Boogarins em transgressão no centro do reacionarismo
Trajetória da banda goiana supera uma década e remete às transformações sociais do período. Acompanhe no novo artigo da série Entrementes
A última década tornou comum a reação de quase fastio ao fundamentalismo religioso. Olhos virados, superioridade presumida e acusações de ignorância são seguidas pela eventual mudança de assunto, entre classes médias ou em conversas intelectualizadas. Tudo relativo à ascensão neopentecostal parece digno de repúdio veemente, negação peremptória – em atitude que recupera a inclinação bacharelesca brasileira, sua repulsa ao popular. Nesse mesmo período, o rock se mostrou apto a reagir de modo distinto.
Não todos os representantes do gênero, nem qualquer banda: um conjunto do centro-oeste assimilou os ataques mais intolerantes presentes em atravessamentos eleitorais protagonizados por evangélicos, eletrificou uma resposta e conseguiu repercussão mundial. Em período de aparente refluxo para o rock, quatro músicos se reúnem em atitude que combina tradição e contemporaneidade, local e global, ética e estética. O mais impressionante é que a trajetória já tem duração superior a dez anos.
Desde As plantas que curam, primeiro álbum da banda goiana Boogarins, houve repercussão: do El País ao The New York Times. O lançamento em 2013 é o ponto de partida para o constante desconforto que causa a articulação de características ligadas à ofensiva conservadora com propostas transgressoras. Até porque no disco seguinte – Manual, de 2015 –, ainda que sem deixar de lado a vocação para o rock internacional, as composições conversam mais abertamente com a cultura sertaneja, acústica e interiorana.
Se as duplas e esses artistas solo no topo das paradas de sucessos remetem automaticamente ao agronegócio, Boogarins escapa ao enquadramento. Resultado dos arranjos entre as tentativas de garagem dos anos 2010 e a experiência de quase sete décadas do rock no Brasil, a sonoridade diz respeito igualmente às mudanças que o país atravessou desde a estreia. Distante dos supostos centros da economia criativa e da indústria da música pop, a banda apresenta alternativas – sempre com estranhamento.
O início, no ano das grandes manifestações, sob transformações radicais das formas de ouvir música e dos negócios em torno dos artistas, sinaliza que é impossível encarar as canções de forma descolada da instável conjuntura brasileira. A escuta dos versos e dos ruídos com os quais os músicos trabalham reforça a impressão. No entanto, é assombroso o fato de o caso amplamente internacionalizado escapulir dos programas de TV e das estações de rádio de maior audiência, salvo exceções.
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A associação depreciativa de Goiás com os maneirismos mais afetados do agronegócio, suas tendências concentradoras e de ostentação, pode ser uma das resistências para o Boogarins na música brasileira. A longa relação das bandas de rock originais de São Paulo, Rio de Janeiro ou, no máximo, Brasília aponta para a linhagem conectada ao que era produzido nos Estados Unidos e principalmente no Reino Unido. É dessa lista que despontaram, por exemplo, os nomes do pop da década de 1980.
Resultados equivalentes aos desses artistas do rock são raros na indústria, por conta da circulação que alcançaram nos veículos de comunicação e das marcas que atingiram nas paradas de sucesso. Desde os anos 1960, as variantes com influências regionais raramente conciliaram grandes números nas vendas e elogios da crítica. Das faixas mais percussivas da formação original dos Mutantes ao maracatu de Chico Science & Nação Zumbi. Outro obstáculo, em visão elitista, é o reconhecimento das heranças evangélicas.
Na pandemia, o projeto experimental Sessões de Cura e Libertação testou, no audiovisual, as fronteiras para a conexão com a linguagem neopentecostal. A série em seis episódios apenas deixou em evidência, no YouTube, tendências presentes em composições desde a fase inicial da banda – a exemplo de “Tempo”, de autoria conjunta de todos os integrantes à época. Os versos tratam da temporalidade dos homens, com afirmações próximas das de pastores em pregação, enquanto os instrumentos brincam com silêncios.
Na faixa, a verve religiosa é rapidamente convertida em rock pagão, de linguajar informal e comportamento pop. A amálgama de camadas tão conflitantes não é exclusividade da canção. Reaparece, por exemplo, em “Avalanche” ainda em Manual e “Onda Negra” de Lá Vem a Morte, em 2017. E a influência não é uma suposição: versões sobre a formação musical do Boogarins recuperam os primeiros contatos em igrejas evangélicas, nas ruas distantes de centros comerciais ou nos bairros endinheirados.
Assim como para parte considerável dos instrumentistas brasileiros, foi a religião que proporcionou a iniciação musical – em introdução que dificilmente tem sido cumprida pela rede pública de ensino nas primeiras séries da educação básica. Diferentemente do que aconteceu no passado, quando na primeira metade do século XX houve políticas voltadas para esse propósito. Sobre os atravessamentos entre a rotina nas escolas e a arte, a trajetória da banda goiana dá ainda alguns sinais a respeito das últimas décadas no país.
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A responsabilidade pela educação infantil e do primeiro segmento do ensino fundamental é das gestões municipais; segundo segmento e ensino médio são administrados pelos estados – o que faz com que o governo federal coordene universidades e unidades pontuais da educação básica. Contudo, a expansão da rede sob o controle da União, observada nos primeiros mandatos do Partido dos Trabalhadores à frente da Presidência da República, teve reflexo na distribuição dos Institutos Federais (IF) no país.
O núcleo do Boogarins se conheceu e estreitou relações para que chegasse à primeira formação da banda em unidade do IF de Goiás. Memórias sobre o processo até que o primeiro álbum fosse lançado igualmente revisitam a importância do ambiente dos colégios, da convivência com a arte na juventude e das políticas públicas realizada nos anos 2000: as composições teriam se amparado em referências da literatura disponíveis na biblioteca escolar. Até as mobilizações desse período vêm à tona nas lembranças.
Integrantes se recordam das paralisações a que unidades federais foram submetidas na década de 2010 – protestos que antecederam as Jornadas de Junho e, como consequência, toda a instabilidade a partir de 2013. As atividades culturais na greve seriam, de acordo com os relatos, oportunidades para novos encontros e para que a banda fosse criada. Outro componente da formação era a criativa e pulverizada cena de festivais que se espalhava pelo território nacional. A exemplo do Bananada, criado em 1999 no estado.
Um acontecimento que ilustra a distribuição dos eventos naquele momento é a consolidação da rede Fora do Eixo – que estimulou apresentações distantes dos centros da indústria fonográfica. A movimentação, em certo sentido, reforça mudanças de hierarquias entre as regiões do país com as transformações sociais, políticas e culturais. Alterações que, vale ressaltar, redimensionam o centro-oeste: erosão dos demais parques industriais e concentração nas exportações de commodities favorecem o agronegócio.
A diversidade das mudanças nesse intervalo de tempo foi tamanha que é complicado identificar suas múltiplas nuances. A mais perceptível é a comunicação das redes digitais – provavelmente também a que carrega maiores enigmas, com a falta de transparência em torno dos algoritmos. Foram as possibilidades abertas pelas novas relações online que tornaram possíveis turnês internacionais, que incluíram shows em grandes festivais como Primavera Sound em Barcelona e SXSW em Austin.
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Se grandes igrejas evangélicas concentram a radiodifusão, com emissoras próprias ou ao sublocar horários na programação televisiva, é natural que manifestações experimentais tenham espaço reduzido. Sejam no audiovisual, sejam na canção popular. Ainda mais um caso como o do Boogarins, que força traços neopentecostais e manifesta publicamente essa opção – pode ser lida por essas lentes “Cães do Ódio”, recente composição conjunta dos quatro músicos da banda lançada diante da radicalização do autoritarismo na pandemia.
Várias características comerciais e estéticas do rádio e da televisão também dificultam o trânsito pelas atrações de grande audiência. Em oposição, relações com o exterior são viáveis por conta das dinâmicas digitais. Daí a ambiguidade: terreno limitado em canais tradicionais, alternativas internacionais para a carreira. Entre os dois polos, a banda tem construído sua trajetória sem interrupções. O exemplo não deve ser tomado como resultado do poder mítico de artistas, mas como um instante do longo percurso que envolve mais nomes brasileiros.
Outros projetos musicais, individuais ou coletivos, frequentam os circuitos de festivais estrangeiros e convivem com dificuldades semelhantes. A sonoridade do Boogarins, contudo, é significativa por despontar de um estado que, no imaginário preconceituoso para o restante do Brasil, é composto por sertanejos exibicionistas, evangélicos antidemocráticos e fazendeiros da grilagem. É uma resposta contra a percepção superficial sobre os movimentos que abalaram a realidade do país nas últimas décadas.
Reivindicar a poética bíblica não é concordar com os usos fundamentalistas e suas implicações para a política. Coabitar Goiânia não é aceitar o desejo por extinguir diferenças; o avanço agrícola sobre o Cerrado, o Pantanal ou a Floresta Amazônica; nem o armamentismo violento. A proposta de combinar dimensões tradicionais e linguagens novas parece ter o intuito de justamente transgredir estéticas conservadoras para a música popular. E, no limite, subverter o próprio autoritarismo que emergiu nos últimos tempos.
Helcio Herbert Neto é autor do livro Palavras em jogo (2024). Atualmente, realiza pesquisas sobre cultura popular em âmbito de pós-doutorado no Departamento de Estudos Culturais e Mídia da UFF, instituição pela qual também se tornou mestre em Comunicação. Formado em Filosofia (UERJ) e Jornalismo (UFRJ), é ainda professor e doutor em História Comparada pela UFRJ.