Cidadania a se construir
Atualmente fala-se muito no resgate da cidadania. A pergunta a ser feita é esta: acaso resgata-se aquilo que se perdeu por que nunca existiu? Que cidadania é essa de que se está falando a todo momento?
Nossa luta está iluminada pela vontade da construção da cidadania porque se houve cidadania para alguém neste país, ela foi concebida e gestada à imagem e semelhança das elites dominantes ou de grupo de poder autoritário. Depois de concebida foi doada pura e simplesmente, para dar feição de “povo” à população genérica.
No Brasil, o conceito de povo é o mais ambíguo de todos os termos políticos. Nação é outro termo criado e utilizado para se fundar uma espécie de dominação das elites urbanas e rurais: fala-se tão comumente de povo como se esse fosse somente constituído de riqueza espiritual de bondade, de cordialidade, de simplicidade, de atraso e de passividade e desprovido de vontades próprias. Povo, nação, nacionalidade, patriotismo e cidadania são de fato criações a gosto da linguagem do poder, dos poderosos, dos donos do poder, dos ricos aos pobres. A cidadania no chamado mundo ocidental tem uma trajetória dolorosa.
Ela se vincula às questões das lutas das burguesias no mundo moderno. A busca da liberdade pela burguesia (esta já foi chamada de povo, gente do povo) ocasionou inúmeros e intermináveis conflitos, ora buscando direitos políticos para participar do Estado, ora lutando pelo reconhecimento dos seus ideais e de constituir uma nova cultura: a burguesa. A cultura do cidadão. Surge então um novo ator social: o cidadão burguês.
De uma maneira conceitual podemos dizer que ser cidadão significativa e significa ser sujeito de direitos e deveres. Cidadão no passado era todo aquele que estava capacitado a participar da vida da sua cidade e em extensão – da vida em sociedade. Cidadão era o habitante da cidade, era originalmente o burguês, isto é, o habitante do burgo (cidade medieval).
Em verdade, a ideia e a prática que temos de cidadania esta fundamentalmente impregnada da cultura política e econômica burguesa, da “democracia” que a burguesia inventou como solução dos seus problemas como classe social e oprimida pelo absolutismo monárquico. Obtiveram-se meios para se capacitar a cidadania. Ainda hoje é a classe que pode se capacitar à cidadania porque detém os meios, a cultura, a educação, o ensino e as posses financeiras para obtenção desses meios.
Enquanto isso, os trabalhadores não contam com esses meios. Tiveram “e tem” que amargar pela violência direta ou violência simbólica-cultural, valores políticos e formas de viver sob o poder autoritário burguês.
Além disso, quando se oferece escola pública aos filhos dos trabalhadores essa, como sabemos de antemão, reproduz toda a ideologia ou valores da classe ou elite do poder. A educação é na verdade domesticação dos futuros “revolucionários”.
Em um olhar histórico-antropológico, podemos perceber que a democracia ocidental, apesar de trazer inúmeras vantagens à classe operária e as classes médias, ainda continua como seu caráter antipopular. Também nesse olhar se constata um paradoxo: enquanto países europeus tinham internamente democracia e cidadania, a exemplo da França, Bélgica, Holanda e Inglaterra, esses mesmos países possuíam colônias nas quais inexistiam liberdade políticas e de cidadania.
Com base na história da Inglaterra o autor inglês Marshall propôs em 1949 que a cidadania é composta por três tipos de direito: uma parte, a dos direitos civis e que seria fundamentalmente composta pelos direitos às liberdades individuais; liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, de expressão e pensamento, de fé, direito de propriedade e celebra contratos, de ter acesso á Justiça, de reunião e de constituir partidos e organismos não governamentais. A outra parte da cidadania que era política envolveria mais especificamente os direitos políticos do cidadão: o direito de participar no exercício da política e, principalmente, o direito de votar e ser votado. O terceiro componente da cidadania compreenderia os chamados direitos sociais, fundamentalmente, o direito de ter o mínimo de bem estar social. Para Marshall, isto foi se constituindo ao longo de séculos e para Inglaterra, teria essa correspondências. Os direitos civis foram conquistados no século XVIII, os direitos políticos no século XIX e os direitos sociais no século XX.
No Brasil a cidadania sempre foi uma cidadania delegada, regulada ou controlada, isto é, as leis foram quase sempre contrárias aos avanços dos direitos sociais dos trabalhadores. O cidadão está na sociedade como ator social rebaixado à segunda classe.
O Estado brasileiro e suas autoridades civis e militares sempre conferiram de cima para baixo, autoritariamente, portanto, todos esses direitos mencionados. Assim conseguiu-se manter fora da educação política ou da cultura política, os pretendentes populares.
O Estado outorga – por todos os meios “cívicos” disponíveis e, principalmente, pela escola – cidadania cultural, patriotismo, o nacionalismo, a cultura nacional, identidade cultural. Ocupa todos os espaços para alienação da massa de trabalhadores.
Um espaço democratizado “sonhar para ser mais feliz” acatará os anseios populares de participação política nas decisões e nas escolhas culturais políticas. Reformar o Estado para democratizar suas ações, eis a grande questão para sair da hegemonia burguesa e oligárquica e assim avançar na conquista dos direitos sociais, entre eles direitos á memória, ao patrimônio cultural material e imaterial e aos direitos artísticos culturais.
Quais direitos sociais? Constitui esse quadro a saúde, o trabalho, educação, o lazer, a instrução, a cultura, o esporte, a segurança, a previdência social, o amparo à maternidade, à infância, e juventude, meio ambiente equilibrado, direito á vida e à alimentação. Tudo isso é preceito constitucional. Não se pense que esses três tipos de direitos (civis, políticos e sociais) cairão do céu. A luta contra a cidadania de segunda classe – essa que aí está vigorando no papel e na prática – é alvo da luta em que nós trabalhadores (povo?), intelectuais não pelegos, militantes sérios e as organização não governamentais estaremos na luta pela volta dos nossos direitos socais retirados por reacionários e liberais-fascistas do Congresso e do governo autocentrado e alterofóbico.
Afonso Imhof, professor e antropólogo. E-mail [email protected]