Catolicismo atormentado
Na Europa, a secularização vem atingindo rapidamente até mesmo a vida interna das comunidades cristãs. O quadro é aterrorizante para os bispos e o papa Bento XVI, que tentam incentivar a ação pastoral nos países de tradição católica sem negociar valores como a família, o respeito à vida e ao bem comum
A o encerrar a 23ª Jornada Mundial da Juventude (JMJ) em Sydney, na Austrália, em 20 de julho passado, o papa Bento XVI anunciou que a próxima edição do evento seria em
Madri, entre os dias 15 e 21 de agosto de 2011. “É um grande apoio à Igreja espanhola”, comentou o diário católico de direita, ABC. Confirmada a notícia, a Espanha tornou-se
o único país, junto com a Itália, a organizar pela segunda vez esse evento desde a sua criação, em 1984. E os privilégios não param por aí: nenhuma outra nação recebeu duas
visitas de Bento XVI desde a sua eleição, em 2005. A predileção pelo solo ibérico é tão explícita que suscitou debates sobre o possível fortalecimento do país como posto avançado no processo de reconquista católica de uma Europa pró-secularismo.
A aposta de Bento XVI pode funcionar. Afinal, o país já deu várias demonstrações dessa possível vocação. Em 18 de junho de 2005, por exemplo, centenas de milhares de manifestantes mobilizados por associações católicas protestaram nas ruas de Madri contra um projeto de lei que legalizava o casamento homossexual, defendido pelo governo. Algumas semanas depois, em 12 de novembro, a capital voltou a ser invadida por espanhóis hostis ao projeto de lei que tornava opcional o ensino da religião católica e diminuía o peso da Igreja no sistema escolar. Em julho de 2006, durante uma visita a Valência, Bento XVI declarou aos bispos do país: “Neste período em que um processo de secularização vem atingindo rapidamente até mesmo a vida interna das comunidades cristãs estou ciente do impulso que vocês estão dando à ação pastoral e quero incentivá-los”. Assim, em outubro de 2007, seguindo um movimento iniciado 20 anos antes por João Paulo II, o Vaticano organizou a beatificação maciça de 498 católicos mortos pelos republicanos durante a Guerra Civil Espanhola.
Recatolização ilusória
Com a vitória dos socialistas nas eleições legislativas de 9 de março de 2008 as divergências tornaram-se mais agudas, o que deu um incentivo ainda maior à queda-de-braço
entre o poder e o episcopado espanhol em torno de temas como a revisão da lei sobre o aborto, a qual o governo pretendia flexibilizar para aproximar-se da legislação européia, mais avançada. “o que falta em cada campo, e principalmente no do episcopado, são mentes abertas e esclarecidas, alguém com o estofo do antigo primaz, o cardeal Vicente Enrique y Tarancón. Ele havia compreendido que uma ?recatolicização? da Espanha era ilusória”, avalia o historiador Benoît Pellistrandi.
Claro, a Igreja segue contando com poderosos aliados em setores da economia, na mídia e entre os seus militantes. E o opus Dei continua sendo uma de suas peças-chave. Sua influência, porém, tem sido rechaçada por uma forte secularização das mentalidades: mais de 78% dos católicos votam na legenda socialista, e, dentre estes, 33% são
praticantes. Por enquanto, os bispos ainda se recusam a reconhecer esse pluralismo da sociedade e decidiram guerrear contra um governo que eles consideram como um “adversário moral”.
Ao mesmo tempo, na Itália, o desaparecimento de um partido democrata-cristão amplamente desacreditado por suas ligações com a máfia levou o episcopado a reconsiderar por completo o modo de intervenção na cena pública. os objetivos ainda são a defesa de valores “não-negociáveis” da Igreja: a família, o respeito à vida e ao bem comum. Mas agora os religiosos tiram proveito do multipartidarismo e dos meios de comunicação de massa. Essa estratégia é obra do cardeal Camillo Ruini, que presidiu durante 16 anos (1991-2007) a Conferência dos Bispos Italianos. os resultados foram positivos, pelo menos com a população: em junho de 2005 a Igreja havia recomendado a abstenção num referendo que visava facilitar a procriação auxiliada por mães de aluguel, uma prática condenada pelo episcopado e por Bento XVI. E os eleitores acabaram votando contra a aprovação do projeto.
No Leste Europeu, a Igreja polonesa também está sendo duramente confrontada pela secularização e o pluralismo. “A crise é colossal”, analisa o jesuíta Pierre de Charentenay. “Chegou a um ponto que ninguém teria imaginado há 20 anos: muitos padres desistiram do seu ofício, as vocações sacerdotais e religiosas estão arrefecendo, os bispos tornaram-se administradores desprovidos de carisma e a prática religiosa diminuiu. os poloneses enfrentam a dura aprendizagem da liberdade e do pluralismo.” Vale lembrar que no país 95% dos cidadãos se dizem católicos, e destes, 40% praticam assiduamente o culto. Contudo, por mais que sejam orgulhosos dos seus valores familiares, os poloneses não deixaram de ser sexualmente libertos e, para desespero da doutrina católica oficial, 54% são favoráveis ao aborto e 60%, ao concubinato. Além disso, os jovens vêm se mostrando cada vez mais distantes da autoridade dogmática da Igreja: 52% dos que têm menos de 25 anos declaram manter uma fé exclusivamente pessoal.
E como a Igreja reage diante dessas evoluções? Mal, pois não está mais sintonizada com a sociedade. Ela continua insistindo na pretensão de falar em seu próprio nome, como no tempo em que simbolizava a resistência ao comunismo. Essa pretensão, porém, nada mais é do que uma ficção. Uma das causas prováveis dessa crise sem precedentes foi a morte de João Paulo II em 2005. “Em seu tempo, o papa era o chefe real da Igreja polonesa, à qual ele havia conferido uma espécie de status mitológico de exceção”, explica o sociólogo Patrick Michel. “A sua morte sacramentou o retorno da Polônia a uma normalidade para a qual visivelmente ela não estava preparada”. Além disso, o catolicismo sempre esteve atormentado por tensões internas, que anteriormente eram mantidas sob silêncio por causa da oposição aos regimes de esquerda. A mudança política e a confrontação totalmente inédita com uma realidade social plural contribuíram para desestabilizar e deslegitimar um episcopado sem brilho e incapaz de encarar esses novos desafios.
Contra a marginalização
Ao analisar a etapa atual do processo de descristianização na Europa, o jesuíta Henri Madelin constata que, “depois de uma secularização ?sorrateira? que age essencialmente sobre os costumes, surge uma espécie de laicização da ordem social como um todo, que visa impedir qualquer intervenção da religião no domínio público”. É justamente
diante desse desafio que estão confrontados, de forma mais violenta do que para outros, países de tradição católica, tais como a Espanha, a Itália e a Polônia.
É contra essa tentativa de marginalização da Igreja pela sociedade liberal que Bento XVI dá mostras de realismo e de voluntarismo. No início do seu pontificado, o papa reconheceu que a crise do catolicismo europeu parecia grave e duradoura e anunciava: “Não existe nenhum sistema que permita uma mudança rápida. Nós devemos ir em frente, sair deste túnel com paciência”. O chefe da Igreja Católica está decidido a não se deixar derrotar pelas sombras do secularismo e do relativismo modernos. É por isso que ele apóia, sem pestanejar, o combate frontal que os episcopados espanhóis e italianos travam contra elas.
*Michel Cool é jornalista e autor, entre outros livros, de Messagers du silence, Paris, Albin Michel, 2008.