Cartografia dos óbitos da Covid-19 em São Paulo
As inadequadas condições sanitárias em muitas residências, o desprezo orquestrado pelo surto pandêmico, a exposição e falta de alternativa em relação à informação de baixa qualidade e as urgências não mitigadas em tempos de crise são alguns dos fatores que contribuem para esse padrão de dispersão socialmente orientado: uma dispersão geográfica, portanto, mais do que geométrica, apesar de alguma coincidência entre elas. O padrão socioespacial tem um corte de classe e a doença já faz dos mais pobres as suas principais vítimas
Lembro a primeira vez em que entrei em contato com a ideia de que quando observamos as estrelas estamos, a bem da verdade, olhando o passado. A formulação de fundo didático e apelo poético guarda, como um de seus sentidos, o alerta para o fato de que uma atualíssima imagem pode se constituir num retrato de eventos irremediáveis do passado. A cartografia de óbitos da Covid-19 divulgada pela prefeitura de São Paulo parece ter relação com essa ideia.
O cartograma das semanas epidemiológicas de 09 a 15 sanciona o que alguns observadores já estavam prevendo: a migração da Covid-19 para as periferias. As razões pelas quais o quadro se confirma são as mesmas pelas quais ele se torna aterrorizante. As inadequadas condições sanitárias em muitas residências, o desprezo orquestrado pelo surto pandêmico, a exposição e falta de alternativa em relação à informação de baixa qualidade e as urgências não mitigadas em tempos de crise são alguns dos fatores que contribuem para esse padrão de dispersão socialmente orientado: uma dispersão geográfica, portanto, mais do que geométrica, apesar de alguma coincidência entre elas. O padrão socioespacial tem um corte de classe e a doença já faz dos mais pobres as suas principais vítimas.
Efetivamente, os muitos problemas apontados para a coleta e acompanhamento dos dados, resultantes em boa medida da falta de testes, têm dado vantagem ao trabalho com o número de óbitos. É, muitas vezes, somente diante da morte ou de casos graves que uma avaliação e a notificação da doença são feitas. Esse foi o recurso que sobrou para o acompanhamento dos casos quando eles chegaram às periferias. Isso ajuda a explicar a relação entre o percentual de casos confirmados nas áreas com maior número absoluto de mortes e aquele registrado nas áreas mais afluentes do município.
Perdizes, Pinheiros, Jardim Paulista, Morumbi, Moema, Vila Mariana, Itaim Bibi, todos nas imediações ou no interior do chamado “vetor sudoeste”, a área de maior concentração dos altos rendimentos per capita da metrópole, apresentam sempre mais de 70% dos casos de morte com confirmação. Algo muito diferente ocorre, por exemplo, na Brasilândia, na Vila Prudente e Sapopemba, em Itaquera, em Cidade Tiradentes e na Capela do Socorro que, além de acolherem os mais expressivos conjuntos de UDHs (Unidades de Desenvolvimento Humano) com as menores rendas per capitas médias, detém os maiores números de registro de mortes por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG). Juntos, somente esses cinco distritos perfazem mais de 10% do total de mortes registrado nos 96 distritos da capital e neles raramente os casos confirmados passam dos 70%.
A impressionante discrepância entre o número de casos confirmados na Zona Oeste da capital paulista e o do restante do município parece ter continuidade entre os registros do mês de março e de abril. Os 347 casos que representavam um volume de mais de 50% do total do município, com 692 casos divulgados em 31 de março, evoluíram na mesma região para os 1.290 divulgados no dia 09 de abril, que continuaram a perfazer percentagem similar em relação ao total que já atingia o montante de 2.439. Tanto a aparência de continuidade quanto a própria discrepância que dá destaque ao número de casos confirmados na Zona Oeste, no entanto, parecem ser desmentidas pelos dados de morte por Covid-19 no município.
A concentração de casos confirmados expressa nos mapas encontra explicações diferentes em cada estágio da expansão geográfica do vírus. Uma compartimentação do movimento de difusão da doença em dois momentos sugere que primeiramente, sendo os seus principais vetores pandêmicos os executivos de multinacionais e um grupo ligado ao turismo intercontinental, é natural que a doença esteja ligada às áreas afluentes do município com os maiores vínculos internacionais do país. A clareza do recorte territorial das ocorrências é esperada em uma realidade urbana como a nossa, que traz níveis hipertrofiados de desigualdade social e espacial. Contudo, o fluxo de trabalhadores no espaço metropolitano, com uma massa de homens e mulheres impelidos a se deslocar de suas casas aos espaços de reprodução da riqueza todos os dias, não tardou a cumprir o seu papel no espraiamento da doença, que encontrou nas periferias e nos espaços de pobreza um ambiente muito mais favorável à sua disseminação. Se essa hipótese está correta, é preciso considerar que a continuidade do cenário apresentado pelo mapa de casos confirmados é fruto do atraso na obtenção dos resultados das coletas e da realização de um volume testes maior entre os habitantes das áreas mais ricas do que entre aqueles que vivem nas áreas periféricas (até, ao menos, um determinado momento).
Considerando que, pelas condições de enfrentamento da pandemia, as mortes constituem maior estímulo à notificação que os casos de contágio, é relevante considerar que a proporção de infecções na Zona Oeste do município seja também resultado de uma subnotificação nas periferias. Muito provavelmente, não estamos somente diante de mais um índice de mortalidade superior nas áreas pobres do município, o que se repete para outras causas de morte, violenta ou por doença. O que o número de mortes por Covid-19 registrado até agora pode revelar é um estágio de dispersão do vírus muito mais avançado que aquele apresentado pelos casos confirmados. Essa perspectiva aponta para o fato de que as nossas periferias vitimadas pelo espírito non stop da ganância econômica, pela situação de permanente urgência vivida pelas suas populações, pelo caos promovido pelas fake news, pela falta de condições sanitárias adequadas, entre tantas outras coisas, talvez, silenciosamente, estejam se tornando verdadeiros barris de pólvora pandêmicos.
A transmissão insondável e a incubação prolongada em muitos casos abrem uma janela temporal que separa o número atual do número futuro, exponencialmente elevado, de mortos. A primeira morte registrada por Covid-19 no município, também a primeira do país, ocorreu no dia 17 de março. Duas semanas depois, no dia 31, já eram 118 mortes suspeitas. No dia 11 de abril, em prazo ainda menor, essas já haviam crescido para 1.207. O crescimento que manteve, até agora, um padrão geométrico de razão 10, se preservado para o próximo período, será ele a confirmação de um desastre de proporções calamitosas. A hecatombe já está em curso. O número de leitos ocupados em UTIs já ultrapassa os 80% do total no Hospital das Clínicas, no Hospital Geral da Pedreira, No Hospital Geral de Vila Nova Cachoeirinha, e já atingiu os 100% no Hospital Emílio Ribas, considerando dados divulgados no dia 15 de abril. Nenhum cálculo econômico ou político tem efeito garantido diante de um evento de natureza caótica como este. Seguramente os mais pobres serão os mais vitimados pelo novo coronavírus, mas o alcance da perda de vidas, sob as atuais condições de governança e dissolução institucional, é indômito.
César Simoni Santos é coordenador do Programa de Pós-graduação em Geografia Humana na Usp.