Chico Buarque e Georg Lukács: estudos sobre MPB e teoria acadêmica
Uma maior integração entre a cultura popular e a teoria majoritariamente acadêmica é capaz de trazer maiores benefícios para o debate público e político do que de forma isolada. Aqui o objeto de estudo foi uma canção de Chico Buarque, mas sem dúvida não se limita a ela, ao cantor ou apenas a MPB, outros gêneros, outros agentes e outras esferas têm muito a agregar ao debate
“Assim, cada um a seu modo, os amigos tocam a vida, com ou sem reflexão; tudo parece seguir o rumo natural, da mesma maneira que, como ocorre nas situações excepcionais, quando tudo está em risco, continuamos a viver, como se nada nos ameaçasse.” Goethe: Afinidades eletivas
O propósito deste texto é estabelecer uma correlação entre a clássica canção Construção (1971) de Chico Buarque e a teoria sociológica e filosófica, mais especificamente a desenvolvida pelo filósofo húngaro Georg Lukács (1885-1971). Em outras palavras, é uma análise teórica-social sobre a letra da música em questão, uma união entre teoria (majoritariamente acadêmica) e a música popular brasileira, ambas representando de forma esplêndida o trabalho do subproletariado no capitalismo moderno, é também uma breve análise do trabalho na sociedade atual. Este estudo não busca se encerrar em si, mas serve como esboço para um estudo futuro, algo próximo das congruências entre a música popular brasileira (ou da América Latina) com uma análise óptica de viés sociológico.
Não possuo conhecimento se Chico Buarque leu ou teve algum contato com Lukács ou outra vertente sociológica ou filosófica desta orientação, mas sua obra dialoga de forma incrível com a crítica social proposta pelo marxista em partes de seu livro História e consciência de classe, com ênfase na seção sobre reificação das relações sociais. Chico Buarque e sua carreira na cultura e ativismo político dispensam apresentações, mas pode-se destacar obras como Cálice, Roda viva ou Apesar de você como obras de resistência e ativismo político contra a repressão ditatorial brasileira. Lukács também escusa apresentações, embora mais conhecido no meio acadêmico, ganha destaque na análise e realiza uma crítica contundente sobre o capitalismo moderno e também sobre determinados aspectos do “socialismo” stalinista; o autor, entre muito escritos e feitos, desenvolveu a teoria da reificação e é considerado um dos fundadores do marxismo ocidental.
Primeiramente é necessário estabelecer um breve arcabouço conceitual – a teoria –, algo obviamente limitado e, de certa forma, simplificado pelo espaço e pelo gênero de escrita a que aqui me proponho, para então ser possível construir o caminho de análise ao redor da obra brasileira. Sendo assim, estabeleço quatro noções prévias, primeira: compreender o que Max Weber – sociólogo de orientação liberal – propõe ao elaborar a teoria da dominação, com ênfase na dominação racional típica da modernidade que “é, segundo toda a experiência, a forma formalmente mais racional de exercício de dominação em todos esses sentidos: em termos de precisão, continuidade, disciplina, rigor e confiabilidade – portanto: calculabilidade tanto para o senhor quanto para os demais interessados, intensidade e extensibilidade do desempenho, aplicabilidade formalmente universal a todas as espécies de tarefas, realizável em grau máximo de desempenho de maneira puramente técnica. (WEBER, 1991, p. 144-146, grifos meus).
Aqui se nota o caráter racional da era capitalista moderna, este visa, como dito acima, a calculabilidade e desempenho nas relações sociais de tal sociedade, o que atinge sem dúvidas – e com diferentes intensidades – a esfera de produção e do trabalho. Segunda: compreender o que Lukács elabora por reificação. Para isto, retomo um trecho de Karl Marx na seção sobre o fetichismo da mercadoria no primeiro capítulo de O Capital, o qual diz que “é apenas uma relação social determinada entre os próprios homens que aqui assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas” (MARX, 2011, p. 206). Ou seja, o fetichismo da mercadoria oculta as relações sociais do processo de produção e de valoração da mercadoria, refletindo, na forma-mercadoria, os aspectos sociais do próprio trabalho do homem como próprios dos produtos do trabalho. Terceira: Marx esclarece a perda do caráter qualitativo das relações sociais e de produção, como pode-se verificar com “a subordinação do homem à máquina, os homens acabam sendo apagados pelo trabalho, o pêndulo do relógio torna-se a medida exata da atividade relativa de dois operários, tal como a medida da velocidade de duas locomotivas […] O tempo é tudo, o homem não é mais nada; quando muito, é a personificação do tempo” (MARX MEW 4, Elend der philosophie, p.85 apud LUKÁCS, 2003, p. 204-205).
Além disso, Lukács diz que perseguir “o caminho percorrido pelo desenvolvimento do processo de trabalho […] descobriremos uma racionalização continuamente crescente, uma eliminação cada vez maior das propriedades qualitativas, humanas e individuais do trabalhador” (Ibid, p.201, grifo meu). Quarta: a obra Construção, em um jogo de repetições semelhantes a cada conjunto de estrofes e versos que terminam em palavras proparoxítonas, possui um ritmo propositalmente cadenciado que objetiva passar a ideia, ou a sensação, de uma máquina, de uma construção, de uma perda do caráter de humanidade em relação ao maquinário.
A atualidade e importância da análise consistem justamente na crítica realidade atual do trabalhador, pois desde Marx, passando por Weber, Lukács, pela América Latina com Chico Buarque e ainda hoje, houve um agravamento da situação na esfera do trabalho concomitante – não por coincidência – com o avanço do [neo]liberalismo. De forma contraditória, mas não sem sentido, o capital proporcionou um avanço da técnica e uma especialização de parte da classe trabalhadora em detrimento de uma desespecialização de outra, que, hoje mais que nunca até o momento, faz com que a massa de trabalhadores oscile entre “os temporários (que não têm nenhuma garantia de emprego), os parciais (integrados precariamente às empresas), os subcontratados, terceirizados (há, não obstante, terceirização em setores ultraqualificados)” e “os trabalhadores da “economia informal”” (ANTUNES, 2001, p. 65, tradução minha).
Essa massa “desespecializada” ganha espaço e representatividade pela figura do trabalhador da canção de Chico Buarque, o mesmo trabalhador que assume as características da “forma fantasmagórica de uma relação entre coisas” e que “não é mais nada; quando muito, é a personificação do tempo” com relação ao seu trabalho, o que, para o sistema do capital, resume-se em calculabilidade prévia. Percebe-se a harmonia entre a canção, a concepção da relação de trabalho oriunda do marxismo e o entendimento da redução a calculabilidade técnica das relações sociais entre autores tão distintos, mas ambos analistas e críticos da realidade social.
Partindo à análise de alguns versos de Chico Buarque, destaco o caráter qualitativo de amar do sujeito, que se transfigura como uma tarefa de maquinaria do primeiro ao décimo oitavo verso, respectivamente: “amou daquela vez como se fosse a última” / “amou daquela vez como de fosse máquina”. Outros versos de ênfase no conceito de reificação – no qual as relações humanas assumem características de coisas e vice-versa – que aqui se debate se encontram do sexto ao trigésimo sétimo verso, respectivamente: “ergueu no patamar quatro paredes sólidas” / “ergueu no patamar quatro paredes flácidas”; e também nos versos décimo primeiro e vigésimo oitavo, respectivamente: “bebeu e soluçou como se fosse um náufrago” / “bebeu e soluçou como se fosse máquina”, este último de forma explícita. Isto é, o processo de reificação corresponde “como consequência do processo de racionalização do trabalho, as propriedades e particularidades humanas do trabalhador aparecem cada vez mais como simples fontes do erro quando comparadas com o funcionamento dessas leis parciais abstratas, calculado previamente” (LUKÁCS, 2003, p. 203), ou seja, o aspecto humano aparece como erro na construção do processo de relações reificadas e previamente passíveis de cálculo.
Próximo ao final de cada ciclo da canção, Chico canta: “morreu na contramão atrapalhando o público”, “morreu na contramão atrapalhando o sábado” e “pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair”, algo como a morte certeira, além do aparente fato de que morrer apenas atrapalharia o fluxo do cotidiano, o que Lukács bem poderia responder com que “a metamorfose da relação mercantil num objeto dotado de uma “objetivação fantasmática” não pode, portanto, limitar-se à transformação em mercadoria de todos os objetos destinados à satisfação das necessidades. Ela imprime sua estrutura em toda a consciência do homem; as propriedades e as faculdades dessa consciência não se ligam mais somente à unidade orgânica da pessoa, mas aparecem como “coisas” que o homem pode “possuir” ou “vender”, assim como os diversos objetos do mundo exterior” (Ibid, p. 222-223, grifo meu) e ainda “o mundo reificado aparece doravante de maneira definitivamente – e se exprime filosoficamente, elevado à segunda potência, num exame “crítico” – como o único mundo possível, conceitualmente acessível e compreensível, que é dado a nós, os homens” (Ibid, p. 239). Além disso, trechos como “a certidão pra nascer e a concessão pra sorrir” correspondem a dominação racional burocrática típica do Estado moderno capitalista, tão presente em Weber e, posteriormente, no marxista húngaro.
Como bem se sabe o trabalho consiste na exploração de trabalho humano vivo, isto é, é preciso a força de trabalho apreendida como mercadoria de troca concomitante ao processo de reificação das relações sociais presentes no processo de produção, o que Ricardo Antunes muito bem explica como “o capital não pode eliminar o trabalho vivo do processo de criação, deve aumentar a utilização e a produtividade do trabalho de modo que intensifique as formas de extração do sobretrabalho em tempo cada vez mais reduzido” (ANTUNES, 2001, p. 15, tradução minha). Resultando de que a morte faz parte da calculabilidade do capital, permitindo concluir que, para o funcionamento deste sistema, o proletariado não desaparecerá tão rapidamente e que não é possível projetar “nenhuma possibilidade de eliminação da classe-que-vive-do-trabalho” (Ibid, p. 67, tradução minha). De acordo com Lukács, foi o capitalismo o primeiro a produzir uma estrutura de consciência unitária para toda sociedade, que garante sua normalização ao passo que realiza o estranhamento – alienação – no âmago das relações sociais. O capital e sua expressão mais contemporânea representada pelo neoliberalismo não visam uma melhora econômica ou social na esfera do trabalho, pois para ele é interessante e útil contribuir à produção de trabalhadores como o da canção, como trabalhadores de terceiro mundo, caso contrário tenderia a destruição da economia de mercado devido a incapacidade do processo de acumulação desigual entre a sociedade.
Concluímos que uma maior integração entre a cultura popular e a teoria majoritariamente acadêmica é capaz de trazer maiores benefícios para o debate público e político do que de forma isolada. Aqui o objeto de estudo foi uma canção de Chico Buarque, mas sem dúvida não se limita a ela, ao cantor ou apenas a MPB, outros gêneros, outros agentes e outras esferas têm muito a agregar ao debate. A atualidade brasileira mostra reflexos desses processos que há muito vem se instalando na estrutura da sociedade, principalmente após os avanços liberais e neoliberais de finais do século XX, segundo Antunes: “a classe-que-vive-do-trabalho sofreu a mais aguda crise deste século, que afetou não somente sua materialidade, senão que teve profundas repercussões em sua subjetividade e na íntima interrelação destes níveis, afetou sua forma de ser” (Ibid, p. 25, tradução minha), para essa situação, a crítica do capital não deve se limitar, também, nas relações capital-trabalho, mas deve abarcar a dimensão de opressão nas relações de gênero, raça, como também outras camadas do debate social contemporâneo. Pela conjuntura da situação política e social brasileira – e tudo que englobam –, e não sendo de pensamento weberiano, isto é, um fatalista resignado – “o capitalismo é o nosso destino” –, mas sim apostando numa alternativa emancipadora, retomo Chico Buarque na canção Apesar de você:
“Apesar de você/ Amanhã há de ser outro dia/ Inda pago pra ver/ O jardim florescer/ Qual você não queria/ Você vai se amargar/ Vendo o dia raiar / Sem lhe pedir licença/ E eu vou morrer de rir/ Que esse dia há de vir/ Antes do que você pensa”.
Referências
ANTUNES, Ricardo. ¿Adiós al trabajo? Ensayo sobre las metamorfosis y la centralidad del mundo del trabajo. São Paulo: Cortez editora, 2001.
LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes, 20003.
MARX, Karl. O capital: Livro 1. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.
SCHLUCHTER, Wolfgang. O desencantamento do mundo: seis estudos sobre Max Weber. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2014.
WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
____________. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília/DF: Editora Universidade de Brasília, 1991.