Brasil passa por quebra de infraestrutura de espaços de cultura, eventos e entretenimento
A pandemia causada pela Covid-19, além das marcas e traumas sociais, causados pela doença, medo, desemprego e mortes, atingiu em cheio segmentos e atividades profissionais, aos quais demandam público. Entre eles, o mais atingido foi o setor de entretenimento, que naturalmente paralisou atividades no final de março de 2020, buscando cooperar com o combate à pandemia. Inicialmente, se falava em retorno às atividades dentro de algumas semanas, mas passam meses, mais de um ano e a crise ganha novos contornos que podem ter impactos de longo prazo.
Segundo dados do Observatório do Itaú Cultural, o Paraná tinha 397 mil trabalhadores da Cultura (dados do final de 2020) do segmento do entretenimento. Só pra se ter um comparativo, o mesmo estudo demonstra que no ano de 2014 haviam 489 mil paranaenses trabalhando no setor, que engloba atividades, como arte, cultura, entretenimento, artesanato, técnicos, iluminadores, produtores, entre outras 3 centenas de profissões. Houve quedas no total de trabalhadores entre 2015 e 2017 quando o número caiu para 401.761. Foi registrada uma recuperação até 2019, chegando a 434 mil pessoas. Mas os dados apontam queda recente de 18,7% no Paraná, com o fechamento de mais de 91 mil postos de trabalho nos setores de cultura, entretenimento e economia criativa. (da reportagem “Mercado cultural e intelectual do Paraná está ‘sangrando’ durante a pandemia!” do Jornal Bem Paraná, publicada em 10/04/2021)
Porém, ocorreu após a divulgação destes dados, uma piora significativa. Relatos de que profissionais buscam outras atividades para viver proliferam em depoimentos nas redes sociais, assim como falas de dirigentes sindicais e de associações de classe.
Outro estudo do Observatório da Cultura do Brasil também estima que, pelas médias de dados socioeconômicos, ao menos a metade dos trabalhadores do setor estão em dificuldades. Se as atividades culturais seguirem a média de projeção nacional, um quinto do número de trabalhadores do Brasil podem estar em situação de extrema fragilidade social (com dificuldades de moradia, alimentação, entre outras).
Conforme relatório do Observatório da Cultura do Brasil, anexado ao documento enviado pelo Fórum de Cultura do Paraná ao TCE – Tribunal de Contas do Estado do Paraná (Processo 448302/21): “Outro efeito da pandemia no setor cultural com a paralisação de atividades, foi a busca tanto de empresários como trabalhadores pelo apoio público através de benefícios sociais, empréstimos e outras modalidades. Além da burocracia encontrada, os detentores de direitos, reclamam que os recursos não chegaram, e que ficaram pelo caminho nas mãos de agrupamentos centrais, na Capital do Estado, especialmente, agrupamentos mais próximos da burocracia”.
Isso ficou mais claro quando o Fórum de Cultura do Paraná e o Observatório da Cultura do Brasil lançaram relatórios em abril de 2021 expondo que “os auxílios criados por lei não chegaram em quem precisava, enquanto os recursos foram mal gastos, sobrando em caixa”, ocorreu por outro lado a concentração de premiados na capital Curitiba nos “bairros nobres em detrimento de todo Paraná”, e ampla exclusão de setores culturais, posto que praticamente somente “renomados” foram premiados, além de serem constatadas “irregularidades”, enquanto determinados gestores e pessoas do mundo da arte foram “egoístas e omissos” com as vítimas.
Com a pandemia, os trabalhadores do entretenimento e da indústria criativa foram prejudicados no Paraná. São estimados pelas médias de dados socioeconômicos, que ao menos a metade estão em dificuldades. De acordo com o Observatório da Cultura do Brasil, “apontamentos da Consultoria Ernest Young para a Europa indicam a quebra de 76% do setor de entretenimento, enquanto diversos pesquisadores sugerem que a soma da pandemia, com quarta revolução industrial, pode empurrar metade dos trabalhadores dos segmentos citados para fora do mercado, sem emprego e renda em definitivo após a pandemia.”
No campo de espaços culturais e de entretenimento, na média, a metade dos estabelecimentos fecharam, segundo a Abrabar (Associação Brasileira de Bares e Casas Noturnas) do Paraná. Iniciativas como museus, arquivos e bibliotecas independentes e comunitárias também poderiam fazer uso da Lei Aldir Blanc, mas estes importantes acervos de interesse público não tiveram a menor oportunidade de ter auxílio, passando por dificuldades durante o período de crise. Palcos alternativos voltados aos artistas autorais, festivais, circos, casas de coletivos, galerias independentes, entre outros segmentos de espaços culturais foram ignorados, ficando sem apoio governamental. Espaços que fechados geraram aumento nos dados de desempregados.
Circulam dados de que seriam quase 500 artistas e técnicos solicitando cestas básicas somente em Curitiba, onde circulam informações de que moradores de rua se declararam “artistas que perderam suas moradias recentemente”. Artistas e técnicos vendem instrumentos e equipamentos, mudam seu setor, fazem bicos para sobreviver, ou dependem de favores de amigos, familiares e até de estranhos.
A situação dos trabalhadores, pode ser ainda pior, pois ao menos 20% podem estar em miséria absoluta, se comparada a média nacional da situação socioeconômica da população (considerando que 40 milhões de brasileiros estão na miséria, segundo fontes como IBGE e Cadastro Único), porém outra pesquisa, aponta que devido ao menor valor dado pelo governo de auxílio emergencial em 2021, o Brasil deve somar 61,1 milhões de pessoas vivendo na pobreza (Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da Universidade de São Paulo (Made-USP-22/04/2021).
A dificuldade para manter espaços culturais independentes
Segundo informaram membros do CONSEC (Conselho Estadual de Cultura do Paraná) e gestores de municípios paranaenses, o inciso II da Lei Aldir Blanc, não foi aberto para distribuição de editais, prejudicando a manutenção de espaços culturais independentes, que não pertencem aos órgãos públicos.
Até mesmo um espaço cultural que existe há décadas está batalhando para se manter. É o caso do 92 Graus, um dos templos do rock underground nacional, localizado em Curitiba, e que já recebeu uma infinidade de artistas de todo o Brasil e de outros países em seu palco. O espaço cultural, que vai completar 30 anos em dezembro, e já passou por cinco endereços, é capitaneado pelo músico e produtor JR Ferreira, que sempre lutou para manter o negócio, mas na pandemia essa luta tomou outra dimensão (entre as ações, houve duas rifas de guitarras). Ele consultou a Lei Aldir Blanc, mas desistiu quando leu as instruções. “Eu estava negativado, não podia tirar certidões negativas”. Atualmente, realiza trabalhos externos em marcenaria e promove uma Live semanal chamada “Show do Jovem”, transmitida do próprio 92 Graus com poucos recursos disponíveis e apoios de amigos que o ajudam na empreitada.
Se o 92 Graus vai completar 30 anos, a Sociedade Operária Beneficente 13 de Maio tem pelo menos um século a mais de existência. Completou 133 anos, tendo sido fundada em 06 de junho de 1888 (alguns dias após a assinatura da Lei Áurea) por um grupo de homens recém-libertos da escravidão em Curitiba, destacando-se como local de resistência e de valorização da cultura de matriz africana. Desde o início da pandemia está de portas fechadas. “Está um caos. Já estávamos em situação difícil antes de março de 2020. Com a pandemia, tivemos que fechar as portas e não podemos fazer eventos. Estamos devendo água, luz, entre outras dívidas. Os diretores se revezam para pagar algumas contas”, relata o vice-presidente Mário Silva.
Tentaram a Lei Aldir Blanc, mas sem sucesso. “Nos inscrevemos em setembro do ano passado solicitando Subsídio Mensal para Espaços Culturais, nem chegou a ser analisado. Duas pessoas que trabalham com a gente também inscreveram um projeto de Festival ao vivo com artistas negros, mas foi indeferido”, lamenta Mário. “Foi estapafúrdio o que aconteceu com a Sociedade 13 de maio. Não houve a preocupação do Estado em entender a situação do segundo clube negro mais antigo no Brasil em atividade”, comenta o produtor Filipe Castro, que faz parte da equipe da casa e contribuiu na feitura dos projetos. Ele relata a excessiva burocracia da lei como um grande obstáculo, sobretudo para os periféricos. “É um recurso elitizado, academizado, que não tem capilaridade nenhuma na população negra e periférica curitibana e nacional”, afirma. “Posso dizer que as ações foram concentradas e pensadas em Curitiba. Eu estava em grupos estaduais para falar disso. Era de chorar ao ver a situação no interior do Paraná, mesmo em cidades centrais de suas regiões. Se aqui na capital estava em situação complicada, imagina no interior.”
João Borges do Circo Lisboa, também reforça, que os espaços circenses estão fechando. Parados há mais de 500 dias, lembra que no Paraná os circos tradicionais de lona não foram contemplados pela Lei Aldir Blanc. “Os recursos chegaram no Paraná, mas as secretarias e prefeituras não foram bem instruídas, cada uma fez sua leitura. Devia haver um consenso em todas as prefeituras”. Além disso, muitos circos permaneceram fechados por determinações de decretos com medidas restritivas de contenção à pandemia. “O Estado do Paraná não está dando condições de abrir os circos. Recentemente Curitiba abriu, mas tantas outras cidades não”, afirma.
O presidente do Fórum Setorial de Circos do Estado do Paraná, Marcio Zanquettin, avalia como “lastimável” o atual cenário circense. “Muitos estão em situação grave, inadimplentes. Vários artistas foram trabalhar em outros empregos nas cidades onde os circos estão parados. O deslocamento de um circo inteiro de uma cidade pra outra pode chegar a 5 mil reais, mas muitos nem tem pra comer”, relata. Sobre a Lei Aldir Blanc, ele comenta que as formas de acessar a lei deveriam ser facilitadas. “É muita burocracia. No poder público as coisas são muito lentas. O povo tem fome, tem que comer”.
Grande número de bares e restaurantes fechando
No campo de espaços de entretenimento que recebem boa parte das atividades artísticas e culturais, no Paraná fecharam 40% dos bares, 30% dos restaurantes e 75% das casas noturnas, segundo dados da Abrabar do Paraná. Uma reportagem da maior emissora de TV do Estado do Paraná informou que são mais de 9.000 estabelecimentos que fecharam durante a pandemia.
A Abrabar informou ainda que deixaram de existir 40 mil empregos diretos no setor. Foram perdidos 50% dos espaços culturais definitivamente e os que restaram realizam outras atividades nos locais devido às restrições.
Vale lembrar que o Inciso II da Lei Aldir Blanc também poderia atender equipamentos culturais dos quais alguns bares se enquadram. Mas no geral, os municípios não abriram editais para essa categoria da lei. Com isso, o recurso não chegou para salvar os espaços.
Segundo o pesquisador do Observatório da Cultura do Brasil, Manoel J de Souza Neto, aspectos importantes em estudos de sociologia, que são características do trabalho precário no Brasil, bem como na economia, expõe o subdesenvolvimento de infraestrutura empresarial brasileira: “o que está acontecendo é a quebra da infraestrutura, de um dos grandes setores econômicos brasileiros, que é formado por um conjunto de segmentos que dependem da cultura, e que envolvem a arte, o entretenimento e o turismo. O que revela pelos números negativos, de fechamento de equipamentos físicos, empresas e vagas de trabalho, a falta de robustez desses negócios no Brasil, e uma triste tradição de nosso empresariado, em não manter caixa, e nem planos para enfrentar crises”, afirma.
Ainda segundo o pesquisador, isso pode revelar um agravamento da crise econômica e social no Brasil, pois segundo ele: “esse panorama revelado, da soma de fatores como a pandemia, fechamentos e proibições de atividades sem planejamento pelos municípios, falta de vacinas, prolongamento da crise, e a soma da transição para a quarta revolução industrial, pode significar uma crise, que terá impactos por muitos anos, tanto para empresários, como para trabalhadores e governos”. Ele segue afirmando: “O que essas crises podem impactar com fechamento de 9.000 empresas do entretenimento, e fechamento de 91 mil vagas de trabalho, em um único estado, no caso do Paraná, é um fenômeno que se repete por todo Brasil, com o fechamento de vagas de empregos, que não devem voltar a existir. Isso ocorre devido ao desaparecimento permanente de alguns negócios, redução de espaços de trabalho, venda de equipamentos, perda de investimentos, queda na circulação de capital e a diminuição do público, que também está em crise financeira, reduzindo os gastos familiares cortando despesas com cultura e entretenimento”. O pesquisador completa o raciocínio, enumerando efeitos que podem ocorrer, ou que segundo ele, já estariam ocorrendo:
Redução de número de estruturas físicas de realização de atividades;
Redução de atividades fundamentais nas Cadeias Produtivas dos Setores de Arte, Cultura e Entretenimento;
Redução de cadeias virtuosas da economia, perdendo a capacidade de integração de economias e potencialização dos setores relacionados, derrubando toda a economia;
Aumento de custos de operação;
Redução de lucros;
Aumento de preços ao consumidor;
Queda da oferta e da procura;
Redução da qualidade de serviços e fornecedores de setores de apoio;
Aumento de preços de serviços de aluguel, locação de infraestrutura;
Quebra de infraestruturas secundárias e de apoio (som, transportes, infraestrutura física);
Perda de mão de obra qualificada, por quem deixa de trabalhar na área, ou se muda para nações onde seus trabalhos sejam melhor remunerados;
Perda de investimentos públicos já efetivados, em capacitação de profissionais que deixam o setor;
Perda de equipamentos;
Fechamento de espaços;
Quebra de tributos;
Endividamento do setor, seja de pessoas físicas e jurídicas;
Aumento da desconfiança do mercado, devido às dívidas com bancos, que reduzem a capacidade de crédito dos brasileiros.
Ampliação da crise, por anos, impedindo que o setor retorne ao ponto em que esteve, por muito anos;
Ainda segundo Manoel J de Souza Neto, essa tendência se agrava, pois ao se levar em conta aspectos sociais, de segurança alimentar, do direito à moradia, e demais garantias de bem estar do cidadão previstas na constituição, estaríamos “diante de uma crise humanitária”, segundo ele, pois diversos trabalhadores deste setor, passam por “graves situações desde que a crise causada pela pandemia iniciou, inclusive, com registros de fome e até de profissionais, que viraram moradores de rua”.
Casos mais graves
Circulam dados de que seriam quase 500 artistas e técnicos solicitando cestas básicas somente em Curitiba, segundo fontes de campanha em prol de artistas.
Há situações mais graves. Uma fonte anônima, que tem acesso ao sistema de informações da prefeitura de Curitiba, informou que existem 1.028 novos moradores de rua registrados durante a pandemia em Curitiba. Seriam, na grande maioria (aproximadamente 90%), artistas ou trabalhadores do setor de cultura e entretenimento (de donos de bares e restaurantes que foram fechados, até profissionais terceirizados que trabalhavam em estabelecimentos do tipo, como por exemplo garçons, bartenders, cozinheiros, seguranças, até pessoal da limpeza entre outros). Destes, 25% seriam mulheres, e o restante homens, e uma pessoa trans, segundo a fonte. A FAS (Fundação de Ação Social de Curitiba), órgão público responsável pela gestão da assistência social na cidade, foi consultada para confirmar os números, emitindo respostas incompletas (e algumas, contraditórias).
Em uma das primeiras comunicações, afirmou que o número de moradores de rua seria muito menor. Segundo a FAS, “de janeiro a julho deste ano, o Núcleo Regional Matriz da FAS, registrou 12 buscas de artistas de ruas no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) Matriz. Eles receberam orientações e foram encaminhados para acolhimento em hotel social e para confecção de documentação. Entre elas, dois estrangeiros. No Centro de Referência de Assistência Social (Cras) Torres – que faz parte da Regional Matriz – são atendidos 1 artista de rua e 3 artistas do Circo Vostok. No Cras Matriz há 4 artistas de rua atendidos.”
No entanto, os questionamentos enviados ao órgão se dirigiam ao levantamento do total de profissionais do entretenimento, que incluem não só artistas, mas também atividades que vão desde artesãos até todas as categorias de trabalhadores de bares e restaurantes.
Em outra mensagem, afirma que não tem sistema de informações que permita localizar qual a atividade exercida anteriormente pelo morador de rua. A FAS diz ainda que “no Cadastro Único não há uma questão específica sobre a profissão do entrevistado e, por isso, não temos como informar o número solicitado”, o que contradiz a informação anterior, que informava a atividade (12 artistas).
A mesma FAS, afirmou em uma última mensagem que, na verdade, seriam 2.596 moradores de rua (dados da base do Cadastro Único de Curitiba de julho de 2021), um número maior do que o apresentado em um dos primeiros e-mails, que dizia “aproximadamente 1.900 pessoas em situação de rua que usam os serviços e outras 200 que não aceitam atendimento, em média”, segundo levantamentos de controle interno da FAS. E ainda afirmou: “Ressaltamos, novamente, que acreditamos que o número que você apresenta não seja correto, visto que representaria mais de 40% do total de pessoas em situação de rua no município”. Apesar da negativa da FAS, não seria de se estranhar que a maioria dos novos moradores de rua seriam aqueles que foram proibidos de trabalhar e que não obtiveram apoio da Lei Aldir Blanc. O que coloca em suspeita informações da FAS, posto que não responderam objetivamente, não abriram o sistema (dados brutos) e apresentaram algumas informações contraditórias. Um dado que reforça essas contradições são apurações realizadas por pesquisadores e por jornalistas. Em reportagem do site paranaense Plural (publicada em 08 de abril), entidades e especialistas consultados acreditam que, na atualidade, Curitiba pode “ter superado a marca de 5 mil pessoas em situação de rua, principalmente após os impactos da pandemia da Covid-19”.