Clima, chuvas e segurança hídrica no Brasil
Um primeiro passo fundamental para construir um novo paradigma de cuidado com a água, no qual clima e água sejam duas dimensões intrinsecamente relacionadas, é incluir expressamente em nossa Constituição Federal o direito do cidadão brasileiro à segurança climática.
As mudanças climáticas são, possivelmente, a principal variável para compreender e agir efetivamente em prol da segurança hídrica. De um lado, esse fenômeno, acelerado e alterado pela ação humana, impacta diretamente no regime de chuvas. Além disso, essa realidade exige que as nossas políticas públicas e ações voltadas a questão hídrica devem obrigatoriamente incorporar essa dimensão e esse conhecimento, com vistas a viabilizar sistemas mais resilientes e adaptados a esse cenário.
Em grande medida é esse contexto que está por trás das últimas manchetes de jornais que tratam da atual “crise hídrica” que já gera preocupações e impactos tanto nos setores de energia quanto de abastecimento de água. Os nossos reservatórios estão com volumes de reserva abaixo daqueles registrados antes da crise enfrentada em 2015. A hidrelétrica de Itaipu, responsável pela geração de cerca de 10% de toda energia elétrica consumida no Brasil, registra o menor índice de reserva desde 2005.
Diante deste cenário, garantir o cumprimento do princípio da gestão dos usos múltiplos da água, conforme preconiza nossa Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei Federal No. 9.433/97), a partir do reconhecimento explícito de que se trata de um bem comum, é um desafio muito significativo. As incertezas acerca das próximas chuvas e os extremos climáticos são duas variáveis fundamentais para a segurança hídrica. Além disso, a disputa por esse recurso natural finito, em um contexto de crescimento populacional e todas essas alterações, exige considerar as dimensões da segurança climática e segurança hídrica como aspectos elementares para o desenvolvimento do país. Não é por acaso que o Fórum Econômico Mundial, em seu relatório que identifica e analisa os principais riscos globais, elenca os extremos climáticos, a falha em lidar com os desafios das mudanças climáticas e os impactos da ação humana na natureza como os três maiores riscos da humanidade.
Entretanto, o que não falta são alertas da ciência indicando que essa é uma questão importante.
De acordo com o último relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças do Clima (IPCC), o Brasil Central e o leste da Amazônia terão uma redução de 20% no volume médio de chuva. No caso do Centro-Oeste, além de uma redução significativa da precipitação, está previsto um aumento da temperatura de 4 a 5ºC se mantivermos as atuais emissões e o desmatamento na Amazônia. No Nordeste, o relatório informa que a precipitação já diminuiu em média 30% em alguns locais. Para as regiões Sul e Sudeste, as projeções indicam um aumento da ordem de 10% do volume médio de chuvas, o que também implicará em dificuldades em termos de gestão, já que essas águas tendem a cair do céu de forma mais concentrada, ocasionando as cenas já conhecidas de alagamentos e enchentes especialmente em nossos centros urbanos.
Em maio deste ano o Sistema Nacional de Meteorologia publicou uma Nota Técnica emitindo um alerta de emergência hídrica associado às poucas chuvas na região hidrográfica da bacia do Paraná. Há cerca de um mês atrás o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) divulgaram seu prognóstico climático para a estação de primavera, apontando que enfrentaremos um período de chuvas irregulares, o que, mais uma vez, enseja preocupações.
Entretanto, infelizmente, no Brasil ainda temos a falsa percepção de abundância. Ter 12% da água doce do mundo em nosso território, nesse caso, não resolve nossos problemas. Nossas autoridades sempre apostam suas chuvas na próxima chuva que virá (ou não), relegando uma responsabilidade nossa enquanto sociedade, às benesses ou dificuldades advindas do céu.
Um primeiro passo fundamental para virar essa chave e efetivamente construir um novo paradigma de cuidado com a água, no qual clima e água sejam duas dimensões intrinsecamente relacionadas, é incluir expressamente em nossa Constituição Federal o direito do cidadão brasileiro à segurança climática. Trata-se de um conceito recente, menos conhecido, porém nem por isso menos importante. Ele engloba todos os riscos deflagrados ou agravados pelo aquecimento global. Além de não serem poucos, são todos muito sérios. No caso da água, a relação é clara: o ciclo hidrológico é intrinsecamente vinculado às condições climáticas, que estão mudando rapidamente.
Ocorre que a Constituição Federal foi promulgada em 1988, quatro anos antes da Eco92, no Rio de Janeiro, onde foi firmada a Convenção do Clima, que deu origem às negociações climáticas globais. Por consequência, a palavra “clima” não consta de seu texto.
A ausência desta menção explícita prevê que outros direitos que poderiam englobar a segurança climática – por exemplo, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado – não sejam suficientes para assegurar o combate à atual tendência de elevação da temperatura média da superfície terrestre e suas perversas consequências. Não se trata apenas do meio ambiente equilibrado agora, mas do seu equilíbrio futuro. A dimensão dinâmica dessa transformação global sem precedentes escapa à nossa Constituição e, com isso, às obrigações do Estado.
Já existe uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) para inserção da segurança climática expressamente em três dispositivos estruturantes de nossa Constituição: no artigo 5º – cláusula pétrea, como Direito Humano Fundamental; no artigo 170 – princípio da Ordem Econômica e Financeira Nacional; e no artigo – núcleo essencial do Direito ao Meio Ambiente ecologicamente equilibrado.
Esta é uma salvaguarda fundamental para assegurar que o Estado brasileiro trabalhará para reduzir o risco climático ao qual todos os brasileiros estão expostos. Embora as populações mais vulneráveis estejam mais expostas, um dos pilares de nossa economia – o agronegócio – é diretamente afetado, seja pela falta de água, seja pela elevação do nível do mar que compromete os portos pelos quais nossa produção é escoada para o resto do mundo.
A PEC da Lei Mais Urgente do Mundo foi desenvolvida por um grupo de deputados da Frente Parlamentar Ambientalista, mas também é defendida por diversos campos políticos da direita à esquerda, com o apoio da sociedade civil, ambientalistas e pesquisadores. Ela acaba de receber o número necessário de adesões de deputados para que sua tramitação na Câmara tenha início. Uma PEC similar encontra-se paralisada na Comissão de Constituição e Justiça (PEC 233/2019) do Senado Federal.
Durante a Conferência do Clima, em Glasgow, na Escócia, acelerar a tramitação desta PEC seria um sinal positivo para a comunidade internacional, que vê com reservas a disposição do Brasil de efetivamente combater a crise climática. Após quase três anos de um governo que em inúmeras ocasiões se posicionou ao lado dos negacionistas e que promoveu um retrocesso ambiental sem precedentes, alcançando vergonhosos recordes de desmatamento e queimadas, o Brasil se tornou um pária internacional, afastando investimentos e dificultando as exportações.
Guilherme Checco é mestre em Ciência Ambiental (USP) e coordenador de Pesquisas no Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS).