Califórnia Gulag
Confira o prefácio escrito pelo ativista e intelectual baiano Dudu Ribeiro, diretor executivo da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, para o livro Califórnia Gulag: prisões, crise do capitalismo e abolicionismo penal, de Ruth W. Gilmore, e que se encontra agora em pré-venda via financiamento coletivo
Foi num tempo de parca dignidade
Sem comida, num barraco, esquecida à margem
Zero oportunidade ou vantagem
Alfabetizada pela metade.
— Lucas de Matos,
Preto Ozado (2022) [1]

Em pouco menos de três meses, viria ao mundo o meu primeiro filho. Eu voltava para casa depois de um dia de trabalho, e já quase chegava quando passei em frente ao Complexo Penitenciário da Mata Escura, na cidade de Salvador (BA), onde estão a Cadeia Pública, a Penitenciária Lemos de Brito, o Conjunto Penal Feminino, o Presídio de Salvador, o Conjunto Penal Masculino, além da Casa do Albergado e Egresso, o Centro de Observação Penal e a Central Médica Penitenciária. Era véspera de dia de visita e uma fila de mulheres negras se preparava para enfrentar a madrugada, com algumas sacolas, cobertores, cadeiras plásticas e algo para comer. Não havia nenhum homem na fila. Apenas mulheres, de várias idades, todas negras – mães, filhas e esposas, que se acomodavam para aguardar o dia chegar e poder encontrar seus entes queridos que estavam do outro lado do muro. O Complexo Penitenciário da cidade, com todos esses equipamentos, está situado em um bairro popular, de maioria negra, divide parede com uma escola pública e fica numa região que sofre com todas as carências que são produzidas pelo abandono organizado pelo Estado, que se faz presente, entretanto, para além dos momentos eleitorais, quando ocorre algum distúrbio na vida intramuros ou nas operações rotineiras e violentas das polícias na região. Operações cada vez mais frequentes e letais, espalhadas também em diversas outras regiões da cidade, e que, a muito custo, nos conduzirão a quatro anos depois daquele dia. Quando me levantei para descer do ônibus, um pensamento súbito me paralisou por alguns instantes: eu não posso morrer. Ou ser preso. Vou ser pai.
* * *
Para a cosmovisão africana ubuntu, eu sou porque pertenço. Portanto, cada bala, cada dor, cada trajetória que se torna um dado de violência nos afeta em coletividade e em um sentido que a cosmovisão ocidental branca não consegue alcançar, pois está baseada na ideia do “eu”. Quando as luzes se apagam, as portas se fecham, as escolas param de funcionar, os postos de saúde não abrem, os ônibus deixam de transitar, o anúncio do terror é evidenciado. Exatamente como naquela segunda-feira de agosto.
Um dia antes, havia sido um domingo de celebração na comunidade de Cosme de Farias, em Salvador, próxima ao centro da cidade, mas distante dos pontos turísticos e mais distante ainda dos benefícios econômicos produzidos em uma cidade onde 83% da população se autodeclara negra. O festival de rap “Batalha De La Rua” reuniu naquela tarde ensolarada dezenas de pessoas de todas as idades para ações comunitárias e artísticas, no meio da rua, em frente a um modesto bar e protegido apenas por um toldo de 3m x 3m e alguns paletes de madeira. Foi uma maneira que a comunidade encontrou para fazer justiça à memória de Victória Stephanie, a MC De La Rua, assassinada três anos antes durante uma batalha. Diversos artistas subiram “ao palco” naquele domingo. Na tarde do dia seguinte, uma operação policial entrou na mesma comunidade e executou quatro jovens negros.
No mês em que eu desenvolvia este texto (julho de 2023), a cidade mais negra fora do continente africano passava pelo seu período mais sangrento desde que começamos a monitorar a ocorrência de tiroteios em todos os bairros de Salvador e da região metropolitana em uma parceria entre a Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas e o Instituto Fogo Cruzado. Foram 178 episódios de tiroteios que deixaram 151 pessoas mortas naquele mês. Destas, 64 óbitos foram registrados durante operações policiais. Nesse mesmo período, as polícias da Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo produziram, juntas, 45 mortes em apenas cinco dias. E eu, que tinha passado a tarde de domingo com a comunidade de Cosme de Farias produzindo arte e fazendo ações comunitárias para se lembrar de quem se foi, mas, permitindo aos que estavam outras possibilidades de vida, tive que digerir muita coisa para retomar, não sem lágrimas, a escrita deste texto.
O ponto de partida na análise de Califórnia Gulag, e sua importância para os estudos prisionais, é o amplo repertório analítico introduzido a partir das questões espaciais para pensar o fenômeno da prisão. Segundo a autora, “as prisões são soluções geográficas parciais para as crises econômica e política, organizadas por um Estado que se encontra ele próprio em crise”.
A condução de Ruth Wilson Gilmore é original ao propor o diálogo de autores consagrados na chamada sociologia da punição, como Foucault e Garland, por exemplo, com categorias elaboradas por autores como Mike Davis e David Harvey. Ao revisitar os principais dilemas da expansão carcerária na Califórnia, a partir de uma densa pesquisa documental, Gilmore nos aponta em que condições se deram as construções de novas unidades prisionais ao longo de duas décadas, nos oportunizando olhar para o terreno das disputas de direitos (encaradas muitas vezes longe de seus muros, mas também, e fundamentalmente, no seu entorno), da financeirização da liberdade, do papel das agências e das organizações anticárcere, e do manejo da desigualdade a partir dos olhares sobre crime e punição. No centro de sua abordagem está a busca por pensar as motivações (políticas, econômicas, sociais) do revigoramento penal bem como os processos político-jurídicos que permitiram a construção de novas unidades prisionais, cenarizando essa expansão na paisagem dos pequenos municípios das regiões rurais do estado.
Ao apontar as limitações das teses tradicionais sobre o funcionamento da instituição prisão, Gilmore contribui de forma definitiva para se pensar uma outra economia política da pena. Primeiro era preciso evidenciar ao menos três grandes teses que buscaram justificar a expansão prisional californiana: a ideia de que os “crimes aumentaram, nós reprimimos, o crime diminuiu”; a ideia de que haveria uma suposta “epidemia de drogas” na sociedade estadunidense, iniciada nos anos 1980; e uma terceira tese que postulava a relação do desemprego e do engajamento em atividades informais e ilícitas com o crescimento de crimes contra o patrimônio e, assim, com o encarceramento.
Em seguida, antes da proposição de sua tese original, Gilmore conversa com as chamadas contraexplicações [counterexplanations] presentes no debate sobre prisões nos Estados Unidos. Seriam elas o elemento racial, já que as prisões capturam jovens negros e atualizam processos históricos de segregação; a incidência de empresas privadas a partir de lobbies pela expansão prisional com interesses de mercado; a crise econômica de municípios do interior e a busca por uma solução dessa crise; e uma perspectiva mais ampla que busca conectar as alterações legislativas, as identidades políticas e as alterações no ambiente prisional, propondo como as sensibilidades culturais influenciam na formulação de dispositivos punitivos. Desenhada essa paisagem contraexplicativa, a autora segue para apresentar sua contribuição na análise da expansão prisional na Califórnia a partir de seu entendimento sobre o conceito de crise, elemento central da tese apresentada na obra.
A partir do diálogo com autores como Stuart Hall, David Harvey, Mike Davis e Karl Marx, a crise, para a autora, se constitui como um impasse em que o sistema político e produtivo não encontra condições de se reproduzir. Assim: numa economia capitalista, o processo produtivo caminha no sentido de concentrar os meios de produção e de aumentar a produtividade. Por outro lado, a redução de salários otimiza os lucros. No entanto, baixos salários podem inviabilizar a manutenção de um padrão de consumo que sustenta o modelo produtivo. Aqui, o poder público age muitas vezes na balança, introduzindo recursos por meio de medidas que equilibram essa relação, seja por meio de investimentos ou da redistribuição de renda. Quando esse processo, por um ou mais motivos, não consegue regular e gerir as pressões, se configura, segundo Gilmore, uma crise de excedentes. E foi na expansão prisional que a autora entende que se desenvolveu a solução política e econômica utilizada para contornar a crise de excedentes em que se encontrava a Califórnia no final dos anos 1960.
Ao olhar para a história do capitalismo, o geógrafo baiano Milton Santos, afirma que podemos dividi-la em períodos – pedaços de tempo marcados por uma certa coerência entre suas variáveis significativas, que evoluem diferentemente, mas dentro de um sistema. As crises antecedem e sucedem o que ele chama de períodos. Caracterizam-se por “momentos em que a ordem estabelecida entre as variáveis é comprometida”, tornando-se impossível harmonizá-las. A interação crise-território é a chave que nos interessa. O primeiro elemento, caracterizado pelos desequilíbrios que se traduzem em recessões e depressões econômicas, se desenvolve no campo do segundo, como meio físico das relações sociais, econômicas e políticas [2].
Ess interação é fundamental para todo o percurso da obra de Gilmore que temos em mãos. A expansão prisional californiana surgiu dos escombros de uma crise, onde os cortes de investimento em setores militares, a destruição de milhares de vagas de empregos e o alargamento das desigualdades sócio-raciais concorriam em pleno período das lutas por direitos civis no país. Período esse que se sobrepõe e sucede justamente a uma crise de excedentes (capital financeiro excedente; terra excedente; população excedente relativa; capacidade estatal excedente) que são resultantes dos anos de ouro dos investimentos bélicos, tecnológicos e educacionais, alta concentração de terra e crescimento da produção agrícola. O revigoramento penal da Califórnia se deu justamente na superposição período-crise, em que estruturas estabelecidas em ciclos e crises anteriores, em determinado sistema, por estarem comprometidas, inviabilizaram a capacidade do Estado de compensar a própria crise.
Se não era verdade, portanto, a tese de que “aumentou o crime; nós reprimimos; o crime diminuiu”, desmontada por estatísticas oficiais que revelam que os crimes na Califórnia já estavam em queda antes mesmo do boom das prisões e que os crimes não decrescem durante os períodos de expansão prisional, o que explicaria, da perspectiva do crime, o fenômeno abordado na obra? Encontramos no cenário brasileiro percursos que nos permitem aproximações com essas mesmas questões, haja visto o incremento do encarceramento no Brasil nos últimos vinte anos?
A distribuição da morte como exercício organizado do poder de Estado, as topografias militarizadas onde se desenvolve parte da economia das drogas e do conflito, onde gerações passaram a ser socializadas pela experiência do enterro precoce de seus pares, o vocabulário do homicídio e da chacina na formação da experiência negra desde a infância em territórios de guerra é o resultado mais contundente do que costumamos chamar de guerra às drogas no Brasil.
O sequestro de vultosos recursos para uma engrenagem bélica e prisional, que incentiva ciclos de violência intermináveis, corrói o tecido social e promove uma altíssima polarização dentro de comunidades negras espalhadas por todo o território nacional. É incontornável observar que o aumento significativo da violência e da capacidade de organização dos grupos ligados aos ilegalismos na economia das drogas está diretamente relacionado ao cárcere: de um lado, a expansão prisional, com a criação de unidades especiais federais, concentra lideranças de organizações de todas as partes; de outro, o recrudescimento da violência e uma gestão espacial dos conflitos composta pelo Estado e pelas organizações criminais não apenas permite, como também promove e empurra, a arregimentação de novos indivíduos dentro do próprio sistema.
De acordo com os dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), entre 2006 e 2014, completada quase uma década da atual Lei de Drogas, a população carcerária brasileira dobrou e atingiu mais de 600 mil pessoas. No mesmo período, as prisões por tráfico de drogas aumentaram 344%, contribuindo para cerca de 27% do conjunto dos crimes que levavam as pessoas para o cárcere. Entre as mulheres, a prisão por drogas passou a representar 63% do total.
Segundo dados publicados pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, os custos econômicos da “criminalidade” passaram, entre 1996 e 2015, de cerca de R$ 113 bilhões para R$ 285 bilhões, um incremento real médio de cerca de 4,5% ao ano. Somando componentes como segurança pública e privada, seguros e perdas materiais, custos judiciais, perda de capacidade produtiva, encarceramento e custos dos serviços médicos e terapêuticos, o montante alcançou 4,38% da renda nacional [3]. Hoje, o Brasil investe quatro vezes mais recursos no sistema prisional do que com a educação básica [4].
Se uma suposta “epidemia das drogas” na sociedade estadunidense, iniciada nos anos 1980, foi utilizada como justificativa para a expansão prisional, no Brasil o modelo de guerra às drogas também se apoia na estigmatização para reforçar formas de controle. Gilmore cita a ideia dos “poucos” cuja diferença pode irromper de “forma horrorosa”. A ideia aqui é sobrevalorizar e reforçar, permanentemente, especialmente na mídia, imagens que sugiram uma espécie de “degradação” ocasionada pelo uso descontrolado de alguma substância tornada ilícita. A espetacularização midiática ajuda a produzir o cenário que fortalece o apelo social que autoriza a criminalização.
Os estigmas produzidos por esse modelo estão conectados com a distribuição desigual de “humanidade”, ou seja, guardam proporções particulares para cada população afetada. O pensador camaronês Achille Mbembe, em sua obra Políticas da inimizade [5], afirma que o princípio da segregação estava na gênese do empreendimento colonial. Em grande medida, para ele, colonizar consistia num trabalho permanente de separação – de um lado, meu corpo vivo, e do outro, todos esses corpos-coisas que o rodeiam; de um lado, minha carne humana, em função da qual todas essas carnes-coisas e carnes-comidas existem para mim. Um sujeito coletivo construído de modo subalterno por práticas políticas e discursivas, como nos aponta a pensadora Juliana Borges [6]. Nesse sentido, afeta o corpo não apenas biológico, mas o religioso, moral, a classe, o gênero etc. O corpo, portanto, como espaço de ideologia.
Com uma dedicação intelectual minuciosa, sofisticada, mas ao mesmo tempo conectada com o “chão da fábrica” das comunidades negras organizadas da Grande Los Angeles, Gilmore explora o conceito de “população excedente relativa”, nos permitindo o encontro com os processos decorrentes, em termos sociológicos, da união fatal entre poder e diferença, que se resolve parcialmente de acordo com hierarquias raciais que são internamente dinâmicas, mas estruturalmente estáticas.
É possível enxergar, a partir da obra de Gilmore, que há uma conjunção de fatores comuns que nos permite pensar como o paradigma da guerra às drogas, mesmo que parta de modelos de justiça criminal distintos, percursos próprios de expansão dos processos de controle, economias políticas diferentes, e seus movimentos particulares, compõe uma engrenagem transnacional, que financia e colabora com o genocídio negro na diáspora?
Aqui, o sentido das prisões e seu papel, elaborados na obra, encontra seu ponto de contato em um país antinegro: a neutralização. O Estado brasileiro tem minado e sabotado a existência negra há séculos. Em princípio no regime escravista e no pós-abolição formal da escravização, naquilo que Sueli Carneiro nos ajuda a entender, a partir do conceito foucaultiano de “dispositivos”, para pensar o racismo também como uma rede de instituições, discursos e leis, e como todos esses fatores se “articulam e se realimentam ou se realinham para cumprir um determinado objetivo estratégico” [7]. A neutralização, para Gilmore, a menos ambiciosa e a mais simplória das teorias que explicam o sentido da existência das prisões, afirma, simplesmente, que aqueles que estão presos [mas também mortos] não poderão causar problemas fora da prisão.
Um desafio que encontramos ao nos depararmos com a elaboração de Gilmore, que, como escrito no seu prólogo, não é “uma boa teoria apenas na teoria, mas também na prática”, é o de conectar experiências raciais afro-diaspóricas capazes de produzir possibilidades de sínteses que subsidiem ações conjuntas em rede. As respostas produzidas pelos diversos conjuntos de pessoas, organizações da sociedade civil e movimentos sociais deverão estar conectadas com espectros e condições particulares de seus territórios.
O momento que o mundo atravessa aponta para um percurso cada vez mais precarizador da vida, de empobrecimento das populações, altas taxas de desemprego, além das marcas profundas deixadas nas pessoas, famílias e comunidades pelas perdas humanas orquestradas, financiadas e produzidas pelo Estado, seja por suas ações ou omissões. O esfacelamento das redes de proteção social e o avanço do maior plano de construção prisional da história mundial estão intimamente ligados na história, na geografia e na economia política da Califórnia. A autora percorre todo esse caminho com excelência.
A concentração da riqueza e qualidade de vida nunca esteve tão flagrantemente desfavorável para grande parte da população do globo, em benefício de um pequeno número de países, e nestes, para um grupo restrito de empresas e pessoas. É possível que, em nenhum outro momento da história, aquilo que poderíamos chamar de sociedade internacional apresentou-se tão hierarquizada e excludente quanto nos dias atuais, como afirma o historiador Muniz Gonçalves [8].
Num contexto global em que episódios violentos inspirados pelo racismo ocorrem constantemente, o grande desafio é tornar o sofrimento local relevante [9]. As práticas do genocídio negro fazem parte de um continuum que marca as nações da diáspora negra. Nega-se aos membros das comunidades negras na diáspora o direito de sobreviverem plenamente como cidadãos ou seres humanos – o genocídio como um fato constitui o sustentáculo, a base sobre a qual as variadas manifestações de negritude que definem a diáspora são construídas [10].
O nosso encontro com o trabalho desta autora pode nos ajudar a criar um campo de entendimento, articulação e enfrentamento que impulsione novas reflexões, mas sobretudo, novas práticas. A experiência da Mothers ROC [Mothers Reclaiming Our Children – Mães Recuperando Nossos Filhos] e os primeiros encontros que produziram e foram ampliando as reflexões desenroladas nesta obra (largamente descritos no capítulo cinco) são a parte motora fundamental das mudanças que precisamos produzir para a necessária superação das prisões.
Antes de criar o conhecido Teatro Experimental do Negro, o intelectual brasileiro Abdias Nascimento criou o Teatro do Sentenciado – T.S. –, assim nomeado no intuito de descrever experiências de encenação desenvolvidas no interior da unidade prisional em que esteve encarcerado em São Paulo [11]. Isso ocorreu na década de 1940 e durou cerca de um ano, quando diversas obras foram produzidas e encenadas dentro do sistema prisional brasileiro.
As histórias contadas sobre, para e com as pessoas encarceradas, mas também o estudo da prisão, nos ajuda a compreender a superposição período e crise, e a crise do sistema penal como parte de seu próprio funcionamento. O mau funcionamento é estruturante, o que quer dizer que só funciona se não funcionar.
As minhas próprias histórias aqui narradas são registros de processos que comprometem de forma permanente, reiterada, os percursos de vidas de pessoas negras no Brasil. Se hoje o meu filho, que estava sendo gestado nas primeiras linhas deste texto, chegou à infância, os meus solavancos no transporte público não me deixam esquecer nem por um minuto que a máquina do massacre racial brasileiro, que também é transnacional, segue em diligência em nossos bairros e comunidades.
O chamamento ao final de Califórnia Gulag é também o eco das ruas de Cosme de Farias ou da fila de mulheres negras na Mata Escura. É o movimento dos povos, em uma perspectiva ubuntu, que permite a produção dessas conexões transnacionais, em uma necessária confluência de esforços dentro de um contexto de uma economia global, empresas e capitais transnacionais, que produzem em nossos territórios as fissuras e os despejos.
Cosme de Farias, que hoje dá nome a um bairro negro na cidade mais negra fora do continente africano, e que havia feito apenas o curso primário na Salvador escravista do final do século XIX, queixava-se das injustiças do cárcere, e dizia que a cadeia era lugar apenas para os “desprotegidos”. Desafiou: “Faça um teste (…) Anote a situação de cada preso e veja depois a proporção entre pobres e ricos, entre esclarecidos e analfabetos” [12]. Abriu escolas, distribuiu cartilhas de formação, tornou-se rábula, ofereceu apoio jurídico gratuito a quem não podia pagar.
Califórnia Gulag pode ser uma das mais importantes obras recentes para os estudos prisionais no Brasil. Não apenas pela sua sofisticada elaboração teórica, dedicada construção empírica e perspicaz capacidade de análise, mas por reconhecer a importância do processo de construção da luta coletiva, particularmente de mulheres negras, mas de familiares em geral, que empurram a produção de novas tecnologias, constrangem a ampliação de antigos aparatos de controle e vigilância, e permitem a construção de horizontes para além do muros.
Dudu Ribeiro é cofundador e coordenador executivo da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas.
Sobre o livro
A publicação do livro Califórnia Gulag: prisões, crise do capitalismo e abolicionismo penal, de Ruth W. Gilmore – que chega ao Brasil por meio da editora Igrá Kniga – traz para o Brasil o primeiro livro da autora Ruth Wilson Gilmore, considerada entre acadêmicos e ativistas como uma das pensadoras mais importantes da atualidade nos Estados Unidos. Califórnia Gulag já se estabeleceu como o maior clássico sobre a formação e a consolidação do “sistema industrial prisional” nos Estados Unidos. Ela é geógrafa e estudiosa do abolicionismo [não só] penal, do capitalismo racial, do encarceramento em massa, do racismo ambiental, da violência e do abandono organizados pelo Estado e dos movimentos sociais de resistência que vão na direção da libertação social. Ela é diretora do Center for Place, Culture, and Politics e professora no Departamento de Earth and Environmental Sciences no centro de pós-graduação da CUNY [Center University of New York]. Gilmore foi co-fundadora de muitas organizações sociais de base, incluindo a “Critical Resistance” (juntamente com Angela Y. Davis e Rose Bras), a “California Prison Moratorium Project” e a “Central California Environmental Justice Network“, e esteve presente no início das mobilizações do movimento abolicionista de mães do sul de Los Angeles (o Mothers ROC – Mothers Reclaiming Our Children), pioneiro em todo o país e largamente abordado no capítulo 5 do livro. Já lecionou na Ásia, África, Europa e América do Norte.
O livro de Ruth W. Gilmore, também traduzido por Bruno Xavier, é o segundo volume da coleção Raça e Capitalismo, uma série de traduções que relaciona as transformações do capitalismo ao continuum carcerário na história dos Estados Unidos. O primeiro livro da coleção, publicado em 2022, com prefácio da intelectual e ativista Juliana Borges, chama-se Capitalismo carcerário, da também abolicionista penal estadunidense Jackie Wang.
Acompanhe as atualizações sobre o lançamento do livro no Instagram da editora (@igrakniga) e no site igrakniga.com.
[1] Matos, Lucas de. Preto Ozado. São Paulo: Editora Principis, 2022.
[2] Santos, Milton. “A normalidade da crise”. Folha de São Paulo, 26 de setembro de 1999, p. 3.
[3] Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Custos econômicos da criminalidade no Brasil, 2018.
[4] Conselho Nacional de Justiça. Calculando custos prisionais: panorama nacional e avanços necessários, 2021.
[5] Achille, Mbembe. Políticas da inimizade. São Paulo: N-1 Edições, 2021.
[6] Borges, Juliana. Encarceramento em massa. São Paulo: Pólen Livros, 2019.
[7] Carneiro, Sueli. Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro: Zahar, 2023, p. 39.
[8] Ferreira, Muniz Gonçalves. “A engenharia da subordinação: os Estados Unidos e o subdesenvolvimento africano das décadas de 80 e 90.” Caderno Centro de Recursos Humanos (CRH)/UFBA, vol. 1, 2001.
[9] Dara, Danilo e Silva, Débora Maria da. “Mães e familiares de vítimas do Estado: a luta autônoma de quem sente na pele a violência policial”. In. Bala Perdida. São Paulo: Boitempo, 2015.
[10] Vargas, João H. Costa. “A diáspora negra como genocídio: Brasil, Estados Unidos ou uma geografia supranacional da morte e suas alternativas”. Revista da ABPN, vol. 1, n. 2, jul-out de 2010.
[11] Narvaes, Viviane Becker. O teatro do sentenciado de Abdias Nascimento: classe e raça na modernização do teatro brasileiro. São Paulo: tese de doutorado, USP, 2020.
[12] Coelho, Carlos & Hamilton Ribeiro. “O Quitandeiro da Liberdade”. Revista Realidade, n. 61, abril de 1971.