natureza como Pachamama, ou seja, não a partir de uma visão ocidental, mas de visões de mundo indígenas. Isso implica que, para interpretar o que são os Direitos da Natureza, seja preciso perguntar ao mundo indígena, a seus conhecedores, àqueles que sabem o que significa Pachamama. Assim, dá-se uma virada epistêmica descolonizadora que só tem esse caráter na medida em que se mantém enraizada nessas visões de mundo e que se projeta na releitura de toda a construção do conhecimento.
Foram fundamentalmente os movimentos indígenas latino-americanos, especialmente nos países andinos, que fizeram emergir sua práxis de luta pela vida como proposta política e ecológica e que, em diálogo com outras contribuições que vinham sendo desenvolvidas, expressaram uma ecologia muito mais profunda do que a que leva esse nome. Esses mesmos movimentos deixaram claro que sua própria vida como proposta política oferece ao mundo “não indígena” uma inspiração para uma alternativa que supere o capitalismo como uma imposição econômica e civilizacional. Essas práticas são compartilhadas, em grande parte, por comunidades camponesas que, fundamentalmente, têm as mesmas raízes, e também, de forma muito clara, por comunidades rurais afro-latino-americanas e afro-caribenhas.

A chave para essa contribuição é o que eu chamaria de Biocentrismo Ancestral. É que a primeira grande diferença de profundidade é que não se trata de uma proposta teórica, não é algo que está nos livros e temos que encontrar como praticá-la, o que se propõe como um caminho político e ecológico é uma práxis de vida existente, viva e, sobretudo, ancestral – poderíamos dizer milenar. Também é verdade que se trata de uma prática ferida, assediada e cercada, e isso leva a repensar o objetivo central de qualquer proposta ecológica autêntica.
Esse biocentrismo é uma prática histórica, com milhares de anos de aprendizado e consagração comunitária, que rompe com o espaço-tempo progressivo, matriz epistêmica do capitalismo, infelizmente também compartilhado por muitos que dizem se opor a ele, mas a partir de uma posição eurocêntrica. Esse questionamento da espaço-temporalidade ocidental, a partir de outra espaço-temporalidade que poderíamos entender “em espiral”, é outro dos aspectos em que a ecologia se aprofunda.
Não é um conservacionismo de paisagens, plantas e animais, é o entendimento de que devemos cuidar dos ciclos de vida aos quais nós, seres humanos, também pertencemos. Não se trata de manter a natureza intocada, mas da interação do humano com outros seres, possibilitando a proteção e o cuidado da continuidade desses ciclos de vida. O Biocentrismo Ancestral mostra que os melhores cuidadores dos ciclos de vida são as comunidades indígenas e camponesas. O problema é que o capitalismo está centrado tanto na exploração do ser humano, dos pobres, quanto na exploração da natureza. Precisamente aqui está a força da proposta do Bem Viver, cuja centralidade é exatamente oposta: a comunidade humana e a comunidade com a natureza – entendida como Pachamama – como princípios fundamentais de organização de suas visões de mundo e de sua luta pela vida. Por isso mesmo, a grande novidade jurídica dessas versões culminantes do Novo Constitucionalismo Latino-Americano é que apresentam uma disputa sobre o conceito que funciona como espinha dorsal das constituições. O que no constitucionalismo liberal-conservador é a proteção da propriedade privada concentrada, no constitucionalismo que aparece no Equador e na Bolívia é o Bem Viver (Sumak Kawsay, em quéchua) ou Viver Bem (Suma Qamaña).
Não se identifica com o ambientalismo, proposta valorizada, mas limitada por pensar a natureza como ambiente do ser humano e, portanto, permanece em um paradigma antropocêntrico. Em princípio, é possível pensar ambas as abordagens sem se opor a elas, mas também pensar em sua complementaridade, especialmente no campo jurídico, o que requer repensar os Direitos Humanos em um contexto mais amplo e mais profundo, resgatando a relacionalidade humana em sua mais rica compreensão: aquela que engloba a comunidade entre os humanos e entre os humanos e demais seres da natureza.
Tampouco pode ser entendido nos moldes de uma educação ambiental que se concentra em responsabilizar a maioria da população por alcançar a suposta sustentabilidade. Quando se ensina que o importante é apagar um pouco mais a luz, separar o lixo, eliminar os sacos de plástico, e que assim podemos pensar em “salvar o planeta”, sem haver referência central ao poder empresarial – principalmente o agronegócio e a mineração – que mata diariamente lideranças indígenas e camponesas; que despeja continuamente essas comunidades de seus próprios territórios de forma violenta; que constantemente coloca seus líderes na cadeia e os processa; que diariamente envenena e destrói os ecossistemas onde essas e outras comunidades vivem e trabalham; que coloniza o Estado, infectando-o com seu caráter mafioso e pondo a seu serviço o judiciário, as forças de segurança, as instituições estatais encarregadas da reforma agrária, dos assuntos indígenas e da proteção da natureza; e que se apodera da mídia, concentrando-a em um discurso inequívoco de submissão ao poder empresarial e internacional, ao imperialismo estadunidense; então, essa educação ambiental cumpre a única e triste função de encobrir a destruição da biosfera e da humanidade.
Se a educação ambiental não recuperar as cosmovisões indígenas e camponesas e suas lutas concretas como centrais para sua proposta, ela sempre colaborará com essa destruição e, portanto, será essencialmente incoerente.
Diálogo de conhecimento com outras cosmovisões
Os setores ocidentalizados de nossa região têm que reconhecer que em relação à natureza eles se tornaram “analfabetos”, por isso não podem pretender por si mesmos conduzir uma educação que compreenda e defenda a natureza, eles devem “se alfabetizar” como discípulos das comunidades que praticam ancestralmente esse biocentrismo. Eles poderão contribuir com elementos que proporcionem estudos e esforços realizados em outras áreas, mas só serão frutíferos se essas contribuições forem feitas no marco de um Diálogo de Conhecimento liderado por comunidades tradicionais.
Além de não se identificar com o ambientalismo e algumas formas de educação ambiental, tem ainda menos a ver com o que chamam de “desenvolvimento sustentável”, conceito consagrado em um contexto que tentou conciliar capitalismo e ecologia, como reconhecido por seus principais promotores. Não há sustentabilidade ecológica dentro do domínio do sistema capitalista. Em suas melhores versões, as propostas em torno do desenvolvimento sustentável poderiam ajudar – em seu potencial máximo – a diminuir certos impactos da brutalidade capitalista. Nada mais do que isso, embora possa ser importante em alguns casos. Nunca se pode pensar que o desenvolvimento capitalista possa ser sustentável a longo prazo.
E o que desqualifica ainda mais essa visão é seu uso empresarial: como pode ser que grandes empresas, protagonistas centrais da destruição ecológica, se apresentem como promotoras do desenvolvimento sustentável? Que apoio tem uma empresa para tentar se redimir ecologicamente plantando eucalipto? Como o agronegócio que mata e desmata pode ser considerado “pop”? De que adianta assinar metas para trinta, quarenta, cinquenta anos, sem uma política atual que seja concreta e coerente com essas metas? O único sentido de tudo isso é o encobrimento da criminalidade corporativa, de sua máfia e do caráter colonizador do Estado.
O Biocentrismo Ancestral pode dialogar com essas posições? Sim, o diálogo é política e epistemicamente necessário, mas só será possível na medida em que essas propostas incorporem fortemente elementos questionadores do sistema capitalista e eurocêntrico, em que, no geral e com maior ou menor força, estão localizados. Sem essa dimensão crítica, o diálogo torna-se praticamente impossível.
Também não é uma “perspectiva decolonial”, é antes uma perspectiva descolonizadora. Não precisa se basear nas proposições de Foucault, Gramsci ou Derrida, embora possa dialogar imensamente com elas. Mas é descolonizador na medida em que seus sujeitos epistêmicos e políticos são, fundamentalmente, os povos indígenas e camponeses. Não se trata apenas de tentar incorporar sua perspetiva, já que os povos que foram e continuam sendo as principais vítimas da dominação capitalista, colonial e eurocêntrica são os protagonistas centrais da inspiração da luta para superá-la. Sem se enraizar na luta desses povos, as tentações de reproduzir os paradigmas opressores são muito grandes e poderosos. Por isso, o mundo acadêmico tem que se reestruturar em um Diálogo de Saberes com povos indígenas e camponeses, no qual, por uma razão de reconstrução da igualdade concreta e um processo de renúncia à predominância dessas visões, começa fundamentalmente por ser “discípulo” desses povos. Além disso, o Biocentrismo Ancestral abre um imenso campo de Diálogo Sul-Sul, pois outros povos dos continentes colonizados possuem práticas profundamente semelhantes que, quando articuladas, podem constituir uma imensa contribuição tanto epistemológica como política.
Isso leva a ter de repensar o sistema agrário, algo impensável em governos declarados neoliberais, justamente porque estão centrados em um capitalismo financeiro cuja referência fundamental não é a indústria, mas o agronegócio e a mineração. Trata-se, acima de tudo, de uma questão que aqueles que reconhecemos como governos populares devem abordar com coragem e coerência. É verdade que é muito difícil pensar em resolver a questão que esses governos, em geral, orientaram para o chamado neoextrativismo. Mas se outro tipo de modelo não for planejado para o campo latino-americano-caribenho, e se não forem dados passos firmes nessa direção, ele continuará vinculado aos poderes dessa oligarquia diversificada baseada nos três setores econômicos mencionados – financeiro, rural e mineiro.
Por uma ecologia mais profunda e política
É por isso que a ecologia “profunda” deve ser fundamentalmente uma ecologia política. Não porque pertença a alguma linha teórica específica, mas porque assume como primeiro elemento de discernimento em suas análises e de perspectiva em suas propostas a práxis das lutas populares pela vida, especialmente as lutas indígenas e camponesas. Para isso, também não pode haver nenhum tipo de abordagem ecológica na América Latina que não tenha como objetivo primordial a defesa e o fortalecimento das comunidades indígenas e camponesas, o aprendizado de suas práticas e a participação protagonista de tais comunidades nessas políticas. No contexto de um ataque do empresariado extrativista em cumplicidade com os poderes estatais, isso coloca a ecologia em um convite a se politizar profundamente, tornando-se, assim, muito mais coerente, tanto em termos de Ecologia Política quanto de Ecologia Profunda.
Isso exige políticas públicas que, antes de tudo, defendam a existência, sobrevivência e consolidação das comunidades indígenas e camponesas; ajudem a fortalecer autonomamente sua organização e articulação; proponham uma política de reservas ecológicas com a presença, o protagonismo e a responsabilidade dessas comunidades como cuidadoras da natureza; estabeleçam, através de políticas de restauração da flora e fauna nativas, corredores biológicos que também contemplem essas comunidades e fortaleçam sua articulação; consolidem a educação intercultural nessas comunidades em todos os níveis e com uma articulação política baseada no Diálogo de Saberes com as universidades; criem e consolidem áreas desmercantilizadas em termos de propriedade da terra, produção e trocas realizadas por essas comunidades; promovam a articulação produtiva, o intercâmbio solidário e as práticas agroecológicas entre o campo e a cidade, envolvendo principalmente os bairros populares urbanos; formem continuamente professores para a compreensão e comunicação – com o papel dos povos indígenas e camponeses – dos valores alternativos dessas práticas de Biocentrismo Ancestral em todos os níveis educacionais; criem e fortaleçam políticas locais de industrialização da produção agroecológica, visando o fortalecimento da Soberania Alimentar; apoiem as políticas de saúde implementadas no Diálogo de Saberes com as comunidades; bloqueiem a expansão da chamada fronteira agrícola e exijam uma prática agrícola ecológica com gado sob sombra nativa e a eliminação de agroquímicos; eliminem a mineração a céu aberto; e muitas outras iniciativas que podem ser propostas.
Tudo isso é claramente possível e, embora sua adoção instantânea seja difícil, seu planejamento e realização gradual e crescente podem ser de imediato.
Felix Pablo Friggeri é cientista social, com pós-doutorado pelo Centro de Estudios Avanzados da Universidad Nacional de Córdoba, Argentina. Coordena grupos de pesquisa sobre os movimentos indígenas e campesinos do continente e é coordenador do Programa de Pós-Graduação em Integração Contemporânea da América Latina (PPG ICAL) da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila).
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Pensar a integração da América Latina hoje para o mundo e para si mesma, em sua potencialidade criativa, na prática política e na geração de conhecimento é o objetivo da série especial Desafios da integração, realizada em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Integração Contemporânea da América Latina (PPG-ICAL) da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila). Estado, economia, ecologia, movimentos populares, geopolítica e comunicação são âmbitos que orientam nossa jornada.