‘Breve ato de descascar laranjas’, de Bianca Monteiro Garcia: o desamparo, o luto e a violência
Livro publicado em conjunto pela Macabéa e 7letras acaba de vencer o Prêmio Jabuti na categoria “Estreante – Poesia”
Duas mortes na família. O silêncio que acompanha cada perda. A internação em um hospital psiquiátrico. A tentativa de silenciamento. A luta da memória para resistir e seguir em frente, apesar de.
Breve ato de descascar laranjas (Macabéa Edições e 7letras), de Bianca Monteiro Garcia, toca em muitas feridas. Faz isso de forma intimista e original, mas distante das tentativas de suavizar ou romantizar o sofrimento. Cada uma das quatro partes do livro, que acaba de vencer o Prêmio Jabuti na categoria “Estreante – Poesia”, diz rapidamente a que veio.
A primeira delas, descontinuidade de mohorovičić, aborda a morte do pai do eu lírico (que por muitas vezes se confunde com a própria autora) e todas as consequências desse acontecimento. Há a presença do caixão, a consciência de que aquele homem não voltará e a saudade que cresce a cada ato, especialmente os cotidianos.
Também existe o contraste entre a tentativa de fuga – perceptível em versos como “esperei o dia nascer em seu corpo/por vezes bisbilhotei seus olhos/para que me olhassem enfim/mentir é um direito básico/na ponta da cama/no pé do caixão” – e a realidade imposta pela ausência: “mesmo que as coisas queiram/afinal as coisas sempre querem/você foi até a garagem e não volta”.
Na segunda parte, crosta, o adoecimento e a morte da avó se tornam temas centrais das poesias, com destaque para versos em que o afeto procura amenizar o sofrimento comum ao fim da vida: “as agulhas que fisgam seu braço/o tubo que leva oxigênio à sua boca/não incomodam/você não sente/o calor da minha mão/minha voz nos seus ouvidos abanando os dias/cantando a música/que você costumava dançar/enquanto fritávamos pastéis/de queijo com goiabada”.
Em manto, a terceira parte do livro, a internação em um hospital psiquiátrico é o ponto de partida para temas que transitam pelos caminhos da violência. Aqui, os delírios parecem ser muito mais seguros e confiáveis que a instituição de saúde, um hospital que adota métodos nada apropriados para lidar com suas “histéricas”.
O segundo poema dessa parte já faz um alerta, ao informar o que não é permitido no local, com direito a uma ameaça implícita: “fazer ligação que ultrapasse o tempo/de cinco minutos/fazer mais de uma ligação por semana/não queira desobedecer às regras/já ouviu falar sobre a ala 1?”.
Já outros evidenciam o ambiente claustrofóbico ao redor do eu lírico: “mas todos exceto todos/largados às traças/às cobras noturnas de barriga cheia/sentadas na cadeira de repouso/em hora de ceia/a água potável da cede/sonho distante e de mau gosto/assim como o perímetro que percorro/incessantemente/à procura de rejuntes/e janelas”.
A situação fica ainda mais ameaçadora quando quem poderia ajudar se torna cúmplice: “na sala de arteterapia/mais uma reunião/a psicóloga de sempre/suas estagiárias/as loucas e os loucos/penteadinhos e uniformizados/o rádio ligado à tomada/uma música sobre perdão e deus/um instrumental sóbrio/como em uma escolinha tradicional/uma hierarquia”.
Por fim, a quarta e última parte, núcleo, apresenta um olhar sobre o cotidiano, com ênfase a paisagens, lembranças e até mesmo a chegada da pandemia, referenciada em versos como “duas vizinhas mascaradas/cometem sentadas conversas/no portão com copos embebidos de álcool 70”.
Em meio a temas dolorosos e versos imprevisíveis, Bianca Monteiro Garcia constrói um delicado inventário de perdas, contempla o vazio e se reconstrói pouco a pouco, mesmo forçada a “viver a morte em doses homeopáticas”.
Bruno Inácio é jornalista, mestre em comunicação e autor de “Desprazeres existenciais em colapso” (Patuá), “Desemprego e outras heresias” (Sabiá Livros) e “De repente nenhum som” (Sabiá Livros). É colaborador do Jornal Rascunho e da São Paulo Review e tem textos publicados em veículos como Le Monde Diplomatique, Rolling Stone Brasil e Estado de Minas.