Caetano, Stalin, Losurdo: o debate falsificado
Caetano Veloso é acusado de “neostalinista”, sem uma definição do que significaria esse termo ou porque se justificaria a aplicação desse rótulo ao cantor, muito menos a Domenico Losurdo
No dia 4 de setembro, no programa do Pedro Bial, o músico Caetano Veloso, ao comentar um trecho de sua fala no filme Narciso em férias, disse que mudou de visão e que não tem mais uma perspectiva apenas negativa das experiências socialistas. Citou, como motivação para sua mudança de leitura acerca do socialismo real e do liberalismo (ficou menos “liberaloide”, nas suas palavras), a produção de um dos autores deste artigo e, particularmente, as reflexões do italiano Domenico Losurdo, filósofo falecido em 2018.
Essa declaração de Caetano foi suficiente para abrir uma temporada de choro e ranger de dentes. Não falou da União Soviética ou Stálin, mas as redes sociais foram tomadas por uma avalanche de comentários… sobre stalinismo. Raras foram as intervenções que abordaram a revisão crítica do cantor sobre o liberalismo, ligando-o à escravidão e ao colonialismo, muito menos sobre o pensamento de Losurdo.
Uma dessas reações foi um artigo do professor Pablo Ortellado, publicado na Folha de S.Paulo, intitulado “Stálin em Ipanema”. Começou como um panegírico ao artista, destacando suas qualidades culturais e as posições políticas que anteriormente assumia. Mas logo arriscou um salto mortal digno de ginastas olímpicos, reclamando da leitura de Caetano sobre os escritos do filósofo italiano.
“A obra de Losurdo consiste justamente na redenção dos campos de concentração, dos assassinatos políticos e da perseguição aos dissidentes por meio da comparação com o regime adversário”, afirmou. O leitor, curioso, poderia se perguntar: em qual livro ou texto do autor teria sido realizada tal “redenção”? A pergunta não seria respondida por Ortellado porque se trata de escrachada ilação.
O colunista da Folha igualmente salienta que “Losurdo é um dos principais responsáveis pela atual onda revisionista sobre o legado de Stálin”. Mas que onda é essa? Quando começou? Quem faz parte? Onde Losurdo contribui com essa “onda”? E conclui dessa forma: “Caetano se rendeu à irresponsabilidade narcísica, incensando o stalinismo”.
O fato é que não existe, no texto de Ortellado, qualquer debate sobre o liberalismo e sua história, elemento central da entrevista do músico tropicalista. A palavra “liberalismo” não aparece e “liberal”, apenas uma vez, em um parágrafo marginal. Nenhuma obra ou trecho de Domenico Losurdo é citado.
Caetano Veloso é acusado de “neostalinista”, sem uma definição do que significaria esse termo ou porque se justificaria a aplicação desse rótulo ao cantor, muito menos a Domenico Losurdo. Ortellado teve oportunidade de acompanhar o debate nas redes e na imprensa. Poderia ter qualificado seu comentário e escrito, por exemplo, uma abordagem crítica a importantes livros de Losurdo, como Contra-história do liberalismo, ou Stálin – história crítica de uma lenda negra. Escolheu, porém, entrar na discussão com linhas cheias de ódio e preconceito, infladas de rancor ideológico e desidratadas de ideias.
Afinal, qual é o argumento básico do filosofo italiano? Ele considera que o liberalismo, embora represente um avanço civilizatório vis a vis o feudalismo e a sociedade de castas, sempre embutiu cláusulas de exclusão contra a classe trabalhadora e os povos colonizados, contra mulheres e negros, configurando-se como uma defesa da liberdade, da limitação do poder e dos direitos naturais como garantias circunscritas à “comunidade dos livres”: homens, brancos e proprietários dos meios de produção.
O argumento, em si, não deveria ser novidade. Basta notar, por exemplo, que a Revolução Liberal nas Províncias Unidas, Inglaterra e Estados Unidos não combateu a escravidão – longe disso, impulsionou-a ao colonialismo, impondo restrições ainda mais duras aos direitos civis e políticos do proletariado, além de uma exclusão absoluta das mulheres.
Também é por demais conhecido que o país-guia do mundo liberal, os Estados Unidos, cujos primeiros presidentes eram proprietários de escravos, mantiveram e ampliaram esse regime de trabalho após a Revolução Americana, reintroduzindo-o em territórios tomados do México. Tentaram esmagar a Revolução Haitiana (de natureza antiescravagista, liderada por negros) e promoveram, em seu próprio território, uma política de extermínio dos povos originários, com quase 20 milhões de mortos.
Ao fim da escravidão, foi montado o regime de segregação racial baseado nas leis Jim Crow, vigentes até os anos 1960. Não é coincidência que Adolf Hitler e outros líderes do nazismo tenham declarado, reiteradas vezes, que o genocídio contra indígenas e a segregação contra negros e outras “raças inferiores”, praticados pelos EUA, era sua inspiração, como está registrado no insuspeito de simpatias comunistas Terra negra: o Holocausto como história e advertência, de Timothy Snyder, além de resgatado na obra Guerra e revolução, do próprio Losurdo.
O debate brasileiro sobre as práticas reais do liberalismo não deveria ser novidade. Estamos no país onde liberais também defendiam a escravidão, apoiaram a ditadura empresarial-militar de 1964 e tem pouco ou nenhum problema com a matança nas favelas ou os assassinatos recorrentes de lideranças camponesas, indígenas e quilombolas. A despeito disso, o liberalismo, no Brasil, é um dogma inquestionável. Mesmo que grande parte da fauna liberal do país tenha apoiado o fã de Brilhante Ustra na eleição de 2018 – “uma escolha muito difícil”, diriam alguns! – e mantenha verdadeira adoração por Paulo Guedes (um economista que atua como se estivesse no Chile de Pinochet), o liberalismo não pode nunca, sob hipótese alguma, ser questionado.
O grande pecado de Caetano Veloso foi lembrar da história real. Quando o músico comenta que a metrópole do mundo capitalista demoniza o Irã, mas deita na cama com a Arábia Saudita, a pergunta que devíamos fazer é: o discurso de oposição ao Irã é mesmo em defesa da democracia e dos direitos humanos? Esse tipo de raciocínio, elementar e factual, é banido pelos nossos “pluralistas” defensores do pensamento único.
Uma parte substancial da dita “elite intelectual” deseja que o campo teórico e cultural seja uma espécie de decalque da política partidária dos Estados Unidos, dividida entre democratas e republicanos, dois partidos iguais no que é importante, repartidos apenas por diferenças tópicas. Nesse tipo de pensamento fechado, autoritário, pouco simpático a reflexão, a crítica ao liberalismo deve ser banida e os hereges, queimados na fogueira santa de um suposto moralismo que foge da história.
Jones Manoel é professor de história, historiador, mestre em Serviço Social, educador e comunicador popular.
Breno Altman é jornalista e fundador do site Opera Mundi.