Código Florestal completa dez anos e expõe a necessidade de implantá-lo
Este aniversário de dez anos do Código Florestal é o momento mais do que apropriado para chamar a sociedade à discussão, estimular a reflexão sobre o papel dos atores sociais e, ainda mais importante, brecar o apetite voraz sobre nossos biomas antes que alcancemos o ponto de inflexão do clima e de nossas matas
No dia 25 de maio deste ano, o novo Código Florestal Brasileiro completa dez anos e o aumento recorrente do desmatamento demonstra a urgência de sua efetiva implementação. A oportunidade é mais do que apropriada para discutirmos o tamanho de sua importância. O alcance e os impactos positivos da implantação plena da lei vão além do seu potencial de enfrentamento ao desmatamento, o código é também uma importante ferramenta para o combate à injustiça social no meio rural, para o estímulo de ganhos de eficiência da produção agrícola e para o resgate do protagonismo ambiental e climático, colocando o país novamente em uma posição de vantagem competitiva.
O desmatamento crescente é o mais evidente sintoma do pequeno avanço na implantação da lei em campo. Dados do último Boletim do CAR, de abril de 2022, do Serviço Florestal Brasileiro, indicam que apenas 0,4% das análises de cadastros foram concluídas e que apenas 22% dos cadastros passaram por algum tipo de análise. Alguns estados têm assinado termos de compromisso relacionados à regularização ambiental dos imóveis. Contudo, o número de termos assinados e as consequências práticas da implantação ainda são incipientes. Falta visão estratégica, planejamento e principalmente vontade política de corrigir os rumos da aplicação da lei e seus instrumentos, insumos fundamentais para a mudança para uma produção agrícola sustentável e o combate à desigualdade social no Brasil.
Com ainda mais morosidade, a implantação do Código Florestal em territórios tradicionais vem atendendo à habitual ausência de comprometimento com a justiça social e democracia no meio rural brasileiro. Poucos estados utilizam efetivamente o módulo de cadastro específico para a inscrição de territórios tradicionais. A área desses territórios inscritos corresponde a 6,4% da área total inscrita no CAR e a 0,04% do número total de imóveis inscritos. São pouco mais de 3 mil territórios tradicionais inscritos no CAR, sendo que só de quilombos o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima que sejam quase 6 mil.
O Código Florestal pode ser o grande indutor dessas alterações, impulsionando o direito de acesso à terra, assistência técnica, financiamentos, com a manutenção da cultura e geração de renda para os territórios tradicionais e agricultores familiares. A garantia dos direitos fundiários das comunidades tradicionais, a melhora da governança do uso do solo e a redução substancialmente do desmatamento são potenciais entregas da implantação do Código Florestal. Enquanto não implementado, a situação opera a favor da condenável desigualdade social. Para compor um cenário ainda mais perverso, assistimos ao desmonte da política ambiental atual, com a drenagem de seus recursos financeiros e as sucessivas trocas de comando em órgãos que tradicionalmente deram amparo ao meio ambiente e as questões relativas a povos indígenas e comunidades tradicionais.
Segmentos criminosos associados ao desmatamento ilegal, à grilagem, ao garimpo e à apropriação de terras públicas se valem ativamente de uma falsa dicotomia entre conservar e produzir para garantir interesses próprios, nocivos para a sociedade brasileira como um todo. Esse modelo não trouxe desenvolvimento econômico e é responsável pelo aumento da violência e pobreza no campo.
O discurso contrário à proteção das florestas se traduz também em inúmeras tentativas de flexibilização da legislação ambiental, em especial do Código Florestal. O desmatamento, aliado ao descumprimento do Código Florestal, revela uma imagem negativa do Brasil, prejudicando nossas relações comerciais com outros países. A lentidão na implantação do Código Florestal e a prorrogação de seus prazos contribuem para a manutenção desse cenário perverso.
Como cidadãos brasileiros, temos a responsabilidade de agir agora para evitar esse cenário devastador. E o Código Florestal é a principal ferramenta para a sociedade brasileira reverter esse cenário. Sua última edição exigiu muito debate e concessões por parte de quem buscava reduzir ou manter a proteção florestal estabelecida anteriormente.
A lei florestal tem o potencial de garantir a segurança hídrica e a sustentabilidade da produção agrícola, proteger nossa biodiversidade e favorecer o armazenamento de carbono em escala regional. São mais de 162 milhões de hectares de vegetação nativa no Brasil protegidos pela lei, estocando cerca de 100 Gt CO2, cruciais para que o país possa cumprir o compromisso assumido no Acordo de Paris. A maior parte das reduções nas emissões deveria resultar da contenção do desmatamento ilegal e da restauração de 12 milhões de hectares de florestas, medidas necessárias para o cumprimento do Código Florestal.
Um dos principais requisitos para um desenvolvimento saudável de uma atividade econômica é um ambiente de negócio estável, com segurança jurídica para os investidores. Essa é sem dúvida uma das principais entregas do Código Florestal, a estabilidade. São dez anos com a mesma proteção legal nos imóveis rurais. A estabilidade jurídica traz conservação e representa uma ferramenta ímpar na mitigação de riscos crescentes da implantação de barreiras não alfandegárias à produtos brasileiros.
É urgente estancar a proliferação de iniciativas legislativas que reduzem a proteção da vegetação natural estabelecida pelo Código Florestal, o capital internacional não especulativo está cada vez mais preocupado com as questões climáticas, sociais e ambientais. Ignorar esse fato significa perder mercado no curto prazo. A única forma de atrair esse capital é com compromissos e ações efetivas. Não haverá espaço para o Brasil no mercado de carbono se medidas não forem tomadas agora pela plena implantação do Código Florestal. A parte moderna, dinâmica e eficiente do agronegócio, com destaque para a silvicultura, já percebeu as oportunidades trazidas e tem buscado fortemente se diferenciar do “agrocrime”.
O Código Florestal permeia toda a história brasileira. Desde a Colônia tivemos uma legislação florestal, contudo, nunca nos comprometemos de fato com a sua implementação. Com o conhecimento dos danos causados em esfera global e a disponibilidade de ferramentas e dados que dispomos hoje não podemos nos furtar de nossas responsabilidades. É urgente que a análise dos dados do Cadastro Ambiental Rural (CAR), com identificação de sobreposições entre terras públicas, unidades de conservação e terras indígenas e as feições ambientais dos imóveis rurais seja realizada no menor espaço de tempo possível. Esse desafio deve ser enfrentado com tecnologia e estratégia.
Considerando a atual escassez de recursos imposta aos órgãos ambientais, a adoção de estratégias racionais de implantação do CAR é ainda mais importante. Neste sentido, uma simples análise custo-benefício indica claramente que o início de implantação do CAR deve priorizar áreas com grandes déficits de vegetação natural, além de gerar maior impacto ambiental, tem o potencial de gerar um efeito exemplar para áreas ainda não analisadas. Um esforço estratégico, com planejamento e metas é necessário para a inscrição dos territórios coletivos, assim como a sua consideração na validação dos imóveis rurais destinados ao uso agrícola não tradicional.
As políticas ambientais brasileiras passam por um momento crítico, com ataques sistemáticos de forças políticas e econômicas reacionárias, que nos impedem de esperar o protagonismo do poder público federal no avanço da implementação da lei. É preciso engajar fortemente os atores públicos subnacionais e compartilhar obrigações entre os outros atores sociais.
É preciso emancipar a sociedade brasileira para buscar caminhos, geração de informação, transparência, incentivos e, em especial, para beneficiar um público historicamente excluído das políticas públicas agrárias.
Depende de nossa capacidade de diálogo, união e planejamento e a percepção das diversas oportunidades e benefícios econômicos, sociais, ambientais e climáticos capazes de modificar nossa realidade. É possível aliar a justiça social, o clima e a proteção da biodiversidade ao avanço para uma agricultura mais eficiente, rentável e sustentável para suprir mercados internacionais cada dia mais rigorosos com a origem dos produtos que consomem.
Portanto, este aniversário de dez anos do Código Florestal é o momento mais do que apropriado para chamar a sociedade à discussão, estimular a reflexão sobre o papel dos atores sociais e, ainda mais importante, brecar o apetite voraz sobre nossos biomas antes que alcancemos o ponto de inflexão do clima e de nossas matas.
Roberta del Giudice é secretária executiva do Observatório do Código Florestal – uma rede formada por 39 instituições brasileiras da sociedade civil, com o objetivo de monitorar a implementação da Lei Florestal no país.