Cidade Soterrada e o enorme passado pela frente
O núcleo artístico mobiliza as pessoas para o espaço público, no meio do caos da cidade que insiste em nos soterrar
Nunca houve um documento da cultura que não fosse simultaneamente um documento de barbárie.
Walter Benjamin
Até que os leões escrevam suas próprias histórias, os caçadores serão os heróis.
Provérbio atribuído aos Igbos (Nigéria).
O espetáculo Cidade Soterrada, de A Próxima Companhia reflete sobre a sentença do poeta Millôr Fernandes: O Brasil tem um enorme passado pela frente.
O núcleo artístico está sendo contemplado pela 41ª edição do Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo – Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa[1] – para desenvolver uma pesquisa sobre a Revolta Paulista de 1924, também conhecida como Revolta Esquecida[2]. A partir desse evento histórico, que ocorreu na região dos Campos Elísios, bairro da região central de São Paulo, o grupo busca fazer um paralelo com as revoltas e conflitos urbanos que marcaram as disputas pela cidade e que, inclusive, atingem a sede da companhia localizada neste território. Esse tema, o que tem de instigante, tem de provocador.

Falamos de uma região atravessada por grandes interesses urbanos do capital imobiliário e financeiro que utilizam a criminalização às drogas e à pobreza, a gentrificação[3] e a violência policial como expedientes comuns para dar cabo a seus projetos particulares: expulsão da classe trabalhadora e segmentos subalternizados da população para imposição de um projeto urbanístico elitista e privatista. Nesse sentido, o grupo é constantemente ameaçado por ações de “revitalização urbana”, públicas ou privadas, que almejam expulsá-los de lá via aumento de aluguel, dificuldades ao realizar ações nas ruas, entre outros.
Isso pode parecer uma novidade no contexto atual, considerando o projeto de cidades criativas, que tem sido uma das principais estratégias de renovação do capitalismo. No entanto, guardadas as devidas proporções, o espetáculo revela que essa região já era palco de intensas disputas há um século.
Ao longo de pouco mais de um século, que separa a Revolta Esquecida dos conflitos que hoje marcam a região, observam-se processos de continuidade e descontinuidade. A truculência policial, as tentativas de despejo em ocupações, cortiços e moradias populares, como a Favela do Moinho, o projeto racista de higienização social da pejorativamente chamada Cracolândia, a LGBTQIAPN+fobia e tantas outras violências revelam a permanência de dinâmicas opressivas que atravessam esse complexo território e se reatualizam no processo histórico.
Enfrentando esse vasto e desafiador passado, o grupo constrói sua existência e ocupa a rua, lidando diariamente com dilemas e contradições tanto no cotidiano teatral quanto no espetáculo Cidade Soterrada.
A peça tem diversos elementos para analisar, mas gostaria de ressaltar um nesta breve reflexão: a questão da memória.
O espetáculo se constrói na rua, mas não em uma rua qualquer. É um espaço marcado pela deterioração, onde a pobreza extrema coexiste com a ostentação arquitetônica de uma igreja presbiteriana — protegida, ao menos no dia em que assisti, pela Guarda Civil Metropolitana. Trata-se de um território de passagem, de fluxo intenso e relações efêmeras, onde criar vínculos parece difícil. Ao mesmo tempo, é um espaço de moradias populares invisibilizadas, de laços orgânicos de vizinhança e de pequenos comércios locais. Um território composto por múltiplos mundos, que facilmente escapam a um olhar desatento.
O espetáculo convoca o público a ter um olhar atento àquilo que o aparente esconde. A peça se desenrola em um trânsito temporal, onde personagens do passado e do futuro tentam romper com a maldição que insiste em soterrar as revoltas populares — como a escavadeira de obras urbanas que surge em cena. Essa maldição é o esquecimento, a imposição da história contada pelos vencedores. O espetáculo corrobora a ideia benjaminiana de que é preciso “escovar a história a contrapelo” (1994) para quebrar a maldição do esquecimento, revelando a barbárie oculta na história oficial, nos monumentos de cultura e em outras narrativas hegemônicas. Esse princípio se materializa, por exemplo, na potente cena das estátuas que simbolizam o status quo durante a Revolta Esquecida — um político conservador, um bandeirante e uma empresária filantrópica —, desveladas ao serem derrubadas pela revolta popular, pelo corpo-guerrilha, durante uma barricada.
A relação entre trânsito temporal e esquecimento traz à tona uma concepção de memória não linear nem cumulativa, como destaca Leda Maria Martins (1997) em sua pesquisa sobre os reinados do Rosário, em Minas Gerais. Ela evidencia que memória e tempo se entrelaçam em temporalidades curvas, espirais e não retilíneas, formando imagens que se refletem e se reconfiguram. Lidar com a memória no presente — das lutas e conflitos atuais — é, portanto, um ato de reedição e reelaboração do passado. O espetáculo convida o público a abandonar a busca por uma linearidade narrativa, abrindo espaço para outras formas de apreensão.
Como mencionado, a história oficial das revoltas brasileiras tem sido, ontem e hoje, a história narrada pelos algozes. Os vencidos — populações pobres, negras, indígenas, trabalhadores/as, entre outras — são relegados à vala do esquecimento. Com um tom que pode soar pessimista para alguns e realista para outros, o final da peça nos recoloca vários paradigmas políticos ao não oferecer uma resposta fácil para superar o projeto da modernidade colonial capitalista. O que fazer? Se desvelar a história não basta, e então? Heróis vão nos libertar? Ainda existe lugar para revolução em nossos corações e imaginários?
Há anos, os grupos de teatro buscam construir concretamente outras formas de produção e relações de trabalho, em uma negação ao capitalismo, como uma maneira de revolucionar o cotidiano e cotidianizar a revolução. No entanto, como todos nós, estão atravessados pelos paradoxos e contradições da vida e do trabalho dentro desse sistema econômico, político e simbólico.
A Próxima Companhia, nesse e em outros processos criativos, procurou ocupar radicalmente a rua em um contexto marcado pela atomização, individualização dos sujeitos e pela disseminação do medo, com a segurança sendo vendida como um projeto privatista e policialesco. Esse movimento traz à tona vários dilemas e dificuldades, que não são ocultados nas obras, mas explicitados, convidando o público a refletir e pensar junto, em um trabalho marcadamente coletivo e colaborativo.
Desde intervenções na região da Luz, na Praça da Sé, no Largo do Arouche, entre outros espaços, o núcleo artístico mobiliza as pessoas para o espaço público, no meio do caos da cidade que insiste em nos soterrar. Certamente, o grupo sabe que não há uma fórmula pronta para transformar essa realidade, mas articular lutas locais e ocupar as ruas são, sem dúvida, um caminho.
Para conhecer mais sobre A Próxima Companhia: https://www.aproximacompanhia.com.br/
João Rodrigo V. Martins é antropólogo, educador popular e pesquisador de teatro e políticas culturais.
[1] Política pública fruto de muita luta e conquista da categoria teatral na capital. Mais informações: https://www.spescoladeteatro.org.br/coluna/lei-do-fomento-ao-teatro
[2] Para mais informações: https://www.aproximacompanhia.com.br/revoltasurbanas
[3] Em resumo, trata-se de processo de transformação urbana em que uma área antes ocupada por populações subalternizadas passa por valorização imobiliária, atraindo moradores e investidores com maior poder aquisitivo. Esse processo geralmente resulta na expulsão dos antigos residentes. Pode ser um processo protagonizado pelo poder público ou agentes privados.
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In:BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
MARTINS, Leda Maria. Afrografias da Memória: o Reinado do Rosário do Jatobá. São Paulo: Editora Perspectiva; Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997.