Cérebro, mentiras e antiterrorismo
O ambiente de vigilância social que se espalhou no Ocidente após o 11 de setembro acaba de parir mais um monstro: o suposto monitoramento cerebral, para detectar mentirasOlivier Oullier
Os atentados terroristas acontecidos na Europa e na Ásia, ao longo dos dois últimos anos, lembraram a todos que nenhum continente, nenhum país, nenhuma instituição está a salvo de tais atos de barbárie. Na França, quando apresentou ao Conselho de Ministros seu projeto de lei antiterrorista, em 19 de outubro de 2005 (projeto discutido em regime de urgência desde 22 de novembro), o ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, afirmou que «a liberdade primeira é poder tomar o metrô e o ônibus sem temer pela própria vida1 ».
A referência aos atentados que atingiram Londres em 7 de julho de 2005 é inequívoca.
Em nome de uma luta eficaz contra o terrorismo, o governo francês espera articular a utilização dos últimos tecnológicos e científicos. O objetivo declarado é apoiar as autoridades no controle dos deslocamentos, das grandes redes de comunicação e dos espaços públicos e privados.
Estas medidas seguem-se ao recente acordo – envolvendo 1,2 milhões de euros – firmado entre as autoridades britânicas e um grande operador de telefonia móvel, que autoriza o armazenamento de dados relativos às comunicações pelo período de um ano2 . Significa oferecer às autoridades um acesso mais rápido às informações de melhor qualidade, como já é o caso nos Estados Unidos desde a promulgação do Patriot Act, logo depois dos atentados de 11 de setembro de 2001.
No Reino Unido, para evitar outros ataques, vários milhões de câmeras filmam agora os atos e gestos da população nos locais públicos. A segurança nacional justifica estas gravações? A opinião pública britânica parece dividida. Certamente, essas câmeras desempenharam um papel inegável na investigação de julho passado, que rapidamente levou à identificação dos que supostamente explodiram as bombas. Sua utilização não pôde, entretanto, impedir que o drama acontecesse. A priori, nada substitui o olho humano para detectar um comportamento suspeito.
Somente a priori, pois estão em desenvolvimento técnicas automatizadas de tratamento da informação para aperefeiçoar a luta antiterrorista. Controladas por sofisticados programas de identificação, novas câmeras ditas « inteligentes » são a perfeita ilustração disso. Fruto da colaboração com especialistas das ciências do movimento humano e das neurociências comportamentais, permitem detectar muito rapidamente um comportamento individual inabitual ou um agrupamento suspeito.
Nos EUA, objetivo é o cérebro
A despeito dos atentados ocasionais contra as liberdades individuais, o Reino Unido e a França lavançam no armazenamento de dados biométricos e na análise do comportamento in situ. Embora essas técnicas também façam parte do arsenal antiterrorista norte-americano, parece que agora os Estados Unidos orientam-se, paralelamente, para um alvo de observação e vigilância bem diferente: o cérebro. Segundo informa um artigo publicado recentemente na prestigiosa revista científica Nature, seria possível, de agora em diante, utilizar as imagens obtidas por ressonância magnética funcional (RMF) na luta contra a criminalidade3 . Pesquisadores da Universidade da Pensilvânia, em Filadélfia, teriam conseguido identificar um traço cerebral da mentira. Este estudo, cujos resultados completos serão publicados daqui a um mês, foi financiado pela Defense Advanced Projects Agency, do Exército norte-americano.
Pesquisadores da Universidade da Pensilvânia, em Filadélfia, teriam conseguido identificar um traço cerebral da mentira
O método utilizado consiste em pedir às pessoas que mintam (ou não ) sobre a posse de uma carta de baralho. Compara-se então a atividade cerebral desenvolvida quando o indivíduo mente à constatada quando ele diz a verdade. A rápida extrapolação desta experiência realizada em laboratório para situações de campo – ainda mais no terreno da luta antiterrorista – parece no entanto, muito discutível, em vários aspectos.
Em primeiro lugar de um ponto de vista pragmático: uma condição sine qua non em um estudo da imagética cerebral funcional é a imobilidade da cabeça do indivíduo. Um movimento do crânio da ordem de dois milímetros apenas poderia bastar para comprometer o tratamento dos dados. Na prática, como poderíamos impedir um suspeito de posse de tal informação de mover a cabeça, sabendo que ele deve estar consciente para responder às perguntas sobre sua eventual filiação a uma organização terrorista?
Também há ressalvas do ponto de vista científico : os resultados relatados em Nature apontam uma solicitação acentuada do lobo frontal, quando um indivíduo mente. Ora, o funcionamento da rede cerebral torna impossível qualquer ligação unívoca entre a atividade de uma certa área e um comportamento voluntário complexo. O lobo frontal do cérebro humano também é ativado durante inúmeras outras tarefas de reflexão, como as que envolvem a memória ou a seleção da resposta. Em tese, bastaria então a uma pessoa, quando estivesse respondendo a um interrogatório, realizar uma dessas tarefas para solicitar, entre outras partes do cérebro, o lobo frontal. Por aí mesmo, ela poderia, potencialmente, fazer desaparecer o contraste entre a atividade cerebral para a mentira e para a verdade, que constitui o cerne do método proposto.
“Mentira” e contextos culturais
Por fim – e talvez essa seja a fraqueza principal da construção -, a despeito de uma proclamada capacidade de detecção de 99%, perguntar a um pessoa se pertence a um organização terrorista é uma abordagem simplista demais. Numerosos estudos sócio-políticos demonstram que terroristas não se percebem como tais. A transposição do método, em sua aplicação concreta, coloca um verdadeiro problema de fundo: se o suspeito não se considera terrorista, como saber se ele está mentindo ou não? Em outros termos, qual é seu referencial? E em conseqüência, qual deveria ser o do inquisidor?
A qualidade das imagens do cérebro em atividade pode fazer supor que a compreensão de seu funcionamento é fácil. Longe disso. Não passa de uma ilusão, amplamente veiculada pelos meios de comunicação. Pois emborade uma das chaves do comportamento humano resida efetivamente no cérebro, o papel da interação com o ambiente político-histórico, físico e social é fundamental. A análise ex-nihilo relatada pela Nature não pode ser facilmente generalizada a uma situação da vida cotidiana, ainda que fosse em prol da luta antiterrorista. Não se pode ignorar também que, desde 2001, não menos de quinze artigos baseados em protocolos semelhantes de detecção de mentiras monitorado pela neuro-imagética foram publicados em revistas científicas de reputação internacional.
Há fortes razões para temer que estes “resultados”, sirvam de aval para rotular indivíduos, muitas vezes sem autorização, ou mesmo para praticar discriminações abusivas
Decodificar e ler diretamente o pensamento, a memória ou as intenções de um indivíduo, por meio de seus registros cerebrais é, por enquanto, é mais ficção científica do que realidade. Ainda assim, uma empresa norte-americana oferecerá ao público, a partir do primeiro trimestre de 2006, um serviço pago de detecção de mentiras baseado nos estudos descritos anteriormente, em colaboração com pesquisadores da Universidade Médica da Carolina do Sul.
Um provérbio oriental diz que a ciência expulsa a ignorância, mas não uma mente deformada. A história está cheia de distorções de descobertas e de técnicas, validadas cientificamente ou não. Infelizmente, as neurociências não são uma exceção a esta triste regra. Um estudo recente publicado no respeitável British Journal of Psychiatry4 proclama que existe uma diferença física entre o cérebro dos mentirosos crônicos e o das pessoas ditas «normais». Apostamos que tais afirmações não ajudarão a conter os desvios. Muito pelo contrário.
A necessidade de uma neuro-ética
Há fortes razões para temer que estes “resultados”, associadas a estudos, comerciais ou não, sobre o funcionamento do cérebro durante a mentira, sirvam de aval para rotular indivíduos, muitas vezes sem autorização, ou mesmo para praticar discriminações abusivas. Em um futuro a curto ou médio prazo, seja para sua utilização na luta contra o terrorismo, em procedimentos judiciais ou mesmo em contratações, qualquer método visando identificar os « mentirosos » com o auxílio das neurociências suscita questões éticas legítimas.
Nos Estados Unidos, onde a fronteira entre os institutos de pesquisa públicos e as empresas privadas é cada vez mais tênue, o National Institute for Health (Instituto Nacional da Saúde, NIH) compreendeu a necessidade de um referencial. Agora financia trabalhos que permitam elaborar regras específicas sobre o que é permitido ou não em neuro-imagética aplicada aos meios médico, industrial e legal5 .
Há, contudo, um fato inegável : a neuro-imagética em si não é responsável pelos eventuais desvios de que possa vir a ser objeto. Muito pelo contrário. Ao longo da década anterior, uma técnica como as imagens de ressonância magnética funcional (IRMF) permitiu avanços consideráveis na identificação, prevenção e tratamento de inúmeras patologias, desde o traumatismo craniano à doença de Parkinson.
As neurociências comportamentais também ganharam com esses avanços, o que ajudou a compreender melhor o funcionamento dos indivíduos e da sociedade. No plano comportamental, uma luta eficaz contra o terrorismo não poderia ser feita unicamente em laboratório. Apenas colaborações multidisciplinares entre pesquisadores em ciência políticas, econômicas e da neurociências cognitivas poderia permitir pensar de modo diferente, e propor novas soluções contra a atual corrente6 .
Por fim, o respeito ao que mereceria, de agora em diante, ser chamado «neuro-ética» será primordial, para que quatro séculos depois do célebre axioma de Rabelais7 , as (neuro)ciências não sejam usadas sem consciência.
(Trad.: Elisabete de Almeida)
1 – “Pièces à conviction”, France 3 Télévision (26 de setembro de 2005).
2 – Jenny Booth, “Clarke calls for EU terror accord on sharing data”, The Times, Londres, 7 de setembro de 2005.
3 – Jennifer Wild., “MRI scans can pick up lies, but raise ethical issues”, Nature, Basingstoke (Hampshire), 22 de setembro de 2005.
4 – Yaling Yang et al., “Prefrontal white matter in pathological liars”, British Journal of Psychiatry, n° 187, 2005, pp. 320-325.
5 – O National Institute for Health (NIH) é o braço norte-americano do Institut national de la santé et de la recherche médicale (Inserm) na França. Esse instituto governamental financia um programa de pesquisa intitulado ” Advanced neurochimie : Ethical, legal and social issues ” na Universidade de Stanford. Essas pesquisas visam estabelecer regras de conduta e de utilização