Caso Cajueiro: CIDH recebe denúncia contra o Estado brasileiro
Há anos os moradores de comunidade tradicional da zona rural de São Luís (MA) travam batalhas na justiça contra a construção de um porto na praia de Cajueiro. A empresa responsável pelo empreendimento passou a se apresentar como proprietária de uma área de aproximadamente 200 hectares, na qual ainda habitavam muitas famílias. Frente às irregularidades fundiárias e a inação das instâncias jurídicas estaduais e nacionais, o Conselho Nacional de Direitos Humanos encaminhou uma denúncia à CIDH, contra o Estado brasileiro.
“Nunca houve, de fato, diálogo. Nós fomos desrespeitados pelo governo do estado de todas as formas”. É assim que Clóvis Amorim, 54 anos, vê a influência dos agentes públicos do Maranhão na situação em que se encontra sua comunidade, o Cajueiro, na zona rural de São Luís, capital do estado. Liderança na luta pela defesa do território, o pescador considera o estado e o judiciário inimigos dos direitos de comunidades tradicionais da região. “É o governo o maior violador desses direitos, sempre nos expulsando com bombas e violência”, conta em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil.
Há anos os moradores travam batalhas na justiça – com o apoio de alguns movimentos sociais como a Comissão da Pastoral da Terra e pesquisadores da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) –, contra a construção de um porto na praia de Cajueiro, empreendimento da empresa TUP Porto São Luís S.A., que pertence ao grupo paulista WTorre. A empresa, que antes se chamava WPR São Luís Gestão de Portos e Terminais Ltda., passou a se apresentar como proprietária de uma área de aproximadamente 200 hectares, na qual ainda habitavam muitas famílias do Cajueiro. Frente à resistência dos moradores, o poder público pendeu para os interesses privados e colaborou para uma série de irregularidades fundiárias a fim de expulsá-los de lá, de acordo com movimentos sociais locais.
O uso de bombas, relatado por Clóvis, faz alusão a uma violenta reintegração de posse no Cajueiro, em agosto de 2019. Desde então, a luta da população para se manter nas terras que, em teoria, teriam a posse garantida por direitos constitucionais, tem passado por novas etapas na esfera jurídica.
Em dezembro de 2021, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), que acompanha o caso do Cajueiro há mais de três anos, protocolou uma denúncia[1] à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) contra o Estado brasileiro. O encaminhamento da denúncia foi aprovado por unanimidade do Conselho, frente às diversas violações dos direitos fundamentais da comunidade tradicional.
Ameaças, disputas e a parcialidade da justiça maranhense
O território da comunidade do Cajueiro corresponde a cerca de 600 hectares, divididos em quatro regiões. Seus habitantes são, em sua maioria, núcleos familiares de múltiplas atividades econômicas como a coleta, a roça e, principalmente, a pesca. Tanto os açudes quanto os manguezais, habitat de camarões e alguns tipos de pescados, são parte significativa do sustento dessas pessoas, não só para economia doméstica, mas para o abastecimento de mercados e feiras locais.
De acordo com Horácio Antunes, professor do departamento de Sociologia da UEMA e membro do Grupo de Estudos Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente (GEDMMA), as relações comunitária e com o território garantem a subsistência dessas famílias. “Há uma colaboração interna muito significativa, na qual a produção de cada família também se estende para qualquer um ali que esteja passando por dificuldades, mas para isso dependem do território”, explica.
O modo de vida da comunidade, reconhecida como população tradicional pelo Estado brasileiro e por órgãos internacionais de direitos humanos, está ameaçada pela expansão das atividades econômicas em São Luís, desde o crescimento da região como polo de escoamento de produtos agrícolas e minerais. Em 2011, durante o segundo mandato da então governadora Roseana Sarney (MDB), a União reverteu a decisão que passava o domínio útil das terras para os moradores e a concedeu à empresa Suzano Papel e Celulose. Desde então, alguns empreendimentos foram liberados nas praias do Parnauaçu e do Cajueiro.
Em 2014, com a chegada da WPR (hoje, TUP Porto São Luís), os moradores buscaram apoio político e jurídico no GEDMMA para denunciar a situação. Algumas lideranças chegaram a pedir proteção às entidades de direitos humanos por sofrerem ameaças de pessoas ligadas à empresa, além de relatos de violência e perseguição por jagunços, que teriam sido contratados como seguranças da região pretendida para a construção do porto. Há evidências de negociações ilegais com os moradores, realizadas sob condições jurídicas completamente desiguais, nas quais foram coagidos a fornecer dados pessoais e bancários para a empresa, num falso levantamento censitário, de acordo com Horácio. Depois de coletados os dados, a empresa alegava ter depositado dinheiro nas contas bancárias fornecidas, e que os moradores que não deixassem as propriedades seriam vítimas de processos judiciais. Ameaçados pelas investidas da empreiteira, muitas famílias abandonaram suas casas sem qualquer tipo de indenização.
As decisões tomadas pela justiça do Maranhão de negar a permanência dos moradores no território passaram por cima das evidências de ocupação centenária e coletiva do lugar, além de contradizer antecedentes jurídicos que garantiam essa permanência. Além disso, há inúmeros relatos de constantes alterações no âmbito jurídico, tanto na troca de agentes do judiciário responsáveis pelo processo, quanto anulação de medidas já adotadas. “Há uma clara percepção da posição parcial da justiça do Maranhão com relação ao empreendimento”, denuncia Horácio. Todos esses fatores levaram a comunidade e as entidades envolvidas a se organizarem pela judicialização do processo em instâncias para além dos órgãos brasileiros.
Omissão do governo estadual
Pouco antes do início da pandemia de Covid-19, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) realizou uma missão in loco para verificar a situação do conflito. Na ocasião, foram feitas reuniões com secretários estaduais e com a Defensoria Pública do estado do Maranhão, além do encaminhamento de uma série de recomendações a serem cumpridas, inclusive o reconhecimento da luta dos moradores como uma questão coletiva, e não individual, como simulava a empresa.
Designado para acompanhar essa missão no Cajueiro, o advogado Marcelo Chalréo representava o CNDH quando uma delegação de líderes da comunidade foi até Brasília para denunciar os problemas causados pelas ações da empresa titular e as terceirizadas responsáveis pelas obras. Segundo seu relato, nenhuma medida significativa foi adotada, desde então. “O governo do Maranhão não foi apenas omisso, foi facilitador dessas violações contra os direitos coletivos da comunidade”, conta. Já o Estado brasileiro não atuou para defender os direitos fundamentais dessa população. “Ignorar a tradicionalidade da comunidade traz graves consequências para a União, uma vez que o estado brasileiro é signatário de acordos de respeito aos direitos de povos originários”, explica o advogado.
O CNDH buscou a promotoria agrária e o ministério público, por meio de ofícios, mas não teve retorno. O atual governador Flávio Dino (PSB) chegou a se pronunciar sobre o caso em suas redes sociais, depois da pressão popular, se colocando apenas como mediador de um problema entre a população e o judiciário. O governador assinou a licença prévia que permitiu a supressão vegetal para o início das obras do porto.
O então secretário estadual de indústria e comércio, Simplício Araújo, chegou a assinar um decreto de desapropriação, algo fora do alçado do cargo que ocupava, segundo a legislação estadual. O decreto acabou anulado. A empresa recorreu à anulação, e o decreto foi reativado pela justiça. A única possibilidade de nova anulação seria o estado recorrer dentro do prazo proposto, o que não ocorreu.
Quando procurado pela reportagem, o governo do Maranhão declarou que a área é particular e foi adquirida anteriormente à gestão de Dino, e que os conflitos fundiários entre a empresa e os moradores já foi judicializado, cabendo à justiça decidir sobre os pedidos apresentados pelas partes. A respeito dos impactos ambientais na região, a assessoria de comunicação do governo afirmou que todos os empreendimentos são avaliados pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Recursos Naturais, através de visitas técnicas ambientais in loco.
Denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos
O professor de pós-graduação da UEMA, Frederico Lago Burnett, elaborou relatório[2] a pedido do CNDH e, a partir das informações do documento – que traz depoimentos de moradores e ex-moradores, informações técnicas sobre o patrimônio cultural e ambiental da área e um panorama geral dos entraves judiciais e agrários do caso – o Conselho decidiu, por unanimidade, protocolar uma denúncia contra o Estado brasileiro na Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Marcelo Chalréo explica que perante a irreversibilidade das consequências sofridas pelos moradores e pelo meio ambiente, essa denúncia, encaminhada em dezembro do ano passado, busca dar visibilidade ao caso. “Esse é um dos casos mais graves de violações múltiplas e conjugadas de direitos, do ponto de vista do que estabelecem os tratados internacionais sobre respeito aos direitos humanos de comunidades tradicionais”, explica.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) é o primeiro canal fora das instâncias internas da União, nas Américas. Esse expediente não pode ser acionado em quaisquer circunstâncias, há alguns requisitos a serem cumpridos para que seja aprovada a tramitação do processo na CIDH. O papel da Comissão é de analisá-lo, podendo ser aprovado ou deferido, e só então são feitas recomendações ao Estado brasileiro para mediar o conflito. Se o Estado não acatar as recomendações no prazo estipulado, torna-se réu em outra instância do sistema interamericano, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), um tribunal composto por juízes que podem condenar a União a indenizar os envolvidos no processo. O Estado brasileiro já foi julgado por dez casos na Corte IDH, sendo condenado em nove delas, até o início de 2021.
Arco norte, capital chinês e os grandes empreendimentos no Maranhão
A construção do porto no Cajueiro faz parte do plano Arco Norte, elaborado em 2016. Esse plano tem como objetivo baratear o escoamento de commodities do centro-norte do Brasil para o mercado internacional – especialmente para a China – a partir de uma infraestrutura de portos, ferrovias e rodovias interligadas. O Porto São Luís pertence ao conglomerado do ramo de construção e engenharia, firmado pelo grupo WTorre e a China Communications Construction Company (CCCC). Até 2019, o empreendimento portuário era avaliado em quase 2 bilhões de reais.
Até o final do ano passado, a empresa realizou a retirada da cobertura vegetal de boa parte dos mais de 200 hectares pretendidos, a terraplanagem e o despejo das famílias que ali habitavam. Os documentos oficiais da aquisição do terreno na comunidade do Cajueiro, em posse da TUP São Luís S.A, estavam sob investigação do Ministério Público Federal, processo que foi colocado sob sigilo. Em reportagem para o Valor Econômico, o diretor executivo da CCCC no Brasil, Helder Dantas, explicou que o grupo chinês tem reavaliado o investimento no projeto do Porto São Luís, não só por descompassos financeiros entre os sócios, mas também pelas condições fundiárias que “atrapalham o projeto”.
Hoje, a presença da empresa no Cajueiro se traduz numa pequena parte administrativa e alguns vigilantes. Para o professor Horácio Antunes, outra razão para a estagnação do projeto, além da falta de provas da regularidade fundiária do terreno, está a venda de parte das ações de algumas empresas menores para a Cosan S.A, petrolífera que adquiriu minas de ferro no sul do estado do Pará, o que alteraria a finalidade do porto. Ao invés de servir ao escoamento de produção agrícola, estaria voltado para a exportação de minério de ferro. Essa situação acionária veio a público ainda em 2021, quando também anunciaram que retomariam as obras. “Provavelmente não conseguem resolver essas pendências jurídicas com relação ao conflito agrário”, explica Horácio.
Para ele e outros especialistas que acompanham o caso, a irregularidade na documentação, a grilagem e as suspeitas relações entre a empresa e seus acionistas são cartas necessárias para barrar outros despejos dos moradores e estragos irreversíveis no ecossistema da região. “Temos esperança no caso Cajueiro, porque implica em sérios crimes, inclusive, que envolve governos do estado anteriores ao atual, é necessário acompanhar essa luta para entender os próximos passos”.
Para Clóvis Amorim, morador, o descaso do Estado fez com que as pessoas se juntassem para defender seu direito territorial. Para ele, só a articulação coletiva será capaz de impedir mais interferências na vida dos seus e de sua terra. ”O que resta é a espera ansiosa para que, verdadeiramente, prevaleça o nosso direito”.
A reportagem procurou o grupo WTorre por meio de sua assessoria de comunicação, mas até o fechamento da matéria não obteve retorno.
*Texto editado às 17 horas do dia 21 de fevereiro para a inclusão do posicionamento do Governo do Maranhão.
Laura Toyama faz parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil.
Referências
[1] Petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Conselho Nacional de Direitos Humanos. Brasília, 30 de Novembro de 2021. Disponível em https://www.gov.br/participamaisbrasil/relatorios2
[2]BURNETT, Frederico Lago. Relatório sobre a situação dos direitos humanos das comunidades tradicionais do Cajueiro. São Luís, MA, 2021.