Círculo vicioso das crises alimentares na África
Em 2015, a ONU se fixou, como objetivo ambicioso, colocar fim à fome e à desnutrição até 2030. Ainda que, em números absolutos, a maioria das pessoas que sofrem com a fome se encontre na Ásia, é na África subsaariana que a proporção de habitantes vivendo com medo da falta de comida é maior
A fome ameaça a humanidade desde o início dos tempos. As mais antigas representações do fenômeno vêm do Egito antigo, onde encontramos cenas de escassez pintadas nas paredes dos túmulos faraônicos. Hoje, as penúrias no sentido estrito são mais raras, mas ainda existem. Algumas regiões conhecem “fomes silenciosas” que passam despercebidas aos olhos do mundo. Outros correm um risco flagrante: mais de 20 milhões de pessoas, repartidas em quatro países, estão diretamente ameaçadas. Três deles – o Iêmen é o quarto país – estão situados na África subsaariana, onde a “estação da fome” chega ao seu auge no verão: o Sudão do Sul, a Nigéria e a Somália – que atravessa sua pior seca dos últimos setenta anos. Esses Estados se situam em zonas de conflito: a guerra e a insegurança atrapalham as intervenções humanitárias, colocando em perigo a vida de milhões de pessoas, entre as quais centenas de milhares de crianças.
Ao longo dos séculos, desde que os egípcios da Antiguidade representaram essas cenas, nenhum continente foi poupado. Enquanto a fome individual aparece antes de mais nada ligada à pobreza, a fome coletiva se impõe como o produto da guerra ou de catástrofes naturais. Sendo a mais extrema forma da crise nutricional, ela é precedida pelo que os especialistas chamam de insegurança alimentar ou desnutrição, termos técnicos que podem parecer opacos. Por facilidade de linguagem, fala-se frequentemente de “fome”. Mas isso descreve uma condição física, numa situação onde a insegurança alimentar cobre um problema mais amplo. Em sua acepção mais simples, ela designa a situação das pessoas que não têm acesso cotidiano a uma alimentação suficiente ou variada o bastante. Essas pessoas têm fome ou vivem com o medo mais ou menos constante de serem confrontadas ao problema.
Para compreender esse temor, é preciso entender o que ele implica na vida cotidiana de um ser humano. Por um instante, coloque-se na pele de um agricultor africano. Com seus dois hectares de terra, você até que tem sorte comparado a alguns de seus vizinhos, que possuem menos que um hectare. Você cultiva milho, feijão e alguns legumes. Possui uma vaca e duas cabras. Tem a impressão de que sua situação está melhorando, mas sua família atravessa às vezes momentos difíceis, principalmente em certos períodos do ano.
Você colheu seu milho há alguns meses e vendeu uma parte imediatamente, porque precisava de dinheiro para pagar os gastos de escolarização de seus filhos e comprar os alimentos que você não cultiva em sua própria fazenda. Você guardou o resto num celeiro para alimentar sua família, mas já não tem tanto. A venda do milho não lhe deu muito dinheiro, pois os preços estavam baixos, já que todos os agricultores da região vendem ao mesmo tempo. Mas você não podia esperar. Seu silo é de má qualidade, sua colheita apodrecerá em alguns meses.
Começa o período das vacas magras. Você já gastou todo o dinheiro ganho com a venda de seus produtos, e a comida nas mercearias está extremamente cara. Você tem o suficiente para passar duas semanas. Plantou feijões e trabalhou os campos todos os dias para que a colheita fosse abundante, mas nada poderá ser vendido antes de seis semanas. Enquanto espera, você não sabe como vai alimentar seus filhos. Você precisa encontrar um meio de alimentá-los.
Sua esposa e você começam a pular refeições: isso ajuda a prolongar as reservas. Vocês servem porções menores às crianças na hora do jantar. Assim talvez vocês ganhem uma semana ou duas. Você começa a pensar em fazer um empréstimo, mas em sua vila não há nenhum banco, e os bancos da cidade não têm nenhum interesse em emprestar para camponeses que não oferecem nenhuma garantia. Você poderia pedir dinheiro emprestado ao agiota da cidade, que pede 40% de juros; isso deveria ajudar por um momento, mas como reembolsá-lo? Você procura outra solução.
Você considera, então, vender um pouco do que possui. Espera poder dar aos seus filhos a carne de suas cabras, mas, se você vender uma, pode comprar milho suficiente por algumas semanas. Ainda que os preços estejam muito baixos – as cabras estão magras nesta época do ano –, é melhor do que nada.
Talvez você tente encontrar um trabalho na região. Um vizinho que possui uma grande fazenda poderia empregá-lo algumas horas por dia, mas os salários são baixos e não há trabalho na vila. No fim das contas, você diz a si mesmo que vai conseguir: em algumas semanas, a próxima colheita vai chegar.
E então acontece um desastre. Uma praga, a lagarta-legionária, chega à sua região e provoca danos sem precedentes. Sua colheita é dizimada. Agora, não lhe resta mais nada. Você pensa em tirar seus filhos da escola: eles podem trabalhar, cuidar das roupas ou dos animais, ir buscar lenha para vender. Enfim, ganhar dinheiro. Você sabe que o futuro deles está na escola, mas ele parece distante e sua família precisa de dinheiro imediatamente. Você espera não chegar ao ponto de ter de pedir a seus filhos que pulem uma refeição.
Então você acaba vendendo sua última cabra e sua única vaca. As crianças vão sentir falta do leite da vaca, que as pessoas do centro de saúde disseram ser importante para os jovens em crescimento. Além disso, você vai perder as pequenas entradas de dinheiro que conseguia com a venda do leite que sobrava e não vai mais comer a carne das cabras.
Talvez você se dirija até a capital. Fica a muitas horas de distância e você não verá mais sua família durante meses, mas será que você realmente tem escolha? Você ouviu dizer que havia trabalho por lá, seus vizinhos também. Cinco deles já se foram, mas ninguém deu notícias há semanas.
Claro que você procura comida por perto: cogumelos comestíveis, plantas selvagens, pequenos frutos. Não é muito, mas qualquer coisa serve no ponto em que está. Inclusive, você deveria talvez vender uma parte de suas terras. Isso lhe daria o suficiente para aguentar até a próxima colheita de milho, mas você sabe também que essa colheita será ainda menor se você tiver menos terra.
Você pensa de novo no agiota da vila. Você quer evitar um empréstimo de dinheiro: você viu seus vizinhos caírem em uma engrenagem de dívidas inextricável, mas ainda é melhor do que ver seus filhos passarem fome. Você não gosta de pensar no que vai acontecer quando chegar a hora de pagar o empréstimo. Por pior que tenha sido o ano, a situação pode se agravar ainda mais.
Eis um exemplo entre muitos do que significa a insegurança alimentar para um indivíduo, e uma ideia das causas profundas da fome para grande parte da população da África subsaariana. Esse problema resulta de uma mistura de pobreza e de desenvolvimento insuficiente nos setores agrícola, econômico, social e político, acompanhada por uma falta de acesso aos serviços de base. Em uma zona rural onde esses serviços são limitados, um único acontecimento pode acabar com as poucas rendas de uma família: seca, funerais, hospitalização… Os problemas de saúde gerados pela fome têm repercussões sobre a capacidade de trabalhar, o que afeta a capacidade de conseguir comida, pois a desnutrição piora o estado de saúde, e assim por diante.
Além disso, muitas pessoas são portadoras do vírus HIV-aids nas regiões que não dispõem de infraestrutura de saúde apropriada. Os doentes se encontram principalmente entre os habitantes mais pobres que não têm seguro-saúde nem meios para pagar um tratamento. Em alguns países africanos, como a Somália, o Sudão do Sul e a República Democrática do Congo, a guerra é o maior obstáculo. Quando se foge da violência, não é possível cuidar dos campos, criar gado ou montar um comércio. A economia fica distorcida e os preços explodem. A educação, a saúde e o comércio sofrem: fica cada vez mais difícil ganhar a vida.
Outro fator: a mudança climática. Os cientistas e agrônomos se preocupam com os danos que ela poderia causar. Os agricultores e criadores de gado africanos contribuíram muito menos para o aquecimento climático do que seus pares dos países mais ricos, mas eles sofrem as consequências de maneira muito concreta. Em certas regiões do continente, as secas se tornaram mais frequentes e intensas, ameaçando modos de vida inteiros. Associada ao forte crescimento demográfico, a mudança climática esgota a terra. Famílias se veem obrigadas a cultivar solos pouco férteis com instrumentos pouco eficientes que não melhoram em nada a produtividade.
No entanto, é possível romper esse ciclo. Apesar dos números, que permanecem alarmantes, as coisas melhoram para muitos africanos. A proporção de habitantes que passam fome diminuiu nos últimos vinte anos, mesmo com o número absoluto aumentando em razão do crescimento demográfico. Os governos do continente e as agências que prestam assistência, como o Programa Alimentar Mundial (PAM), devem encontrar meios para acelerar esse progresso. Em um continente tão imenso e diverso, a situação varia de acordo com as regiões. Enquanto os países da África central se encontram em dificuldade, a África ocidental conheceu progressos consideráveis nos últimos 25 anos: a porção dos habitantes que passam fome diminuiu em mais da metade, passando de 24% para 10%. A África austral, que já se encontrava numa melhor situação, continua crescendo; uma boa gestão da seca permitiu que uma catástrofe fosse evitada em 2016. Quanto à África oriental, ela conheceu avanços, mas a estrada ainda é longa. Estima-se que a Etiópia, que se encontra em pleno crescimento econômico, perca 16,5% de seu PIB anual por causa da desnutrição infantil.1
*David Beasley é diretor executivo do Programa Alimentar Mundial (PAM).