Celso Furtado: caçador de mitos
Com nova edição pela Ubu, O mito do desenvolvimento econômico revela faceta crítica do teórico do subdesenvolvimento
O mito do desenvolvimento econômico foi publicado originalmente em 1974 e colige ensaios escritos por Celso Furtado de 1972 a 1973, quando ainda exilado pela ditadura militar, que ele observava atenta e criticamente do exterior. Em verdade, explicar o desempenho econômico do regime (que, lembremos, encontrava-se em seu momento mais violento) é a preocupação de fundo do autor neste conjunto de textos, acompanhados, na nova edição da Ubu Editora, por uma introdução da economista Leda Paulani e um posfácio do também economista Ndongo Samba Sylla. Embora relativamente distintos entre si, cada um com um enfoque específico, todos os textos convergem e culminam na crítica da ideia de desenvolvimento econômico que orientou (e ainda orienta) tanto pesquisas acadêmicas como políticas governamentais, e deslumbrou os admiradores do “milagre econômico”.

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Nesse sentido deve-se entender o movimento geral do livro, que vai do mais geral (a história global e geral do sistema capitalista) ao mais particular (sua configuração brasileira). Assim, no primeiro ensaio, “Tendências estruturais do sistema capitalista na fase de predomínio das grandes empresas”, Furtado parte de uma crítica do então recente estudo The Limits of Growth, desenvolvido por pesquisadores do Massachusetts Institute of Technology (MIT), para dela elaborar uma rigorosa análise das diferentes formas de desenvolvimento histórico do capitalismo industrial. Contra a “profecia do colapso” preconizada pelo estudo do MIT, que concluía que a universalização do padrão de consumo dos países desenvolvidos por todo o globo levaria necessariamente à ruína do sistema econômico mundial, dada a disponibilidade limitada de recursos naturais, Furtado apresenta uma rica história econômica do desenvolvimento do capitalismo, que revela o principal equívoco do estudo: não a preocupação ambiental, louvada pelo nosso autor, mas o pressuposto de que o desenvolvimento econômico dos países centrais pode ser alcançado pelos países periféricos. A profecia é falsa não porque a pressão ecológica causada pelo estilo de vida industrial não é real, mas porque a universalização do padrão de consumo industrial é impossível, visto que os países subdesenvolvidos não possuem condições efetivas de alcançar o padrão dos países cêntricos, isto é, de acumular capital na mesma medida e no mesmo sentido, sobretudo porque a sua acumulação está subordinada à acumulação dos países centrais. Assim, Celso Furtado nos mostra que mais falsa que a profecia do colapso é a própria promessa de desenvolvimento econômico universal.
No segundo ensaio, “Subdesenvolvimento e dependência: as conexões fundamentais”, Furtado busca justamente caracterizar as relações socioeconômicas e os antecedentes históricos que impossibilitaram o desenvolvimento dos países periféricos, e encontra as raízes do subdesenvolvimento no mesmo processo que engendrou a riqueza dos países cêntricos: a mesma Revolução Industrial que facultou aos países centrais a integração do progresso técnico e, consequentemente, a aceleração do processo de acumulação de capital, legou aos países de origem colonial a necessidade de alienação dos seus recursos naturais (a exportação de commodities) e a importação dos bens de consumo e do estilo de vida produzidos no centro do sistema. Portanto, são subdesenvolvidos os países que, incapazes de acompanhar e internalizar o desenvolvimento global da técnica, passam pelo processo de modernização, isto é, “de adoção de padrões de consumo sofisticados (privados e públicos) sem o correspondente processo de acumulação de capital e progresso nos métodos produtivos”. Esse processo de modernização leva os setores que dele se beneficiam a intensificar a apropriação do excedente interno para com ele reproduzir as formas de consumo industrial, enlaçando assim o país em uma relação de dependência com os países centrais. Para produzir este excedente, os setores modernos da nação periférica, que não dispõe da técnica capaz de intensificar a sua produção, precisam reproduzir e atualizar a forma de acumulação colonial que lhe deu origem: a criação de excedentes no mercado exterior. Então, quando se industrializa, a nação periférica divide-se em um setor que atende a parcela substantiva da população e em um setor que busca suprir as demandas da minoria que assimilou o estilo de vida industrial, e é incapaz de integrá-los, dada a disparidade dos diferentes padrões de consumo. Deste quadro, Celso Furtado conclui argutamente que a industrialização em si mesma, assim como as taxas de crescimento que porventura a acompanham, não têm condições de superar o subdesenvolvimento, e na verdade, contribuem com a sua manutenção. Dessarte, o autor complexifica a conclusão apresentada no ensaio anterior: a industrialização e o crescimento econômico (sinônimos de desenvolvimento econômico) não são uma saída para os países desenvolvidos, sobretudo porque se formam sob as desigualdades e disparidades que caracterizam o subdesenvolvimento enquanto tal.
Bem estabelecida a conceituação geral, Celso Furtado investiga o “Modelo brasileiro de subdesenvolvimento”, terceiro ensaio do volume. Nele todas as formulações teóricas anteriores materializam-se em um objeto muito familiar: o Brasil, país de antecedentes coloniais, tendência agroexportadora e modernização recente que apresenta, após o golpe civil-militar, surpreendentes taxas de crescimento. O autor as atribui ao papel interventor e investidor do governo militar, que subsidiou o processo de expansão industrial. No entanto, esquiva-se de qualquer elogio ao regime, e, ao apontar as limitações do seu modelo econômico, sintetiza as críticas desenvolvidas nos ensaios anteriores: o crescimento e a industrialização produzidos, porque enredados em um capitalismo dependente, acabam por intensificar a concentração de renda que caracteriza o subdesenvolvimento e, assim, aumentar a desigualdade, excluindo a maior parte da população dos benefícios associados a esse “desenvolvimento econômico”, que em verdade só serve às classes abastadas. Assim, Celso Furtado nos mostra que o desempenho econômico do regime militar, suas taxas de crescimento e seu crescente PIB, nada tem a oferecer para a maioria da população e, portanto, referem-se somente à assimilação do padrão de vida industrial pelos setores modernos do país. Ou seja: o “desenvolvimento” do regime militar nada mais é do que um mito que esconde desigualdades de classe.
O último ensaio do livro, “Objetividade e ilusionismo em economia”, de caráter aparentemente mais teórico, também tem como fundo a crítica do modelo econômico do regime militar. Ao criticar a aparente objetividade de determinadas formas de ciência econômica, que derivam sua cientificidade de modelos matemáticos, Celso Furtado defende aliar a reflexão sociológica à teoria econômica, pois juntas elas são capazes de revelar para o pesquisador os processos sociais que os números escondem. O exemplo do autor não poderia ser outro: o PIB brasileiro sob o regime militar esconde a desigualdade e a concentração de renda que o promovem; não se refere a um “desenvolvimento” da nação, como dão a entender os seus números, mas justamente, a manutenção de seu subdesenvolvimento: de sua brutal desigualdade. É mais um mito que Celso Furtado refuta.
Rigor analítico, precisão histórica e postura crítica: O mito do desenvolvimento econômico compreende o que há de melhor na vasta reflexão de Celso Furtado, e a forma como nele o pensamento enfrenta os mitos socialmente produzidos, tendo em vista sempre a construção de um mundo menos desigual, muito há de inspirar e informar a reflexão sobre o nosso presente.
Joshua Rosa é mestrando em Sociologia na Universidade de São Paulo.