Chacina no Afeganistão
Em Dasht-e Leili, no Afeganistão, 3 mil homens estão enterrados sob a areia do deserto. Uns foram mortos por asfixia, durante uma viagem infernal; outros, deitados entre os cadáveres de seus companheiros, imploraram a seus carrascos antes de serem executadosJamie Doran
As ossadas já estão esbranquiçadas, como se estivessem lá há séculos. No entanto, esses restos humanos têm apenas alguns meses. São tudo o que sobrou de alguns milhares de jovens que contavam com a proteção das convenções de Genebra, mas que foram mortos em circunstâncias horripilantes, seja por asfixia, seja por execução sumária.
Olhando de perto, é fácil distinguir as marcas deixadas pelos dentes dos cães nômades, que erram à noite no deserto. Mandíbulas, costelas, tíbias, crânios despedaçados, esparramados no topo desta duna artificial de cerca de 50 metros de extensão. As roupas despedaçadas parecem pergaminhos. De perto, vêem-se as etiquetas: Karachi, Lahore…
O sonho pan-islâmico
Dasht-e Leili, no Afeganistão: até 3 mil homens encontrariam aqui sua sepultura, uns já mortos por asfixia durante uma viagem infernal, outros deitados entre os cadáveres de seus companheiros de cativeiro, gritando e implorando a seus carrascos antes de perecerem sob uma rajada de balas. Vieram para esse país maldito combater os infiéis inimigos de seu Deus, acreditavam eles. Eram fanáticos religiosos, prontos a dar a vida para defender sua fé. Quem deles, ao deixar o Paquistão, a Chechênia, o Uzbequistão ou vários outros países árabes para se lançar nessa peregrinação coletiva, poderia suspeitar que terminaria assim?
O Afeganistão, peça-chave do sonho pan-islâmico. Sob os talibans, este país devastado por décadas de guerra (contra estrangeiros e entre afegãos) se tornara a Meca de todos os que aderiam à palavra do Corão. O mundo conhecia sua singular interpretação da palavra de Deus graças a imagens clandestinas de mulheres, envoltas em suas burgas, executadas no grande estádio de Cabul por crimes que, no Ocidente, teriam penas leves ou nem seriam punidos. O mundo sabia também que, sob os talibans, esse país se havia tornado um dos produtores de heroína mais prolíficos do mundo.
A batalha de Mazar-e-Sharif
O personagem-chave da batalha de Mazar foi o general Abdul Dostom – senhor da guerra mais temido de todo o Afeganistão e atual vice-ministro da Defesa
Um dia de abril de 2001, eu estava às margens do Amou Daria, rio que serve de fronteira entre o Uzbequistão e seu vizinho do sul. Investigava uma nova rota da droga através da Ásia Central. A duzentos metros dali, guardas de fronteira estavam sem fazer nada à sombra das ruínas de concreto do porto de Heiraton, até recentemente ponto de passagem estratégico para os milhares de toneladas de armamentos soviéticos e para dezenas de milhares de soldados. A leste, a ponte da Amizade – tão mal batizada – galgava o rio, mas estava bloqueada no meio por enormes rochas. Alguns meses mais tarde, no fim de novembro de 2001, iriam me fazer atravessar discretamente, de madrugada, essa mesma ponte e eu descobriria existir uma estreita passagem entre os blocos de pedra. Meus “guardiões” uzbeques me guiaram e fui recebido por soldados da Aliança do Norte – esta havia tomado não só Heiraton, mas também a cidade estratégica de Mazar-e-Sharif, a 50 minutos pela estrada que beira o rio.
A batalha de Mazar foi a mais importante da última guerra afegã. Seu personagem-chave foi o general Abdul Rashid Dostom – estrategista militar brilhante, o senhor da guerra mais temido de todo o Afeganistão e atual vice-ministro da Defesa. Numa volta ao século XIX, mandou mil cavaleiros atacarem os picos a oeste de Mazar, contra as posições de artilharia pesada dos talibans. “Eles não esperavam isso”, explica Dostom. “Se eu tivesse enviado a infantaria, os obuses a teriam estraçalhado. A cavalo, eles conseguiram chegar, rapidamente, dentro do perímetro de fogo de seu equipamento pesado e os talibans fugiram.” Mais de 300 cavaleiros morreram durante o ataque, mas, apesar das baixas, o aniquilamento dos talibans havia começado. Aviões norte-americanos atacaram as posições avançadas do inimigo no combate por Mazar, e Dostom confirmaria que havia pessoal militar norte-americano lutando em terra, a seu lado.
Proposta de rendição com garantias
Aviões norte-americanos atacaram as posições inimigas no combate por Mazar, e Dostom confirmou que havia norte-americanos lutando em terra, a seu lado
Duas semanas antes, Hassan me havia revelado discretamente que nas horas que se seguiriam à tomada de Mazar por Dostom, a Aliança do Norte lançaria o ataque final. O plano se desenrolou conforme previsto, mas o que foi totalmente imprevisto foi a amplitude e a rapidez do desabamento dos talibans. Cabul caiu praticamente sem resistência: abandonando Kokcha, no nordeste, bem como Taloqan e Mazar, os talibans fugiram para o sul para chegar a Kunduz. Cerca de 15 mil combatentes talibans, contando com vários milhares de seus simpatizantes estrangeiros, cairiam numa armadilha nessa cidade, sitiados por efetivos da Aliança do Norte duas vezes mais numerosos. Alguns escaparam através de um estreito corredor em direção ao sul e outros aceitaram salvar a própria pele mudando de lado (fenômeno recorrente durante esta guerra). Quanto aos outros, sua sorte estava nas mãos dos negociadores.
No centro dessas conversações, estava um outro senhor da guerra regional, Amir Jhan, que gozava da confiança geral. “Todos os comandantes de Kunduz eram meus irmãos de armas e meus amigos. Havíamos combatido lado a lado há alguns anos e eles me pediram para ser intermediário junto à Aliança do Norte para pôr um fim a tudo isso por meio da negociação, ao invés de combates. Alguns desses comandantes, entre os quais Marzi Nasri, Agi Omer e Arbab Hasham, convenceram a Al Qaida e outros grupos de estrangeiros a se juntarem a nós.”
Segundo a proposta inicial feita à Aliança do Norte, os comandantes talibans estavam prontos a entregar suas armas à ONU ou a qualquer outra força multinacional mediante certas garantias. “Eu estava presente quando os mulás (talibans) Faiçal e Nori chegaram com outros para um encontro, em Kalai Janghi, com os generais Dostom, Maqaq e Atta. Alguns norte-americanos e ingleses também estavam presentes. Decidiu-se que os afegãos de Kunduz entregariam suas armas e poderiam voltar para casa, ao passo que os combatentes da Al Qaida e os outros estrangeiros seriam entregues à ONU.”
Vingança, um esporte nacional
Segundo a proposta feita à Aliança do Norte, os talibans entregariam as armas à ONU, ou a qualquer outra força multinacional, mediante certas garantias
Kalai Janghi, importante fortaleza nas redondezas de Mazar, que Dostom – a exemplo dos talibans, antes dele – usou como quartel-general, estaria no centro dos acontecimentos que viriam. Mas ainda durante a discussão de um acordo, o secretário da Defesa norte-americano, Donald Rumsfeld, interveio. Parecia temer que um fim negociado do cerco permitisse que os combatentes estrangeiros pudessem partir livremente: “Seria muito lamentável que estrangeiros no Afeganistão – os da Al Qaida, os chechenos e outros que colaboraram com os talibans – fossem libertados e pudessem ir para outro país para cometer o mesmo tipo atos terroristas”. Nos dias que se seguiram, ele confirmou: “Espero que eles sejam mortos ou capturados. São pessoas que fizeram coisas terríveis.”
Ora, os comandantes da Aliança do Norte não podiam se permitir fazer ouvidos moucos quando seu principal aliado e provedor de fundos se expressava daquele modo e, além disso, concordavam com ele. A vingança, chamada intiqaam, é praticamente um esporte nacional e paira sobre a cidade como uma sede de sangue. Um massacre parecia inevitável.
O caráter urgente da situação não escapou a Amir Jhan que, de forma incansável, passaria a ir e vir de um campo a outro, na esperança de impedir o pior. Finalmente, no dia 21 de novembro de 2001, chega-se a um acordo: todas as forças talibans irão se render à Aliança do Norte em troca de uma promessa de garantia de vida.
A chacina de Kalai Janghi
Durante a negociação, o secretário da Defesa norte-americano interveio: temia que, com o acordo, os combatentes estrangeiros pudessem ficar em liberdade
Cerca de 470 talibans estrangeiros (muitos deles, suspeitos de pertencer à Al Qaida) seriam levados a Kalai Janghi, onde seriam trancados nos túneis, sob um de seus imensos pátios cercados com muro. No dia 25 de novembro de 2001, dois agentes da CIA chegaram ao local para interrogatórios individuais. Durante esse processo, estoura uma revolta: os talibans surpreenderam os guardas, tomaram suas armas e começaram a atirar. Em alguns minutos, Johnny “Mike” Spann seria morto, bem como cerca de trinta soldados da Aliança do Norte. Seguiu-se uma batalha campal que ganharia amplitude quando os talibans tomaram o arsenal do forte, situado, por absurdo que possa parecer, dentro do próprio pátio em que estão trancados. As forças especiais terrestres norte-americanas pediam ataques aéreos, enquanto os comandos britânicos (SAS) armavam um contra-ataque. Depois de três dias de combates, não sobraria um só taliban vivo na cidadela, o que é surpreendente. No fim de qualquer operação militar, espera-se encontrar pelo menos alguns sobreviventes, ainda que gravemente feridos.
Os jornalistas ocidentais, presentes às centenas na rendição de Kunduz, acorreram a Kalai Janghai. Instalados em segurança no pátio vizinho ou, às vezes, ainda mais longe, transmitiram matérias sensacionalistas. A atenção da mídia internacional estava concentrada, naquela ocasião, em Kalai Janghi, principalmente porque seriam descobertos, nos túneis, um taliban norte-americano, John Walker Lindh, e outros 85 sobreviventes.
O destino trágico dos que depuseram armas
Por incrível que possa parecer, ninguém, naquele momento, parece ter-se perguntado sobre o destino dos outros combatentes que haviam deposto as armas em Kunduz. Ora, foi o destino desses milhares de jovens que motivou – na seqüência da apresentação de uma parte do nosso filme diante do Parlamento Europeu em Estrasburgo (leia, nesta edição, o artigo de Laurence Jourdan) – os apelos em favor de uma investigação independente e internacional. O que aconteceu com esses homens manchará para sempre a imagem da Aliança do Norte, da ONU, do governo dos Estados Unidos e de suas forças armadas. Foi em outra fortaleza, nunca citada pelas reportagens ocidentais, que começou a matança em que morreriam pelo menos 3 mil prisioneiros.
Voltemos a Amir Jhan, que participou das negociações de rendição. “Eu os contei um a um: eram 8 mil. Agora só sobraram 3.015. E esse número inclui pachtus de Kunduz, que não estavam entre os prisioneiros originais. Onde foram parar os outros?” A resposta a essa pergunta está, pelo menos em parte, sob esses 50 metros de areia, em pleno deserto, em Dasht-e Leili.
A vingança, chamada intiqaam, é praticamente um esporte nacional e paira sobre a cidade como uma sede de sangue. Um massacre parecia inevitável
O cálculo é simples: 5 mil homens faltam à chamada. Alguns poderiam ter fugido; outros teriam comprado sua liberdade e outros ainda teriam, sem dúvida, sido vendidos aos serviços de segurança de seus respectivos países para sofrerem um destino pior que a morte. Mas, segundo alguns depoimentos-chave que pudemos recolher durante seis meses de investigação, a maioria estava, realmente, enterrada na areia. Nenhuma dessas testemunhas recebeu qualquer tipo de remuneração e todas estão correndo grande perigo por terem participado de nosso filme.
Os “buracos para ventilação”
A história começa na fortaleza de Kalai Zeini, na estrada que leva de Mazar a Sheberghan. Esta fortaleza imensa, mesmo para as normas afegãs, serviu de campo de triagem para os milhares de homens que foram feitos prisioneiros em Kunduz. Oficialmente, tratava-se de transferir esses soldados vencidos para a prisão de Sheberghan, onde deveriam ficar presos à espera de serem interrogados por especialistas norte-americanos. Os que ficassem retidos seriam mandados para Guantanamo, em Cuba.
Em Kalai Zeini, foram obrigados a ficar sentados no chão, amontoados, num grande campo cercado. Logo chegou um comboio de caminhões, com contêineres de aço fixados nos chassis. Os prisioneiros foram obrigados a fazer fila indiana para se amontoarem nos contêineres. Um oficial da Aliança do Norte, que prefere manter o anonimato, contou o que aconteceu depois: “Éramos responsáveis pela transferência dos prisioneiros. Em Zeini, nós nos encarregamos de 25 contêineres com destino a Sheberghan. Colocamos cerca de 200 pessoas em cada contêiner.”
Apertados como sardinhas em latas onde não entrava ar nem luz, a uma temperatura de mais de 30o, os talibans pedem misericórdia. A resposta não tardaria, como confirmou um outro soldado afegão, que admite ter, ele próprio, matado alguns prisioneiros: “Atirei nos contêineres para fazer buracos para ventilação e houve mortos.” Pergunta: “Você, pessoalmente, atirou para fazer buracos nos contêineres? Quem lhe deu a ordem de atirar?” Resposta: “Os comandantes nos deram a ordem.”
Um monte de carne em decomposição
Por incrível que possa parecer, ninguém parece ter-se perguntado sobre o destino dos combatentes que haviam deposto as armas em Kunduz
Mas a franqueza desse homem esconde uma grande crueldade. Muitos dos buracos de bala que constatamos nos contêineres se encontravam embaixo ou no meio das paredes, e não no alto onde, realmente, teriam podido garantir a circulação de ar, dando aos prisioneiros uma chance de sobrevida.
Um motorista de táxi parou em um dos postos de gasolina improvisados que pululam nas estradas principais: “No dia em que levaram os prisioneiros de Kalai Zeini para Sheberghan, eu parei para colocar gasolina. Havia um cheiro estranho e perguntei ao frentista: de onde vem isso? Olhe atrás de você, ele disse. E vi três caminhões com contêineres. Escorria sangue de todos os lados. Fiquei com os cabelos em pé, era um horror. Queria ir embora, mas não podia porque um dos caminhões estava quebrado e o guincho me barrava o caminho.”
No dia seguinte, foi diante de sua casa, em Sheberghan, que um espetáculo igualmente aterrorizante atraiu seu olhar: “Vi passarem três outros caminhões com contêineres; deles também escorria sangue.” Dentre esses contêineres fechados, alguns não receberiam as balas que traziam a libertação da morte. Neles, os prisioneiros iriam agonizar durante cinco dias, morrendo por asfixia, e de fome e de sede. Quando, enfim, foram abertos, a única coisa que resta é um monturo de urina, de sangue, de matéria fecal, de vômito e de carne em decomposição.
A cumplicidade norte-americana
A primeira pergunta que vem à cabeça, ao entrar na prisão de Sheberghan, é esta: será que alguém acreditou realmente que esse estabelecimento, projetado para 500 detentos no máximo, iria poder receber até quinze vezes este número? Será que foi realmente por acaso que a maior leva dos que deveriam ser transferidos para cá nunca chegou?
Segundo depoimentos recolhidos durante seis meses de investigação, a maioria dos presos desaparecidos estava, realmente, enterrada na areia
Os contêineres com suas cargas de carne de açougue humano se alinharam diante da prisão. Um dos soldados que acompanhava o comboio estava presente no local quando os oficiais responsáveis pela prisão receberam ordem de liquidar, rapidamente, qualquer vestígio da operação. “A maioria dos contêineres estava furada por balas. Em cada contêiner havia de 150 a 160 mortos. Alguns ainda respiravam, mas a maioria estava morta. Os norte-americanos diziam às pessoas de Sheberghan que se afastassem da cidade antes que fossem filmadas por satélite.”
Essa acusação de cumplicidade norte-americana seria um ponto crítico para uma eventual investigação: o direito internacional sobre a matéria – como, aliás, o direito nacional ou militar – baseia-se em grande parte sobre a reconstrução dos elos da corrente de comandos através da qual um crime aconteceu. Dito de outra forma: a questão seria saber quem dirigiu as operações em Sheberghan.
Execuções, de mãos amarradas
Encontramos dois caminhoneiros, provenientes de duas regiões diferentes, e que, com vários dias de intervalo, nos conduziram ao mesmo local no deserto. Manifestamente atormentados por seu papel nesta história, fizeram um relato apavorante da viagem de Kalai Zeini até Dasht-e Leili, via Sheberghan.
Caminhoneiro n° 1: “Havia cerca de 25 contêineres. As condições eram muito ruins, porque os prisioneiros não podiam respirar. Então atiraram nos contêineres. Muitos prisioneiros morreram. Em Sheberghan, desembarcaram os que ainda davam sinais de vida. Mas havia talibans que tinham perdido a consciência porque estavam feridos ou muito debilitados. Esses foram levados para o lugar que se chama Dasht-e Leili, e foram executados. Voltei aqui três vezes e, a cada vez, trouxe 150 prisioneiros. Eles gritavam e choravam enquanto atiravam neles. Eram dez ou quinze motoristas fazendo a mesma viagem.”
Caminhoneiro n° 2: “Requisitaram meu caminhão em Mazar sem me pagar nada. Fixaram-lhe um contêiner, depois eu transportei prisioneiros de Kalai Zeini a Sheberghan e, em seguida, até Dasht-e Leili onde os soldados os abateram. Alguns estavam vivos, feridos ou inconscientes. Foram trazidos para cá, amarraram suas mãos e os abateram. Fiz quatro viagens de ida e volta com prisioneiros. No total, devo ter trazido de 550 a 600 pessoas para cá.”
Marcas visíveis de buldôzeres
Tratava-se de transferir os soldados vencidos para a prisão de Sheberghan, onde ficariam presos até serem interrogados por especialistas norte-americanos
Depois das revelações do semanário Newsweek de 26 de agosto, o governo norte-americano reconheceu, finalmente, que houve, de fato, um massacre em Dasht-e Leili, que soldados norte-americanos estavam presentes na prisão de Sheberghan, mas… que não tinham visto nada. Isto, evidentemente, é difícil de acreditar. O apelo dirigido ao governo afegão para abrir um inquérito parece pouco sério, visto que as autoridades de Cabul, tributárias dos chefes de guerra, não têm os meios financeiros nem a competência para fazê-lo…
Caminhoneiro n° 2: “Havia jumbishes [afegãos de etnia uzbeque] na prisão de Sheberghan. Não vi norte-americanos aqui em Dasht-e Leili, mas eu os vi na prisão e podiam ter ficado nos caminhões.”
Caminhoneiro n° 2, questionado sobre a presença de norte-americanos: “Sim, eles estavam conosco, aqui, em Dasht-e Leili.” Quantos eram eles? “Havia bastantes, talvez trinta ou quarenta. Eles nos acompanharam nas duas primeiras vezes, mas eu não os vi nas outras duas vezes.”
Meses mais tarde, as marcas dos buldôzeres ainda são visíveis nos locais da chacina de Dasht-e Leili: os cadáveres foram jogados numa vala e escondidos embaixo de toneladas de areia.
Sob comando norte-americano
Segundo testemunhas oculares, os que sobreviveram à viagem de Kalai Zeini para a prisão de Sheberghan não teriam tido, nas mãos dos soldados norte-americanos, um destino melhor que o de seus irmãos enterrados na areia. Um dos soldados afegãos afirma ter visto um soldado norte-americano matar um prisioneiro taliban para apavorar os outros e fazê-los falarem. “Quando era soldado em Sheberghan, vi um soldado norte-americano quebrar o pescoço de um prisioneiro. Uma outra vez, derramaram ácido ou coisa parecida sobre eles. Os norte-americanos faziam o que bem entendiam e nós não tínhamos como impedi-los. Estava tudo sob o controle do comandante norte-americano.”
Um dos generais da Aliança do Norte, também servindo em Sheberghan na época, dá o seguinte depoimento: “Eu estava lá. Eu os vi dando facadas nas pernas deles, lhes cortando a língua, lhes raspando a barba. Às vezes, tínhamos a impressão de que faziam isso por prazer. Levavam um prisioneiro para fora, davam-lhe muita porrada e depois o traziam de volta. Mas às vezes o prisioneiro não voltava.”
Quem teme a verdade?
“Vi três caminhões com contêineres. Escorria sangue de todos os lados, era um horror”, conta um motorista de táxi
Todas as testemunhas que apareceram em nosso filme estão dispostas a comparecer perante qualquer instância internacional – comissão de inquérito ou tribunal – que se incumba desse caso depois de suas declarações. E, se houver oportunidade, estão prontas para identificar os militares norte-americanos envolvidos.
As acusações de tortura e de assassinato dentro da prisão de Sheberghan talvez sejam mais difíceis de corroborar, pois os fatos já ocorreram há muito tempo. Mas, a quatro quilômetros da prisão, existe uma vala comum contendo, sem dúvida, os restos de vários milhares de prisioneiros. Se militares norte-americanos tomaram parte, efetivamente, na eliminação desses prisioneiros, se estavam à frente na cadeia de comando – como afirmam várias testemunhas – e se abstiveram de intervir quando centenas de homens eram sumariamen