Com violência política de gênero e raça, não há democracia
A participação política de mulheres negras, historicamente sub-representadas nos espaços de poder, é acompanhada de episódios de violência política
No dia 8 de março de 2018, Dia de luta das mulheres, minha irmã discursava na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Quando tentaram atrapalhar sua fala, Marielle bradou a frase que viria a se tornar um marco: “Não serei interrompida! Não aturo interrupção dos vereadores desta Casa, não aturarei de um cidadão que vem aqui e não sabe ouvir a posição de uma mulher eleita.” Dias depois, em 14 de março de 2018, Mari e seu motorista Anderson foram brutalmente assassinados. O crime trouxe luz às estruturas que circundam a vida política das mulheres negras da sociedade, expondo as rachaduras estruturais presentes na frágil democracia brasileira.
Após o feminicídio político de Marielle, nós, da família, criamos o Instituto Marielle Franco para inspirar, conectar e potencializar mulheres negras, LBTQIA+ e periféricas a seguirem movendo as estruturas da sociedade por um mundo mais justo e igualitário. Um dos nossos principais eixos de atuação é para diminuir os índices de violência política contra mulheres negras, não só no Brasil, mas em toda América Latina, para que mais mulheres negras e periféricas ocupem a política e não sejam interrompidas.
A participação política de mulheres negras, historicamente sub-representadas nos espaços de poder, é acompanhada de episódios de violência política. Em meio a ameaças de ruptura democrática, discursos e atos de ódio, racistas, machistas e transfóbicos, as eleições de 2022 se aproximam. Como iremos falar sobre democracia, se o Estado brasileiro e os partidos políticos ainda não garantiram mecanismos devidamente eficazes de prevenção e combate à violência política de gênero e raça?
É importante pontuar que, segundo a Organização dos Estados Americanos (OEA), a violência política é caracterizada como uma ação, conduta ou omissão realizada de forma direta ou por meio de terceiros, podendo se materializar por meio de agressões físicas, psicológicas, morais, sexuais, virtuais, institucionais, raciais, de gênero, LGBTQI+fóbicas, entre outras, e podendo ser cometidas contra candidatas, eleitas, nomeadas ou na atividade da função pública. Ela é utilizada para atingir objetivos específicos, sendo certo que grupos estruturalmente excluídos da política são vitimados por tipos de violência associados à intimidação de sua ação e censura para que a participação política ativa dos mesmos seja interrompida, conforme conclui a pesquisa “Violência Política e Eleitoral no Brasil – Panorama das violações de direitos humanos de 2016 a 2020”, as ONGs Justiça Global e Terra de Direitos.
Infelizmente, a cerca de dois meses para as eleições, temos o assustador cenário de que todos – repito, todos – partidos estão descumprindo a Lei de Violência Política, aprovada no ano passado. Em 2021, foi aprovada a Lei 14.192/21, que é a primeira a tratar de violência política. Apesar de tecermos necessárias críticas à legislação, visando ao seu aprimoramento, entendemos que a Lei é um passo importante principalmente por incluir diversos atores no esforço para que as mulheres possam estar na política de forma segura.
E esta é a primeira eleição em que poderíamos ter a oportunidade de colocar em vigor uma Lei para enfrentar um dos maiores sintomas que mostram a fragilidade democrática desse país. A nova Lei impõe que o Estatuto do partido político precisa conter normas sobre prevenção, repressão e combate à violência política contra a mulher (artigo 15, caput, inciso X, da Lei dos Partidos Políticos). A Lei de Violência Política ainda determina que os partidos deveriam fazer essa adequação em seus estatutos no prazo de 120 dias, contado da data de publicação da nova Lei.
Apesar de todos os partidos políticos terem sido alertados do prazo pela Procuradoria Geral Eleitoral, até hoje nenhum deles mudou o respectivo estatuto para cumprir a Lei, negligenciando, assim, a necessidade de criação de políticas internas de proteção e segurança efetivas para mulheres negras candidatas e parlamentares. Em razão disso, é necessário que os partidos sejam legalmente responsabilizados pelos descumprimento da Lei de Violência Política.
O Instituto Marielle Franco produziu a pesquisa intitulada “A Violência Política Contra Mulheres Negras: Eleições 2020”, que observou a experiência eleitoral de mulheres negras candidatas comprometidas com a Agenda Marielle Franco nas eleições de 2020. A pesquisa mostrou que apenas 32,6% das participantes denunciaram algum dos casos de violência que sofreram. Entre as que realizaram algum tipo de denúncia, 28,8% denunciaram ao seu próprio partido político e 28,8% registraram Boletim de Ocorrência ou denunciaram à delegacia de crimes digitais. Ainda assim, a denúncia parece não ter lhes ajudado tanto, uma vez que 70% das candidatas que denunciaram afirmaram que o encaminhamento do caso às autoridades não lhe trouxe mais segurança para o exercício da sua atividade político-partidária.
Como se vê, as mulheres negras políticas não contam com canais de denúncias estatais devidamente articulados e especializados para encaminharem os respectivos episódios de violência política e obterem proteção. De maneira geral, os canais estatais disponíveis hoje não nomeiam os tipos de violência política existentes e precisam ser mais articulados entre si, já que cada instituição e órgão possui um dever específico no enfrentamento à violência política de gênero e raça. Também é necessário que o fluxo de atendimento dê conta de demandas de proteção urgentes.
A adequação de canais oficiais para recebimento, durante as eleições, de denúncias relativas a crimes de violência política contra mulheres, é uma das recomendações da pesquisa “Violência Política de Gênero e Raça – 2021: Eleitas ou não, mulheres negras seguem desprotegidas” lançada pelo Instituto Marielle Franco em 2021. Neste estudo, identificamos também a relevância da necessidade de criação de instâncias internas nos partidos políticos capazes de absorver e encaminhar denúncias de violências políticas de âmbito institucional.
Ademais, nesta mesma pesquisa, recomendamos às Casas Legislativas, o estabelecimento da obrigatoriedade do funcionamento das Comissões de Ética com paridade de gênero e raça entre os membros, no intuito de atuar em casos de violência política contra mulheres negras e LBTQIA+ que ocorram no interior das casas legislativas e a criação de canais e fluxo de recebimento de denúncias, assim como a abertura de processos investigativos contra quem perpetuar a violência política de gênero e raça no país.
Diante da persistência desse problema que atinge os direitos políticos das mulheres negras, não iremos ficar paradas. Lançamos no Instituto Marielle Franco, em maio de 2022, a Campanha Não Seremos Interrompidas, para denunciar a falta de implementação da Lei de Violência Política pelos partidos; incidir para articulação e qualificação dos canais de denúncias; e contribuir para o entendimento sobre como a violência política contra mulheres negras afeta diretamente a democracia brasileira.
Vamos nos reunir com autoridades do Estado e os partidos políticos e entregar uma carta compromisso com nossas recomendações. Para isso, precisamos da ajuda de todas e todos para mostrar que somos muitas as pessoas que não aceitarão que mulheres negras sejam interrompidas. Fizemos o site www.naoseremosinterrompidas.org para levantar assinaturas em apoio à campanha e convido você, que está disponibilizando o seu tempo a ler esse texto, a também acessar o link e mostrar o seu apoio. Proteger mulheres negras na política é uma responsabilidade de todos nós. Não haverá democracia enquanto mulheres negras estiverem sofrendo violência política.
Anielle Franco é professora, jornalista, escritora, palestrante, ativista, mãe de duas meninas, mestra em Relações Étnicos Raciais e doutoranda em Linguística Aplicada pela UFRJ. É diretora executiva do Instituto Marielle Franco.
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