Bolsonaro e indústria farmacêutica: as ameaças ao tratamento do câncer de mama
Estamos no mês da conscientização do câncer de mama. Entretanto, o acesso ao tratamento de câncer de mama foi seriamente prejudicado pela política da morte do governo Bolsonaro, que cortou recursos da Saúde
Em pleno Outubro Rosa, campanha de conscientização sobre a prevenção e o tratamento do câncer de mama, o governo de Jair Bolsonaro anuncia um corte orçamentário para garantir a continuidade do orçamento secreto que impacta profundamente a saúde pública brasileira. Os recursos destinados ao tratamento e combate ao câncer foram reduzidos em 45%, passando de R$175 milhões para R$97 milhões em 2023. O corte afetará, além da distribuição de medicamentos para o tratamento da doença, áreas como a ampliação, reforma e aquisição de equipamentos, materiais, centros de referência de alta complexidade em oncologia e serviços de referência para diagnóstico do câncer de mama e do colo de útero.
O câncer de mama é a segunda neoplasia mais incidente entre as mulheres no Brasil e no mundo, havendo, entre 2020 e 2022, a estimativa de mais de 66 mil novos casos da doença por ano. Esse tipo de câncer é também a causa mais frequente de morte por câncer entre as mulheres, com aproximadamente 684.996 óbitos, no mundo, em 2020. Segundo o Ministério da Saúde, estima-se que, apenas em 2022, ocorrerão 66.280 novos casos, dos quais cerca de 8 mil podem evoluir para doença metastática. De acordo com o Instituto Nacional de Câncer (Inca), a idade é um dos principais fatores de risco para o câncer de mama, sendo relativamente raro antes dos 35 anos. Após essa idade, no entanto, observa-se um aumento progressivo de sua incidência, principalmente após os 50 anos, tanto nos países desenvolvidos quanto nos em desenvolvimento.
O tratamento para câncer de mama pode ser altamente eficaz, sobretudo quando há detecção precoce da doença, essencial para melhorar a sobrevida e qualidade de vida das pacientes. No entanto, há inúmeros desafios em relação ao tratamento das mulheres com câncer de mama, especialmente o câncer de mama metastático RH+/HE2-, um dos subtipos mais frequentes nas mulheres diagnosticadas com a doença. Para o tratamento de pacientes com este diagnóstico, a hormonioterapia recomendada e disponível no SUS permanece relevante. Contudo, muitas mulheres apresentam falha terapêutica ou intolerância, apresentando assim rápida progressão da doença, com significativo comprometimento da qualidade de vida. Nesse contexto, surgem medicamentos antineoplásicos como o palbociclible, adelmaciclibe e o succinato de ribociclibe.
Em 2021, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), responsável por avaliar a eficácia, segurança, custo-efetividade e impacto orçamentário de novos tratamentos ao SUS, avaliou que esses medicamentos podem contribuir significativamente para o aumento da expectativa e qualidade de vida quando comparado aos tratamentos atualmente disponíveis no SUS. No entanto, o resultado preliminar de seu relatório de recomendação foi pela não incorporação dos medicamentos, em razão de seu alto custo e consequente impacto orçamentário ao SUS. Após consulta pública, a Conitec aprovou a incorporação dos medicamentos. Entretanto, a incorporação não foi seguida pela atualização dos valores das Autorizações de Procedimentos de Alta Complexidade (APAC) para a necessária aquisição desses medicamentos. Assim, os medicamentos seguem indisponíveis para as mulheres que dele precisam.
A detecção precoce do câncer de mama também foi impactada com as medidas de restrição e isolamento impostas para conter a disseminação da Covid-19 e pelo colapso do sistema público de saúde em razão da alta demanda hospitalar. Apenas em 2020, 1.705.475 mamografias deixaram de ser realizadas no Brasil em comparação com o ano anterior. Esses dados sugerem que serão necessários esforços governamentais para garantir o tratamento às pacientes que terão o diagnóstico tardio de câncer de mama. Entretanto, os cortes orçamentários no SUS impedirão a assistência terapêutica integral, inclusive a farmacêutica, tal como prevê a Lei nº 8.080/1990. Um outro impedimento, somado aos cortes da saúde pública, é o alto custo dos medicamentos oncológicos e o modelo de compra descentralizada desses medicamentos.

Os Centros de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia (Cacon) ou as Unidade de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia (Unacon) são os responsáveis pelas compras dos medicamentos com o posterior reembolso através das APAC. A compra descentralizada em comparação com a compra centralizada pelo SUS e posterior distribuição dos medicamentos aumenta o valor unitário – por comprimido – dos medicamentos.
Cite-se o caso do palbociclibe, indicado para mulheres com câncer de mama avançado, o valor unitário deste medicamento, segundo o relatório final da Conitec, varia entre R$255,48 (preço proposto pela indústria) e R$558,33 (preço de compras públicas para palbociclibe 125mg), que é comercializado em embalagens com 21 comprimidos para um ciclo de tratamento de 28 dias. Registrado como Ibrance® e desenvolvido pela Pfizer, nas compras avulsas realizadas pelo consumidor a embalagem com 21 comprimidos tem o valor médio de R$19.940,00, de forma que o valor anual do tratamento é de aproximadamente R$239.280,00. A duração do tratamento varia de cinco a dez anos em alguns casos, dependendo da extensão do tumor e da resposta ao tratamento. O alto preço cobrado pelo medicamento coloca o Sistema Público de Saúde de diversos Estados sob forte pressão financeira.
Em 2019, um estudo que analisou o custo-efetividade do palbociclibe nos Estados Unidos concluiu que, apesar dos ganhos de sobrevida com o uso do medicamento, a adição do medicamento no tratamento de câncer de mama avançado não é custo-efetivo em razão do preço. Para atingir o custo-benefício, o preço do medicamento deveria diminuir aproximadamente 70%. Neste mesmo sentido, um estudo conduzido no Canadá indicou que o uso do palbociclibe não é custo-efetivo para o tratamento do ponto de vista da saúde pública em razão do seu preço. Embora os pacientes obtenham benefício clínico, a redução do preço do medicamento é necessária para a sustentabilidade dos sistemas de saúde.
Apenas em 2021, conforme relatório anual da titular da patente, o Ibrance gerou uma receita de aproximadamente US$ 5,5 bilhões. A indústria farmacêutica justifica o alto preço dos fármacos pelo investimento realizado em pesquisa e desenvolvimento. Todavia, nenhuma indústria farmacêutica revela o custo para desenvolver os medicamentos, e a retórica do estímulo ao investimento em pesquisa e desenvolvimento esconde uma realidade diferente. Baseando-se em práticas abusivas, o monopólio decorrente do sistema de propriedade intelectual permite que as corporações cobrem preços injustificáveis, o que compromete a sustentabilidade dos sistemas públicos de saúde e colocam em risco milhares de vidas, excluindo-as do tratamento.
Sem a entrada de competidores no mercado, a empresa farmacêutica tem o poder de definir os preços dos medicamentos, os quais muitas vezes nem os usuários nem os governos conseguem arcar. Isto constitui uma importante barreira para a garantia do acesso aos medicamentos e para a concretização do direito à saúde no Brasil. Soma-se a isto, diante da demora por parte do INPI na análise e concessão de patentes, a tentativa por parte de multinacionais farmacêuticas de ampliar o prazo de vigência da patente de certos medicamentos através de um instrumento jurídico inexistente no Brasil chamado Patent Term Adjustment (PTA). Requerimentos de extensão de prazo de patentes violam não apenas a decisão do STF no âmbito da ADI 5529, mas o direito à saúde e o princípio da segurança jurídica e da dignidade humana.
A extensão indevida do prazo de vigência de patentes farmacêuticas viola o direito fundamental à saúde e à vida da população, dado que impactaria negativamente o orçamento do Estado e das famílias brasileiras, prejudica a sustentabilidade das políticas públicas de saúde, causa danos à política de concorrência no setor farmacêutico e, por fim, limita significativamente o acesso da população a medicamentos de alto custo como o palbociclibe, fundamental para o tratamento do câncer de mama.
Estamos no mês da conscientização do câncer de mama, marcado por ações afirmativas relacionadas à prevenção e ao diagnóstico precoce. Entretanto, não basta vestir uma camisa ou enfeitar os prédios públicos com luzes cor de rosa, é necessário garantir serviços públicos de qualidade e combater as barreiras que impedem o acesso aos medicamentos para aquelas mulheres que estão diagnosticadas com câncer de mama. Neste mês, o acesso ao tratamento de câncer de mama foi seriamente acometido pela política da morte do governo Bolsonaro que cortou recursos da Saúde. Mas também vem sendo prejudicado pelo sistema de patentes que, ao impedir a entrada de medicamentos genéricos no mercado, impõe barreiras para manutenção de qualidade de vida de mulheres com câncer de mama avançado ou metastático.
Susana Rodrigues Cavalcanti van der Ploeg é doutoranda em Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), advogada da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) com atuação no Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (GTPI/Rebrip).
Maria Clara Pfeiffer Noronha é mestranda em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e assistente de projetos da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (Abia) com atuação no Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (GTPI/Rebrip)