Catadores de materiais recicláveis: a linha de frente invisível
No início da pandemia, 80% das organizações de catadores ficaram paralisaram devido a riscos aos quais estavam expostas e a falta de orientações técnicas para seguirem trabalhando com segurança
No Brasil, o isolamento social impactou severamente a produção de lixo. A quantidade de lixo doméstico cresceu de 15% a 25%, de acordo com a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe). Antes uma casa produzia em média 4,86 kg de lixo por semana, número que sobe para 5,83 kg após início da pandemia. O aumento vertiginoso de lixo na pandemia está associado a maior busca por materiais de uso único. Contudo, uma vez descartados, poucos são os que se perguntam quem está lidando com esse problema de modo a diminuir focos de contágio. Nesse sentido, a pandemia não somente contou com grupos de profissionais especializados nas áreas de saúde, abastecimento e alimentação na linha de frente, mas também com catadores e catadoras de materiais recicláveis.
Atualmente, existem cerca de 800 mil profissionais catadores em atividade no Brasil, e uma média de 1.700 cooperativas[1]. No início da pandemia, 80% das organizações de catadores ficaram paralisaram devido a riscos aos quais estavam expostas e a falta de orientações técnicas para seguirem trabalhando com segurança. Isso gerou um grande impacto na indústria da reciclagem por falta matéria-prima, pois 90% dos insumos vem das mãos dos catadores. Um exemplo disso é a indústria do vidro, que precisou importar cacos para que seus fornos não parassem.
Além disso, a pandemia intensificou a guerra de preços entre o plástico reciclado e virgem. Com a queda no preço petróleo, ficou mais caro produzir plásticos de origens recicláveis. Segundo a Independent Commodity Intelligence Services (ICIS) está de 83% a 93% mais caro produzir garrafas de bebidas vindo de plásticos recicláveis.
Mesmo com todas as adversidades, muitos catadores permaneceram na ativa. Seu trabalho é indispensável, pois, principalmente em tempos de pandemia, intensificam os serviços de limpeza urbana[2], recolhendo materiais passíveis de contágio.
Superfícies lisas de plástico, papéis e metais permitem que o vírus seja transportado, com persistência de até cinco dias[3]. Tal processo coloca a categoria também na linha de frente do combate a covid-19, pois ao realizarem o recolhimento de resíduos acabam também mais vulneráveis ao vírus. Para se ter uma ideia do volume e da vulnerabilidade, de acordo com o Atlas do Plástico, da Fundação Heinrich Böll, se todos os brasileiros usassem máscaras descartáveis, seriam quase 10,5 mil toneladas de plástico, o equivalente ao peso de nove estátuas do Cristo Redentor[4], por mês. Isso sem mensurar materiais que tiveram contato com pessoas infectadas e foram descartados sem o devido cuidado.
Pelo o risco de contágio, houve seguimentos empresariais que propuseram que todos os resíduos fossem incinerados e que essa seria uma solução definitiva para se lidar com o lixo no pós-pandemia. Contudo, o que pode parecer uma solução simples e barata, na verdade produz quantidades diversas de substâncias tóxicas, orgânicas ou inorgânicas[5], que causam severos riscos à saúde e ao meio ambiente. Além disso a incineração vai na contramão da Política Nacional de Resíduos Sólidos[6] e não resolve o problema na fonte, que é reorganização dos padrões de consumo em um país cuja população gera por ano aproximadamente 460 mil containers somente de resíduos plásticos[7]. Organizações de catadores estiveram no embate dessa narrativa de que seria impossível conciliar pandemia e reciclagem, instituindo protocolos de segurança[8] e promovendo soluções inovadoras, como a quarentena dos materiais recicláveis, em que os produtos ficam até sete dias armazenados antes de serem encaminhados para reciclagem. Outras medidas também têm sido adotadas, como a pulverização dos materiais com produtos de higienização.
Os catadores de rua viram a produção de resíduos recicláveis migrarem do comércio, onde antes conseguiam materiais de melhor qualidade, para as residências, no qual o resíduo sai mais misturado e dispende mais horas de trabalho para conseguir melhor renda. Contudo, é impressionante notar que a produção de materiais recicláveis aumentou durante a pandemia. Na cidade de São Paulo, o aumento na produção e coleta de resíduos recicláveis é de 25%, segundo a Autoridade Municipal de Limpeza Pública (Amlurb). Já segundo a prefeitura de Curitiba, na cidade o percentual é de 28%.
Uma parte das organizações de Catadores, cerca de 20%, nunca chegou a paralisar o trabalho durante a pandemia. Um alto nível de organização permitiu que adotassem rapidamente protocolos de segurança, como distanciamento no local de trabalho, revezamento de turnos, uso rigoroso de máscaras e proteção facial, higienização constante das mãos, entre outras medidas. Foi possível adotar essas medidas graças a contratos de prestação de serviços com os municípios, um dos benefícios do trabalho cooperativado, ao contrário da informalidade e do empreendedorismo individual.
Os municípios nos quais não há contratação das organizações de Catadores a situação é mais difícil, pois os trabalhadores têm que arcar sozinhos com a compra do equipamento de proteção. Por isso, acesso a EPIs têm se dado por meio de companhas de solidariedade, como a iniciativa do Ministério Público do Trabalho do Paraná que promoveu a compra e distribuição desse tipo de proteção aos Catadores. Em Natal (RN), o MPT permitiu a realização testes de covid-19 prioritariamente aos catadores, afirmando que entre enfermeiros, médicos, caminhoneiros e outros profissionais na linha de frente há também esses “alquimistas do lixo”[9].
A pandemia do coronavírus caminha junto com efeitos de desequilíbrio ambiental que causam mudanças climáticas em todo o mundo. É necessário reconhecer a essencialidade que atividades produtivas que contribuem para o equilíbrio ambiental planetário como a reciclagem e o papel fundamental dos catadores e catadoras nesse contexto.
Davi Amorin, coordenador do setor de comunicação do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Reciclados.
Daisy Bispo Teles, coordenadora júnior para agricultura da Fundação Heinrich Böll.
[1] AMORIN, Davi; COSTA, Claudete da; ROCHA, Laureano da (2020) Lutar, Criar, Reciclagem Popular in Atlas do Plástico (2020). Fundação Heinrich Böll.
[2] Bortoli, Mari Aparecida (2013): Processos de organização de catadores de materiais recicláveis: lutas e conformações inRev. katálysis vol.16 no.2 Florianópolis July/Dec. 2013
[3]Kampf, G. et al. Persistence of coronaviruses on inanimate surface and their inactivation with biocidal agents. Journal of Hospital Infection, no 104, 2020. https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0195670120300463
[4] MONTENEGRO, Marcelo (2020): O Tsunami Plástico in Atlas do Plástico (2020). Fundação Heinrich Böll.
[5] GOUVEIA, Nelson and PRADO, Rogério Ruscitto do. Análise espacial dos riscos à saúde associados à incineração de resíduos sólidos: avaliação preliminar. Rev. bras. epidemiol. [online]. 2010, vol.13, n.1 [cited 2020-12-02], pp.3-10. Available from: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-790X2010000100001&lng=en&nrm=iso>. ISSN 1415-790X. https://doi.org/10.1590/S1415-790X2010000100001
[6] Elisabeth Grimberg, Instituto Polis in https://polis.org.br/noticias/coalizao-contra-a-incineracao-do-lixo-cria-estrategias-de-mobilizacao/
[7] TELES, Daisy Bispo in Gigante pelo próprio lixo que produz in Atlas do Plástico (2020). Fundação Heinrich Böll.
[8] ORIS – Observatório da reciclagem Inclusiva e Solidária, As atividades dos catadores e a coleta seletiva durante e após a pandemia da COVID-19: http://mncr.org.br/biblioteca/publicacoes/livros-guias-e-manuais/as-atividades-dos-catadores-e-a-coleta-seletiva-durante-e-apos-a-pandemia-da-covid-19-manual-operacional
[9] AMORIN, Davi; COSTA, Claudete da; ROCHA, Laureano da (2020) Lutar, Criar, Reciclagem Popular in Atlas do Plástico (2020). Fundação Heinrich Böll.