Câmara avança na precarização de direitos trabalhistas
Organizações sindicais esperavam que a matéria não fosse pautada para votação, mas já há uma sinalização do presidente Rodrigo Pacheco (PP) para incluí-la na ordem do dia de quarta-feira, dia 1º de setembro. Se a medida provisória não for aprovada até o dia 7 de setembro, ela perde a validade
Diferentes governos, desde a redemocratização, promoveram ações de flexibilização e diminuição das regras e do custo do trabalho, com o suposto objetivo de reduzir as taxas de desemprego no país. Duas reformas estruturais nessa direção foram aprovadas respectivamente nos governos de Fernando Henrique Cardoso e Michel Temer, com efeitos contrários àqueles propalados. Outras tantas medidas de menor envergadura também impactaram os direitos trabalhistas ao longo dos últimos anos, quase sempre negativamente.
No governo Bolsonaro, a diminuição dos custos trabalhistas das empresas é parte central da agenda do ministro da Economia, Paulo Guedes. Em momento algum, no entanto, o governo anunciou que faria uma reforma estrutural para alcançar esse objetivo. As ações são pulverizadas e têm sido majoritariamente apresentadas no contexto de enfrentamento à crise sanitária, como medidas supostamente excepcionais. Grande parte delas tem contado com expressiva receptividade na Câmara e no Senado (embora mais na primeira do que na segunda), dado o perfil ideológico do parlamentar mediano nas casas legislativas.
É exatamente esse o caso da Medida Provisória (MPV) 1045/2021, publicada em 28 de abril de 2021. As medidas provisórias têm eficácia imediata e validade de 60 dias, que é prorrogada automaticamente por igual período caso a votação não tenha sido concluída nas duas Casas do Congresso. Em 10 de agosto, a Câmara não apenas aprovou essa MPV, como acatou o parecer do deputado Christino Áureo (PP-RJ) – correligionário do presidente da Casa, deputado Arthur Lira – que a transformou em um Projeto de Lei de Conversão (PLV) – o PLV 17/2021. As medidas provisórias são transformadas em PLV quando o seu texto original é alterado.
Originalmente, a MPV 1045/2021 tinha por objetivo relançar o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda (PEMER), que permite a redução de jornada de trabalho e a suspensão de contratos durante a pandemia, com uma contrapartida de pagamento pelo governo do Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda (BEM). Ainda que sem resolver os problemas do PEMER anterior, no que diz respeito ao valor do BEM, à progressão das perdas de renda para o trabalhador em função do seu nível salarial e à redução do papel dos sindicatos na proteção dos trabalhadores em condições tão adversas como as atuais, a MPV não avançou sobre outras questões relativas a trabalho e emprego. Coube à bancada governista da Câmara cumprir esse objetivo adicional.
O texto aprovado, já remetido ao Senado, cria três novos programas que impactam o mercado de trabalho nos próximos cinco anos, sem participação efetiva da sociedade e debate parlamentar exaustivo sobre o assunto. Os três programas criados são: o Priore (Programa Primeira Oportunidade e Reinserção no Emprego), o Requip (Regime Especial de Trabalho Incentivado, Qualificação e Inclusão Produtiva) e o Programa Nacional de Prestação de “Serviço Social Voluntário”.
O primeiro, Priore, se aplica a dois grupos etários – jovens entre 18 e 29 anos e adultos com 55 anos ou mais sem vínculo empregatício formal há mais de um ano. Propõe um tipo de contrato semelhante ao anteriormente previsto na MPV 905, do “Contrato Verde e Amarelo”, que caducou em 2020. Os contratos para esses públicos, excluídos os trabalhadores domésticos e os trabalhadores rurais em contratos de safra, poderão ser firmados por 24 meses ao longo dos próximos 36 meses, desde que para geração de novos postos de trabalho. A remuneração será de no máximo 2 salários mínimos nacionais durante o primeiro ano, sem que estejam assegurados alguns direitos previstos na CLT, a exemplo da indenização em caso de encerramento antecipado e da transformação automática em contrato por prazo indeterminado, quando houver mais de uma prorrogação. Em benefício das empresas, além disso, há redução de alíquota devida de FGTS e de multa rescisória obrigatória na dispensa sem justa causa, bem como permissão de pagamento proporcional de férias e décimo terceiro de forma parcelada. O programa ainda prevê o pagamento de um Bônus de Inclusão Produtiva (BIP) aos trabalhadores, que pode substituir parte dos seus salários com um valor máximo mensal de até R$ 275, segundo cálculos do Dieese, sem integrar a base de cálculo do INSS. O custo com o BIP pelas empresas poderá ser ressarcido com créditos para pagamento das contribuições ao Sistema S.
O Requip, por sua vez, tem duração de três anos. É destinado a jovens também de 18 a 29 anos, desde que sem vínculo formal de emprego há mais de dois anos. Destina-se, além disso, a beneficiários dos programas federais de transferência de renda. A participação do trabalhador no Requip implicará em uma jornada semanal máxima de 22 horas, com recebimento do BIP, se houver engajamento em cursos de qualificação, bem como de uma Bolsa de Incentivo à Qualificação (BIQ), paga como contrapartida à realização de atividades laborais ditas eventuais. Contratos desse tipo terão duração máxima de 24 meses. De acordo com o Dieese, a soma do BIP e do BIQ resultará em uma remuneração mensal máxima correspondente à metade do salário mínimo nacional vigente, sem incidência de qualquer encargo, inclusive previdenciário. A justificativa é a (re)inserção de jovens no mercado de trabalho via qualificação profissional e ganho de experiência.
Já o Programa Nacional de Prestação de Serviço Social Voluntario tem como objetivo atender um público semelhante ao do primeiro programa – jovens entre 18 e 29 anos e adultos com mais de 50 – mas para inseri-los em atividades de interesse público, sem vínculo empregatício, por um período de dezoito meses, com uma jornada mensal de até 48 horas e uma remuneração mês limite de R$ 240 (Dieese). A operação do programa ficará à cargo das prefeituras municipais interessadas.
Nos três casos, a premissa do governo é a de que a alta taxa de desemprego, especialmente entre jovens, é decorrência de atributos individuais do trabalhador (ou da falta desses atributos): produtividade, escolaridade e experiência – desconsiderada a estrutura produtiva do mercado de trabalho brasileiro. Ademais, a MPV 1045/2021, tal qual aprovada pela Câmara, trata de questões outras sem qualquer relação com o desemprego e a pandemia – motivações originárias da medida. Permite, por exemplo, a flexibilização de jornada de determinadas categorias, inclusive mediante negociação individual em detrimento da coletiva; altera os limites (para maior) da jornada de trabalhadores em minas no subsolo; impõe restrições à fiscalização do trabalho; e dificulta o acesso gratuito de trabalhadores à Justiça do Trabalho. As alterações propostas, portanto, extrapolam escancaradamente a proposta original da MPV, sem que isso tenha sido objeto de intenso debate na casa legislativa.
Para avaliar a temperatura do debate e entender como diferentes partidos se manifestaram antes do voto a respeito de propostas de tamanha relevância, o Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB) se debruçou sobre os discursos de deputados e deputadas federais, proferidos entre 28 de abril e 28 de agosto de 2021, com menção à MPV, incluídos aqueles feitos quando da votação da matéria.
Foram 128 discursos sobre o tema no período, a maior parte deles (76%) no próprio mês de agosto, nos dias das sessões deliberativas sobre o assunto. Parlamentares do PT, partido de maior bancada da Casa ao lado do PSL, foram os que mais discursaram a respeito do tema – o partido reuniu 56 dos 128 discursos analisados, todos contrários à proposição. PSOL, PSB e PCdoB destacaram-se em seguida, com 23, 15 e 12 discursos, respectivamente, também contrários à medida. É importante mencionar que praticamente não houve debate/exposição de argumentos por parte dos parlamentares que apoiaram a MPV. Dos 128 discursos, menos de 10% continha posicionamento favorável ao texto do deputado Christino Áureo. Aí se enquadram alguns parlamentares do PP, PSD, Solidariedade e Novo. Além dos partidos oposicionistas que mais discursaram (PT, PSOL, PSB e PCdoB), os líderes do PDT, da Rede, da Minoria e da Oposição foram os únicos que orientaram suas bancadas a votar contra a MPV. Sua redação final, com os três programas aqui referidos, foi aprovada por 304 votos contra 133.
Organizações sindicais esperavam que a matéria não fosse pautada para votação, mas já há uma sinalização do presidente Rodrigo Pacheco (PP) para incluí-la na ordem do dia de quarta-feira, dia 1º de setembro. Se a MPV não for aprovada até o dia 7 de setembro, ela perde a validade. Aliás, foi o Senado que impediu, em 2020, com uso de recurso idêntico, a aprovação da carteira “Verde Amarela”. Votada a matéria, no entanto, é de se esperar que o resultado seja diferente do da Câmara. Apesar da alta taxa de adesão do Senado ao governo nas votações nominais, a Casa vem mantendo relação mais conflitiva com o Poder Executivo em função de três fatores – a vitória de Pacheco foi menos dependente do apoio governamental, a CPI da Covid-19 tem tido repercussão ímpar na sociedade brasileira, o que cria maiores obstáculos ao trânsito da agenda governamental e a bancada do Nordeste, que é a maior da Casa, tem mantido posição mais oposicionista. Nesse sentido, é mais provável que o Senado altere o texto aprovado na Câmara na direção de torná-lo mais próximo do original, e possivelmente, da prorrogação exclusiva do PEMER – é essa, inclusive, a sinalização do relator, senador Confúcio Moura (MDB), apesar de o líder do MDB na Câmara ter encaminhado voto favorável à redação final da MPV.
Um resultado desse tipo representaria uma perda considerável para o governo, especialmente se considerados dois fatos: é ano pré-eleitoral e o governo tem tido dificuldades significativas de manter o apoio do empresariado – vide as divergências recorrentes na condução da reforma tributária. Caso ocorra, no entanto, será um ganho expressivo para os trabalhadores. Restará, nesse caso, todavia, não perder de vista os caminhos recentemente adotados pelo Planalto na condução de uma agenda legislativa sabidamente prioritária do ministro da Economia. Até então, os atalhos estrategicamente perseguidos junto à Câmara reduzem a transparência do debate e, por conseguinte, a possibilidade de incidência de organizações da sociedade civil em temas de enorme relevância social.
Debora Gershon é cientista política, doutora (IESP/UERJ) e mestre em Ciência Política (IUPERJ), com pós doutorado pela University of California, San Diego (UCSD), e pesquisadora do Observatório Legislativo Brasileiro (OLB).
*Artigo produzido no âmbito do projeto Ciências Sociais Articuladas, que integra as iniciativas promovidas pela articulação entre a Associação Brasileira de Antropologia, Associação Brasileira de Ciência Política, Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais e Sociedade Brasileira de Sociologia em defesa das Ciências Sociais brasileiras, e é desenvolvido em parceria com o Observatório do Legislativo Brasileiro.