Cloroquina ou tubaína?
Algumas coisas que sei sobre a relação entre a história e a memória, a propósito de uma polêmica recente
Cloroquina
No dia 2 de junho, o Brasil registrou o recorde de 1.262 mortes num único dia pela Covid-19. Há muitas semanas o Brasil vem escalando os píncaros da tragédia desencadeada pela pandemia. Sem desenvolver nenhuma política para tratar do assunto, o governo federal conspira diariamente contra as medidas adotadas por estados e municípios.
Ainda em março, quando a pandemia registrava seus primeiros casos no Brasil, o presidente começou a anunciar a eficácia da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento da doença ligada à pandemia. A ênfase de Bolsonaro em tentar impor a um medicamento controverso, antes que se soubesse de sua eficácia, fez o remédio desaparecer das farmácias, tornando ainda mais difícil a vida de pacientes que efetivamente precisam dela para tratar doenças diversas.
No dia 20 de maio o Ministério da Saúde, sob o comando do general Eduardo Pazuello, divulgou protocolo para o uso da cloroquina para Covid-19. A tentativa de impor o medicamento teria sido o motivo principal para as saídas da pasta dos ministros Luis Henrique Mandetta e do seu sucessor, Nelson Teich. Médicos, ambos hesitavam em assinar o protocolo de recomendação para a cloroquina e também eram céticos sobre a volta à normalidade desejada por Bolsonaro.
As discussões sobre o uso da cloroquina ocuparam espaço e energia de cientistas. Mas uma outra polêmica tomou as redes relacionadas ao assunto. Numa entrevista para o jornalista Magno Martins transmitida ao vivo, no mesmo dia em que o Brasil ultrapassou pela primeira vez a marca de mil mortos por Covid-19, o presidente cunhou a frase “quem é de direita toma cloroquina, quem é de esquerda, tubaína”.
A impressão inicial dos brasileiros, por estarrecidos que estivessem, foi que a “piada” aludia a um conhecido refrigerante. No dia seguinte, a Associação de Fabricantes de Refrigerantes do Brasil (Afrebras), publicou nota repudiando a brincadeira de mau gosto. No dia 21, contudo, o site de notícias Diário do Centro do Mundo (DCM) publicou uma matéria assinada por Tchelo que trazia o título: “O verdadeiro sentido da ‘tubaína’ de Bolsonaro: gíria de quartéis para tortura por afogamento”. Argumentando que o presidente repetia “uma piada interna, daquelas que só um círculo de amigos compreende”, o redator do DCM dizia que o tema teria “passado batido para a maioria das pessoas”, entretanto corroborava o seu ponto de vista apontando que Bolsonaro, ao final da frase, perguntava, “entendeu?”, deixando claro a existência de “um segundo sentido” para as suas palavras.
Tubaína
A associação de palavras de Bolsonaro a práticas da ditadura militar brasileira (1964-1985) não é novidade. Em novembro de 2019, acusando servidores do Iphan de dificultarem a vida do empresário e dono da Havan Luciano Hang de construir uma obra na cidade de Rio Grande (RS), o presidente disse em uma transmissão ao vivo que “Quem quer atrapalhar o progresso vai atrapalhar na ponta da praia, aqui não”.
A referência à “ponta da praia” era clara, não havia dúvidas, pois se tratava de um ponto utilizado pelos agentes da repressão para a execução de presos políticos e opositores, próximo à base da Marinha, na Restinga de Marambaia, no Rio de Janeiro.
Do mesmo modo, trocadilhos rasteiros e insultos diversos do chefe do Executivo frequentemente ocupam a pauta dos jornais, como foi o caso das insinuações maliciosas à jornalista Patrícia Campos Mello, que em 2018 assinou uma extensa reportagem, na Folha de S.Paulo, sobre disparos em massa no Whatsapp financiados por empresários favoráveis a Bolsonaro durante a campanha de 2018. Em entrevista o presidente disse: “Ela [repórter] queria um furo. Ela queria dar o furo a qualquer preço contra mim [risos dele e dos demais]”, numa insinuação sexual das mais grosseiras, uma absoluta falta de decoro.
Por suas grosserias e insultos, em função de suas ameaças abertas a opositores e pelo amor nutrido e proclamado pela ditadura e por torturadores como Carlos Alberto Brilhante Ustra, seria difícil não acreditar que Bolsonaro pretendesse se referir a qualquer outra coisa que não fosse a tortura ao falar de “tubaína”. Mas a fala de Bolsonaro seria mesmo uma referência à tortura por afogamento ou apenas uma menção ao refrigerante?
Boatos ou sites de checagem que precisam ser checados?
Mentiras não são exatamente um fenômeno novo na política. Elas foram as armas preferidas de ditaduras. Foram usadas pelo stalinismo, mas nenhum outro regime usou tanto da mentira como os fascismos, incluindo-se a vertente representada pelo nazismo. Apenas para citar um dos exemplos mais sórdidos sobre seu uso para fins de propaganda política, a invasão da Polônia só pôde ser chancelada pela maioria dos alemães porque estes passaram a ver os judeus não apenas como os párias e avarentos do discurso antissemita, mas como perigosos inimigos, sempre a postos para liquidar o povo germânico.
Com o advento e popularização da internet e das mídias sociais, o fenômeno das fake news virou um problema político de grande envergadura. Por conta disso, decisões improváveis, como o Brexit, ou a eleição de candidatos que em outras circunstâncias jamais teriam chance de alcançar cargos políticos centrais em nenhum país tornaram-se possíveis pela disseminação de informações falsas, especialmente pelas mídias sociais e grupos de Whatsapp.
Da percepção da dimensão apelativa e devastadora das fake news na política, surgiram as agências de checagem (fact checking), que passaram a oferecer ao cidadão a possibilidade de verificar se uma informação é, ou não, verdadeira. Obviamente que sendo espaço dominado por grandes empresas de comunicação, temerosas de perder o público e interessadas em garantir o monopólio de quem pesquisa a notícia e tradicionalmente está encarregado de divulgar e opinar, tais agências não podem ser tomadas como destituídas de ideologia ou como neutras. Não obstante, para preservar a confiabilidade da informação, as fact checking fazem checagens rigorosas, prestando um importante serviço nesses tempos de mentiras instantâneas.
Uma dessas agências foi verificar a denúncia do DCM sobre o emprego do termo “tubaína”. Buscando esclarecer o assunto, o site “Boatos.org” concluiu tratar-se de uma notícia falsa. Apurando em fontes conhecidas dos pesquisadores, como o banco de dados do projeto Brasil Nunca Mais (BNM), além do site da Comissão Nacional da Verdade (CNV), a agência asseverou não haver “qualquer comprovação de que Tubaína seja uma gíria associada à tortura por afogamento tampouco é possível dizer que Bolsonaro usou uma mensagem subliminar para o termo”.
Na mesma linha de raciocínio, no dia 22, o Uol confere, que também apurou no site do projeto BNM, ouvindo a historiadora Ana Paula Britto, uma especialista no tema da ditadura, concluiu que o termo “tubaína” não está associado a nenhum tipo de tortura. O Uol confere informou ainda que, a seu pedido, Ana Paula Britto teria consultado ex-presos políticos, mas ninguém disse conhecer o termo: “Conversei com um [ex-preso] de São Paulo e outro de Minas [Gerais]. Ambos já conversaram muito com outros e também não conhecem”.
A conversa poderia ter sido encerrada aí, mas a coisa não parece ser tão simples. O nobre e justificado propósito de desfazer uma mentira pode engendrar a produção de equívocos, às vezes não intencionais. O significado disso é que não se pode dar a última palavra sobre nenhum assunto a uma empresa que criou uma agência de fact chaking, mesmo reconhecendo-se a sua importância. Diante disso, sem desdenhar do trabalho sério desenvolvido pelas agências de verificação de notícias, convém dar espaço para a dúvida e voltar a conceder a palavra ao DCM que, não obstante, foi acompanhado de outros sites que corroboraram sua versão.
No dia 21 de maio, o site LeiaJa introduziu um importante personagem na história, o ex-deputado e ex-preso político, torturado dos tempos da ditadura, Adriano Diogo. De acordo com Diogo, que presidiu a Comissão da Verdade em São Paulo, “Tubaína era um apelido dado a um tipo de tortura”: “Esse jargão de chamar o afogamento de tubaína era comum entre os militares. Ouvimos isso várias vezes. O torturador falava: ‘quer tomar uma tubaína filho da p…’ e introduzia o funil na boca (dos torturados) por onde colocava água e até líquidos mais complicados, como o óleo de rícino”.
Foi, entretanto, o próprio DCM que comprou definitivamente a briga através da matéria assinada por Joaquim Carvalho “Tubaína, fake news e sites de checagem que precisam ser checados: DCM não errou”. No texto, Carvalho cita o artigo de Tchelo, que teria rendido ao site 39 mil likes e milhares de compartilhamentos, insistindo que Bolsonaro é conhecido por fazer permanentes associações com jargões da ditadura, como tinha acontecido quando se referiu à Ponta da Praia. Mas Carvalho também dá a palavra a ex-presos e vítimas da tortura, como o próprio Adriano Diogo, para quem: “Não há o termo específico para esse tipo de tortura, tubaína pode ser um deles […]. Os torturadores usavam metáforas para dizer o que pretendiam fazer”. Ao fim da matéria, depois de dizer “Bolsonaro usa linguagem cifrada para explanar o ódio por quem pensa de maneira diferente”, Carvalho reforça que “Ponta da Praia ou tubaína [não] são expressões ditas ao acaso”.
Questão de método: a memória, a história e outros quejandos
A relação entre memória e história sempre foi conflituosa. Passados setenta anos da publicação de A memória coletiva, obra pioneira de Maurice Halbwachs, que propunha uma separação radical entre história e memória, nenhum historiador que se preze, ainda mais se lida com passados recentes e traumáticos, pode ignorar a maneira como a memória se interpõe como condição incontornável para a produção historiográfica. Não pode haver história de tempos recentes, história de tempos traumáticos sem que os historiadores dialoguem respeitosamente com a memória das testemunhas. Sobrevivente do Holocausto, Primo Levi testemunhou: “Não temos regresso. Ninguém deve sair daqui, pois poderia levar para o mundo, juntamente com a marca gravada na carne, a terrível notícia do que, em Auschwitz, o homem teve coragem de fazer ao homem”. A história não pode ser substituída pela memória, mas não é um dado morto e mesmo que não sejamos capazes de transformar o passado em si, na medida em que o indagamos a partir do presente, a história se transforma conforme as perguntas mudam e em função daquilo que os documentos guardados nos arquivos nos dão a conhecer.
Diferentemente do memorialista, o historiador tem por obrigação a exatidão. De outro modo estaria sujeito às idas e vindas do processo de recordar que, não raro, supõe pressões advindas pela transformação da memória e também pela pressão dos poderosos que dispõe sobe a maneira como se deve recordar o passado. Portanto, como diz Hobsbawm, “cada geração faz suas próprias perguntas novas sobre o passado”, ao passo que Walter Benjamin nos ensina que, sendo a reminiscência, o modo de prescrição da textura, a diferença entre o acontecimento vivido e o acontecimento lembrado, é que o primeiro é finito, porque “encerrado na esfera do vivido”, enquanto o segundo “é sem limites, pois é apenas uma chave para o que veio antes e depois”.
Dito isso, convém entender os meandros da ideia que atiçou a vinculação do termo “tubaína” às práticas da tortura no Brasil dos tempos da ditadura, para muito além do jogo de palavras e permanente evocação da necropolítica que nos governa. O fato de Bolsonaro fazer trocadilhos ou discursos subliminares não pode nos induzir ao erro de dizer que a referência à “tubaína” tenha o sentido proposto originalmente no artigo do DCM, escrito por Tchelo, apenas porque reconhecemos que ele seria capaz de dizer essa barbaridade. A propósito, apesar de repetir duas vezes a frase e concluir com uma risada cínica ou “forçada e amedrontadora”, em nenhum momento Bolsonaro concluiu a frase com a pergunta “entendeu?” como se pretendesse deixar claro haver um “segundo sentido”, como consta no artigo.
A fonte da matéria original do DCM parece ter sido Adriano Diogo, não obstante o redator Tchelo não o tivesse citado. De uma forma ou de outra, Adriano Diogo e Ivan Seixas, um ex-militante que também foi preso e torturado na ditadura e que é uma das memórias vivas da repressão, tendo sido membro da Comissão da Verdade, participaram de uma live organizada pelo DCM na tarde/noite do dia 22. Na transmissão, o tema que nos importa tem a ver com a memória e à polêmica quanto ao uso do termo “tubaína” associado à tortura. No minuto 52’ da transmissão, Ivan Seixas discorre:
“A palavra tubaína é uma das tantas outras palavras…. porque isso é gíria deles, eles é que tinham. Então leva pro submarino. Leva pro submarino era pegar você e fazer o afogamento. (…) Eu passei por afogamento. Que foi uma toalha, um pano molhado colocado sobre a boca e sobre o nariz. Você afoga igualzinho e joga a água em cima para não secar e você afoga (…) Isso é o afogamento que leva o nome de submarino, que leva o nome de tubaína, que leva o nome de tantas coisas. O nome pouco importa, pouco importa. Essa ideia de como é que foi. Eu fui perguntado sobre isso por algumas pessoas. Eu não tenho assim com exatidão, o Adriano também não tem… (…) Eu lembro vagamente, o Adriano deve lembrar, talvez, que uma figura, acho que era um escrivão, que falou, com todas as letras “nós recebíamos uma ajudinha, um presentinho”, que era o dinheiro que eles recebiam pra torturar a gente. Ele também falou ‘dá tubaína pra ele’, como sinônimo de afogamento. Então assim, eu lembro vagamente. (…) Agora o Bolsonaro falar isso, como ele falou, de levar para a Ponta da Praia, que é onde há a restinga da Marambaia, onde mataram várias pessoas, que se sabe, a gente não sabe onde estão, mas estão lá, o nome pouco importa, mas o tempo inteiro estar homenageando torturador, usando expressões de torturadores, é que é o mais complicado.”
Como se vê, o ex-preso político, embora insista na ideia de que a expressão pudesse ter surgido no depoimento, admite que nem ele nem Adriano Diogo podem confirmar com exatidão. Diogo, então, alude à reunião recente que Bolsonaro teve com o major Curió, um conhecido torturador e executor de militantes que tinham sido presos no Araguaia, e cita a reportagem de Maurício Meirelles, para o caderno Ilustrada da Folha, que diz que o livro Orvil inspira a guerra cultural de Bolsonaro. Diogo fala ainda da matéria do DCM, dizendo que o texto de Tchelo tinha sido muito bem feito e que havia ficado aborrecido com a repercussão contrária, pois tinha visto uma “meninada, especialista em ler relatório” dizer que “tubaína não era uma espécie de tortura”, queixando-se de ser chamado de “boateiro”.
A indignação de Diogo reaparece em matéria do dia 24, publicada também no DCM, com o título “A realidade da tortura não é uma disputa semântica”, onde escreve:
“É fato que as técnicas de afogamento, por mais cruéis que fossem, por imersão ou inserção de líquidos (água, salmoura, óleo de rícino) não só pela boca, como pelo ânus, foram fartamente documentadas, mas sem menção à palavra tubaína. E é provável que esse “jargão dos torturadores” talvez nunca apareça. Como tantos outros fatos que foram sufocados durante mais de trinta anos, apesar de todos os esforços empreendidos até agora.
(…) Podemos nunca encontrar o termo nos arquivos, mas que fique claro que nunca houve tentativa de fraude (…).”
Quem sentiu a tortura na pele exige, no mínimo, respeito de qualquer estudioso que lida com o assunto apenas na perspectiva de quem busca compreensão ou explicação para as atrocidades do passado. Não obstante, mesmo reivindicando legitimamente o direito de se expressar, aqueles que são detentores de “memórias fortes” relativas a passados traumáticos, em plena revolta ético-política contra o silêncio cúmplice, não pode pretender superar a história ou mesmo substituí-la.
O significado disso é que, percebendo uma nova imposição de silêncio em função do fato de que o Brasil voltou a ser governado por militares, é absolutamente legítimo que as vozes silenciadas, sejam ouvidas, ainda que não seja correto a aspiração de pretenderem falar pela história, numa espécie de revolta contra o trabalho epistemológico do historiador que tem por obrigação principal compreender o passado, ser tanto quanto possível exato, e não necessariamente julgá-lo.
A respeito do assunto, no ótimo livro em que narra a sua história nos tribunais britânicos onde enfrentou o negacionista David Irving, que lhe processou por conta da obra Denying the Holocaust, a historiadora norte-americana Deborah Lipstadt aborda como a defesa traçou uma estratégia decidindo por não chamar nenhum dos sobreviventes como testemunhas, tendo em vista os lapsos de memória e a humilhação a que poderiam estar submetidas as vítimas do Holocausto colocadas diante de um novo e poderoso algoz.
Enzo Traverso, discutindo a maneira como o filme Shoah, de Claude Lanzmann, pretendia ser a própria Shoah (palavra hebraica para Holocausto), apontava o erro de se querer simplesmente reduzir a história e o próprio acontecimento a uma mera “construção discursiva, a um relato moldado pela linguagem no qual o testemunho deixa de remeter para uma realidade factual originária e fundadora, mas na qual, pelo contrário, a memória se basta a si própria ao construir-se como acontecimento”.
À guisa de conclusão
A memória sobre o uso do termo “tubaína”, que não aparece em nenhum registro, que não consta em documento algum e que não está na transcrição dos depoimentos que estão disponíveis, pode, no final das contas, ter sido uma associação involuntária da reminiscência de vítimas da tortura diante da possibilidade efetiva e real de instauração de uma nova ditadura no país. Obviamente que, sendo efetivamente um lapso, a necessidade que os historiadores têm de restaurarem a verdade sobre o fato é imperativa, mesmo sendo indispensável que isso seja feito com respeito.
Mesmo sem ser uma questão semântica, como apontou Adriano Diogo, importa saber se o termo “tubaína” foi ou não usado como gíria para tortura nos tempos da ditadura. Importa não em função de algum capricho de historiadores, mas, principalmente, para pensarmos como as referências ao passado podem ser usadas por personagens do presente que voltam a nos ameaçar com novas ditaduras. O debate surgido em torno do tema é necessário porque nos ajuda a entender melhor Bolsonaro e o bolsonarismo, mas nos oferece também uma oportunidade para discutirmos sobre as batalhas que perdemos, inclusive as do campo da memória, o que impõe aos historiadores a obrigação de constituírem uma retaguarda racional contra o obscurantismo e as leituras negacionistas da história feitas pela extrema direita.
A fala grotesca de Bolsonaro que induziu muita gente a buscar compreender o que haveria por trás da mensagem do presidente, que passa por ser um agitador fascista, dando oportunidade para que circulassem as hipóteses sobre a forma de “tortura” dos porões do regime de 1964. A técnica conhecida de enfiar um funil na garganta das vítimas imobilizadas e despejar água era chamada quase sempre de “afogamento” (que tem outras variáveis), mas não se pode descartar que outros termos estejam associados a essa forma de suplício. Todavia, enquanto o termo não aparece na documentação ou não é confirmado por testemunhos que podem vir a tornar uma evidência forte numa prova irrefutável, não é possível dizer que aquilo que aparece na matéria do DCM seja verdade.
É por tudo isso que não se pode prescindir da história e nem dos historiadores. As vítimas da ditadura e todos aqueles que salvaguardam as memórias dos anos de chumbo precisam ser tratados com o máximo de respeito. Lamentavelmente no Brasil se pretendeu passar uma borracha nesse recente passado traumático e o efeito disso é a falta de uma memória histórica e a produção de narrativas completamente falsas por parte de saudosos da ditadura que chegam a fazer homenagens a facínoras, como fez o deputado Jair Bolsonaro na sessão da Câmara que sacramentou o golpe contra Dilma Rousseff.
Bolsonaro não é exatamente um gênio político, não é sutil, não sabe usar ironia e nem mesmo fazer trocadilhos um pouco mais sofisticados. O fato de que essa figura tosca nos governa diz mais das debilidades da esquerda e dos democratas do que das suas próprias capacidades. Os fascistas nunca foram muito inteligentes, mas governaram por anos na base do terror, porque estavam armados e convenceram gente desesperada de que podiam melhorar suas vidas, eliminando o “outro”. Foi isso que permitiu o fascismo existir e governar e é isso que existe no Brasil e nos ameaça com uma nova ditadura.
No futuro, as pessoas vão se perguntar como foi possível que isso acontecesse. E serão os historiadores que estarão a postos para lembrar o que a sociedade insistirá em esquecer, para que nunca mais aconteça novamente.
Carlos Zacarias de Sena Júnior é professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História e pesquisador do Centro de Estudos e Humanidades (CRH) da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Cf. EVANS, Richard. Terceiro Reich em guerra. São Paulo: Planeta, 2016, p. 28-29.
Agradeço a Angela Lazagna, que me chamou a atenção para essa matéria e me apresentou bons argumentos para refletir sobre o assunto. Também discuti o tema brevemente com os amigos Cláudio Novaes e Zeneide de Jesus.
LEVI, Primo. Se isto é um homem. 10 ed. Alfragide, 2013, p. 56.
HOBSBAWM, Eric. Sobre história. Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 256. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 37 (Obras escolhidas, v. 1).
O Orvil (“livro” escrito de trás pra frente), tem o título oficial de O livro negro do terrorismo no Brasil e vem a ser uma “resposta” ao projeto Brasil Nunca Mais produzido ainda nos anos 1980 sob orientação do general e ministro do Exército Leônidas Pires Gonçalves.
TRAVERSO, Enzo. O passado, modos de usar. História, memória e política. Porto: Edições Unipop, 2012, p. 58 e 84.
LIPSTADT, Deborah. Negação. Uma história real. São Paulo: Universo dos Livros, 2017. A obra deu origem a um excelente filme dirigido por Mick Jackson, em 2016.
TRAVERSO, op.cit., p. 95-96. Shoah consiste numa produção francesa de 1985, uma obra documental que visita a memória de sobreviventes do Holocausto, uma obra de mais de dez horas de duração.