Cidades para e das crianças
Para alcançar Cidades do Amanhã, precisamos incluir hoje crianças e adolescentes na construção do espaço urbano. Leia o artigo do especial Cidades do amanhã
Numa tarde de saudade, fiz uma ligação por vídeo com meu afilhado, de 6 anos. Ele estava entretido com seu brinquedo favorito (e meu presente favorito, para desgosto da comadre): uma montanha de Lego, com a qual construía, nas suas palavras, um mercadinho. Eu não era páreo para aquela atração (principalmente através de uma telinha de celular), então entrei na brincadeira e perguntei o que ia vender no mercadinho. “Papel higiênico, tem um pacote grandão que tá em promoção”, me informou. “Mas se é tão grande assim, como você vai trazer pra sua casa?”, ao que ele respondeu com tom de deboche pela obviedade da pergunta “De carro”. Nada te prepara para o deboche de um pequeno ser que você viu nascer, é um misto de orgulho e, ao mesmo tempo, um golpe em nosso amor próprio.
Conversa vai, conversa vem, descubro que esse não é o meio de locomoção preferido dele, no entanto. “Yeah, esse é meu garoto!” grita o urbanista dentro de mim quando me conta que prefere a casa de uma das avós porque dá pra ir a pé, o que ele acha mais legal. Vibro ainda mais quando ele relata suas brincadeiras na Praça da Imprensa, perto de sua casa, em Fortaleza. Claro, o shopping center também estava entre seus passeios favoritos na cidade, mas resolvo deixar essa conversa para daqui a um tempo. Esse nosso papo vai durar muitos anos, então não tenho pressa, nem quero gastar todos os assuntos, quero redescobrir a cidade aos poucos através dos olhos e da experiência dele.
Se essa conversa foi para mim um momento delicioso de conexão; para o estado brasileiro, devia ser uma obrigação. É o que determina duas legislações aniversariantes neste mês de julho. Pouco depois do aniversário de 20 anos do Estatuto da Cidade no dia 10, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completou 31 anos no último dia 13 de julho. Preocupadas com o bem estar e estabelecendo uma série considerável de diretrizes e determinações como só leis nascidas sob o signo de câncer conseguiriam combinar, ambas ainda precisam ser melhor conjugadas por nós, urbanistas e demais profissionais, políticos e militantes envolvidos com o desenvolvimento urbano.
Dentre seus vários dispositivos, a determinação de que a gestão urbana deve obrigatoriamente ser democrática é até hoje talvez um dos maiores avanços trazidos pelo Estatuto da Cidade. Como forma de garantir que as políticas urbanas efetivamente consagrassem o direito à cidade para “as presentes e futuras gerações” (Art. 2o, inciso I), o EC expressamente garante a participação da população e dos vários segmentos da comunidade na “formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano” (Art. 2o, inciso II). O próprio Plano Diretor, instrumento básico dessa política, deve ser elaborado com base em “audiências públicas e debates com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade” (Art. 40, inciso I).
Ora, desde o final dos anos 1980, a legislação brasileira reconheceu oficialmente crianças e adolescentes como sujeitos de direito, através da aprovação do combo formado pelo art. 227 da Constituição Federal de 1988, da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança em 1989 e do ECA em 1990. Nosso ordenamento jurídico afirma, assim, que são capazes de tomar decisões – ou seja, são “sujeitos” – e que devem contar com a proteção legal plena de seus direitos fundamentais – “de direitos” – pela sua condição de seres humanos completos e integrais; e não mais seres humanos incompletos a quem falta discernimento e simplesmente objetos de tutela. São, portanto, parte indelével da comunidade política que deve ser envolvida nos processos democráticos brasileiros de acordo com a sua condição peculiar de desenvolvimento.
Em seu art. 16, o ECA expressamente inclui, dentre os componentes do direito à liberdade de crianças e adolescentes, o direito de opinar e se expressar (inciso II); de participar da vida familiar e comunitária, sem discriminação (inciso V); e de participar da vida política, na forma da lei (inciso VI). Não se trata, assim, de devaneio esquerdista a reivindicação de que esses sujeitos sejam ativamente parte da construção da democracia e dos processos políticos brasileiros.
Da mesma forma, não resta dúvida de que deve haver um lugar reservado especificamente para elas no processo de formulação e implementação da política de desenvolvimento urbano. Neste momento, consigo visualizar pelo menos uma dezena de urbanistas progressistas e militantes do direito à cidade torcendo o nariz diante dessa afirmação. Ou pelo menos desdenhando dela. Com razão, apontariam que nossos processos de planejamento participativo têm sido falhos e demonstrado baixa capacidade de permeabilidade às demandas populares apresentadas por adultos integrantes de movimentos, organizações da sociedade civil, de universidades e centros de pesquisa.
Poderiam inclusive usar como exemplo o que acontece em São Paulo nos últimos meses. Apesar de a cidade contar com uma vibrante sociedade civil, composta de inúmeros movimentos sociais, ONGs, centros de pesquisa, dentre outros; a gestão municipal tenta a todo custo realizar uma revisão afobada do Plano Diretor, atropelando para isso diversas etapas essenciais ao processo e sacrificando a participação popular. De modo cínico, afirmam cumprir com esta obrigação legal ao realizar uma enquete virtual e um survey com moradores limitadíssimos e metodologicamente falhos, como demonstrou Bianca Tavolari. O caso de São Paulo está longe de ser o único, sendo possível citar também um déficit democrático nos processos de revisão dos planos diretores do Recife, de Natal e de Fortaleza, por exemplo.
Essa acertada avaliação sobre os limites do atual modelo de participação não pode, contudo, desembocar numa ceticidade e incredulidade que invalidem a demanda pela inclusão de crianças e adolescentes. Pelo contrário, essa expansão dos processos participativos deve ser uma aposta estratégica para que estes processos passem a gozar, ao longo das próximas décadas, de maior apelo social dentre os adultos que hoje se encontram na escola. A cidadania está sendo forjada agora mesmo, na infância.
Outras sobrancelhas urbanísticas arqueadas em desconfiança indagarão sobre a real possibilidade de engajamento delas em decisões tão complexas sobre nossas cidades. Uma boa resposta a isso é oferecida pelo trabalho de Carlos Roberto Cals de Melo Neto – a quem aproveito para agradecer por comentários e reflexões no diálogo que embasou este artigo – ao abordar a questão da participação política desses sujeitos. “Comumente, a capacidade diferenciada da criança e do adolescente de interpretar o mundo ao seu redor e expressar-se sobre ele é tida como incapacidade, e em nome dela, a infância e a adolescência são simplesmente emudecidas. É importante perceber que respeitar o desenvolvimento da criança não é ignorá-la, mas saber dialogar com ela, fazendo-se compreender e, sobretudo, esforçando-se para compreendê-la, seja nas relações domésticas, comunitárias, sociais ou com o Estado”.
É importante, portanto, entender que não se tratam de adultos e que os moldes utilizados para discussão e deliberação não serão iguais. Por serem sujeitos em condição peculiar de desenvolvimento, devemos pensar metodologias e processos de participação que permitam a eles fazerem suas escolhas dentro de sua lógica e a partir das suas próprias condições. Como destaca o autor, pensar participação juvenil passa, necessariamente, por pensar uma participação que respeite essa condição peculiar de desenvolvimento, não se pode esperar que elas simplesmente se adequem aos processos tradicionalmente formatados para adultos.
Para aqueles que permanecem em dúvida, apenas relembro o relato fiel da conversa de afilhado e padrinho que reproduzi no início do texto. Em menos de meia hora de conversa, descobri que, para ele, era mais importante e gostoso andar a pé até a casa de uma das avós do que diversos outros passeios de carro. Esse direito do meu afilhado e de todas as outras crianças está assegurado pelo ECA quando afirma, por exemplo, que um dos componentes do direito à liberdade delas é o direito de “ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as restrições legais” (art. 16, inciso I). As cidades devem, portanto, possibilitar condições seguras, saudáveis e prazerosas (vide inciso IV do mesmo art. 16) para que elas possam exercer plenamente sua liberdade, condição essencial ao seu integral desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social (art. 3) e para que possam desfrutar da necessária convivência familiar, comunitária e social (art. 4).
Por força do princípio da prioridade absoluta, essas necessidades e interesses devem obrigatoriamente ser colocados no centro da formulação de políticas urbanas. Desde 1988, o art. 227 da Constituição já determina que “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. O ECA reforçou o princípio ao, repetindo a fórmula constitucional, acrescentar que essa prioridade compreende a “preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas” (art. 4, parágrafo único, alínea c).
Se ainda estamos longe de conferir prioridade absoluta aos seus interesses no bojo da política urbana; já existem movimentos, coletivos e organizações – e até algumas gestões públicas – que têm se engajado na promoção de cidades para crianças. Em sua maioria, essas iniciativas estão voltadas principalmente à melhoria das cidades através do desenho urbano, fazendo uso de diversos manuais que apresentam diretrizes para torná-las mais amigáveis, como o “Designing Streets for Kids” e o “Cities Alive: Designing for urban childhoods”.
Além de medidas de segurança viária e de melhoria para sistemas de transporte público; são frequentemente sugeridos por estes manuais: o incremento de áreas e infraestruturas verdes; a ludicidade e o acolhimento como norteadoras de projetos para espaços públicos; a adoção de espaços multifuncionais que possibilitem a convivência e a interação intergeracional; praças e ruas abertas especificamente para crianças e adolescentes; e, finalmente, a necessidade de ser adotada transversalmente a perspectiva delas na elaboração de todas essas intervenções através de sua participação e envolvimento diretos.
Iniciativas como essas vêm sendo desenvolvidas em diferentes regiões do mundo, incluindo algumas cidades brasileiras, como demonstra o mapeamento realizado pela Iniciativa de Cidades Amigáveis para Crianças da Unicef. O município de Jundiaí, por exemplo, estabeleceu uma comissão permanente de crianças e adolescentes para pensar e reivindicar propostas para a cidade. Há até mesmo uma Aliança Global de Cidades para Crianças, formada por grandes e reconhecidas organizações internacionais envolvidas com o tema. No entanto, é preciso cautela e criticidade: qual é de fato o nível de engajamento que estas iniciativas proporcionam ou permitem a crianças e adolescentes? Para que avancemos em direção à efetivação de seu direito à cidade, não basta que as cidades sejam PARA crianças, elas precisam ainda ser DAS crianças e adolescentes.
Reitero: não se trata de favor ou progressismo ingênuo a integração delas no planejamento e na gestão urbana. E o momento que vivemos agora é propício, já que nos encontramos em época de revisão de Planos Diretores e Planos Plurianuais nas cidades brasileiras. Se o movimento da infância e juventude há décadas reivindica a sua priorização e oportunidade de participação política e se os movimentos urbanos, por sua vez, reivindicam a ampliação e ressignificação dos processos de planejamento participativo e de gestão democrática da cidade; por que não encaramos então a sério esse desafio e finalmente cumprimos com as determinações do ordenamento jurídico brasileiro?
Trata-se de mais um passo importante na corporificação da ordem jurídico-urbanística brasileira. Se não aceitamos mais o homem branco, cisgênero, heterossexual, de classe média como a métrica de construção do espaço urbano; a perspectiva interseccional nos impõe também o engajamento de crianças e adolescentes na construção material, política e simbólica das cidades brasileiras.
Longe de acreditar numa visão romantizada de que as crianças magicamente possuem ou são a chave para a solução de todos os problemas sociais, simplesmente acredito que sem elas não haverá uma mudança estrutural e sustentável a longo prazo em nossas cidades. Por desfrutarem de prioridade absoluta na efetivação de direitos; a reivindicação, a promoção e a efetivação do seu direito à cidade deve estar no centro de nossa ação. E, assim como no caso dos adultos, quem determina o conteúdo e extensão desse direito é a prática política de seus titulares, cabendo, portanto, a elas mesmas poderem diretamente expressar suas pautas e visões nos processos de planejamento e gestão democrática das cidades. Estejamos certos: uma cidade boa PARA crianças será uma cidade boa para todes, todas e todos, mas, para isso, as cidades precisam ser igualmente DAS crianças.
Rodrigo Faria G. Iacovini (@rodrigoiacovini) é doutor em planejamento urbano e regional pela FAUUSP, coordenador da Escola da Cidadania do Instituto Pólis, assessor da Global Platform for the Right to the City e colunista do Bemdito. Foi coordenador executivo do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU) e assessor da Relatoria Especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada.