Comemora Lula, comemoram os golpistas — e, mais ainda, os revanchistas
Por mais inebriante que seja, portanto, a liberdade de Lula após quase dois anos na cadeia sem que tivesse direito a um julgamento justo e imparcial, e em meio a um governo fascista que se valeu da democracia para a cada dia promover um novo golpe contra a sociedade brasileira, caso não encararmos com urgência e a devida honestidade intelectual certas questões, corremos o risco de sermos assombrados pelas consequências de nosso porre incauto nas décadas que virão. E nem são tantas assim. Basicamente uma: por que simplesmente não anular a sentença condenatória de Lula?
Um pacto “com o Supremo, com tudo” para “estancar a sangria”. Quem não se lembra das palavras de Romero Jucá sobre a Lava Jato à época do impeachment de Dilma Rousseff, quando sua turma emedebista tomou o poder? Ao que parece, não são poucos os desmemoriados. Entre os quais aqueles que, então, bradavam aos quatro ventos feicebuquianos palavras de ordem contra o golpe constitucionalista que se consumava. Ainda que não soubessem diferenciar golpistas de revanchistas, colocando todos na mesma cumbuca, time Temer e time Moro. Porque sim, a diferença entre as duas frentes era — e continua sendo, cada vez mais — gritante.
Militares, todos sabemos, são conhecidos por prezarem pela sua “honra” acima de tudo. Jamais aceitaram a pecha de golpistas por 64. Muito pelo contrário, foram os revolucionários que impediram a ascensão do “pesadelo comunista” no país. A história, porém, é clara: golpistas sim. Torturadores. Assassinos. História contada e recontada nas décadas seguintes pela classe política que assumiu o poder após a redemocratização, manchando a imaculada honra militar. E os milicos lá, caladinhos. Quem poderia imaginar que estavam só esperando uma oportunidade para limparem a própria barra? Quanto mais gelada, afinal, mais saborosa é a vingança. Encontraram em Sérgio Moro o garçom ideal para entregar de bandeja, dali a dois anos, o poder de volta a suas mãos — e por vias democráticas para que, dessa vez, não pairassem dúvidas quanto à honra militar. “Golpista”, bradavam. Enquanto isso, o golpe de fato estava em plena marcha. Militares, contudo, e todos sabemos, são conhecidos estrategistas.
Todavia: políticos também os são — muito embora dispensem de bom grado a parte da “honra” em nome do poder. Algo imperdoável aos olhos dos milicos. “Onde está o Estado de Direito no Brasil? Ao sabor da política?”, indagou no Twitter o General Hamilton Mourão após a decisão do STF sobre a prisão em segunda instância. Que me desculpe o vice-presidente, mas questões outras me parecem mais importantes no momento, até porque “Estado de Direito”, na prática, nunca de fato existiu no país. E por mais inebriante que seja ver Lula como maior beneficiado da decisão. Embora longe de ser o único (estupradores e pedófilos de fora, por favor, concentremo-nos nos mais perigosos de todos).
Enquanto Mourão e cia tuitavam ferozmente, o silêncio de Dilma nas redes foi ensurdecedor, limitando-se a compartilhar uma única matéria e pronunciar-se na Argentina ao ser provocada pela imprensa. “Estou muito feliz”, curta e grossa como sempre. Talvez na certeza de que, se comemorasse a soltura de Lula, estaria comemorando também a liberdade dos golpistas que lhe tomaram o poder. Ah, mas fora Cunha, que nem solto será pois cumpre preventiva, argumentam, nenhum outro chegou a ser preso. Fato. Fato também: estavam quase lá. Faltava só uma decisão em segunda instância para tanto.
Por mais inebriante que seja, portanto, a liberdade de Lula após quase dois anos na cadeia sem que tivesse direito a um julgamento justo e imparcial, e em meio a um governo fascista que se valeu da democracia para a cada dia promover um novo golpe contra a sociedade brasileira, caso não encararmos com urgência e a devida honestidade intelectual certas questões, corremos o risco de sermos assombrados pelas consequências de nosso porre incauto nas décadas que virão. E nem são tantas assim. Basicamente uma: por que simplesmente não anular a sentença condenatória de Lula?
A parte mais difícil coube ao The Intercept: desmascarar a estratégia revanchista de Moro. Com base nas inúmeras gravações divulgadas por Glenn Greenwald, seria muito fácil anular o processo todo. Teria Greenwald se antecipado aos fatos na esperança de conter o acordão? Infelizmente, não foi o caso. A bem da verdade, já a partir de setembro, ao ter cumprido um sexto da pena, Lula poderia ter ido para o semiaberto ou mesmo para prisão domiciliar. Não é de se estranhar que a sessão que decidiria pela anulação de seu julgamento, inicialmente marcada para o dia 30 de outubro, tenha sido suspensa a uma semana do julgamento do STF. Surpresa nenhuma que tenha sido remarcada, logo no dia seguinte ao julgamento, para o dia 27 de novembro, daqui a duas semanas. Quem esperou dois anos, afinal, bem poderia esperar mais duas semanas para comemorar a liberdade de Lula, e somente de Lula.
Aos golpistas, evidente, isso em nada interessaria. A sangria teria continuado com louvor e, talvez, acabasse maculando inclusive o atual chefe em comando e suas crias — que, diga-se, saíram fortalecidos como nunca. Precisavam, contudo, da legitimação da esquerda para colocarem todos de volta às ruas. Tudo muito bem orquestrado nos porões do Jaburu.
Que a esquerda, portanto, não se engane: estamos sim comemorando o golpe. E o que parece ser escusável a qualquer político, deveria entristecer todo e qualquer guerrilheiro. Políticos podem argumentar: cada qual se vale das armas sujas que tem em mãos. Mas não era a esquerda o mocinho dessa história? Seu papel primordial não era defender o povo e os interesses do povo? Não foi para isso que pegamos em armas em 68? Não foi por isso que Dilma colocou o seu na reta nos anos 70? Agora já vale ser bandido? Em nome do quê, afinal? Não foi exatamente por isso que Dilma caiu, por não querer compactuar com a bandidagem? Como bem escreveu Gabriel RG: “Nada do que vem de cima nos pertence”. E vamos pagar caro, muito em breve, por termos nos esquecido disso.
Literalmente, um golpe de mestre: éramos os únicos a reconhecer (ainda que malmente) o ocorrido em 2016. Três anos depois, deram um jeito de legitimá-lo a nossos olhos. Mal sabia Jucá — ou tinha certeza? —, mas o “tudo” acabaria englobando a própria esquerda.
A revanche, enquanto isso? Segue em plena marcha, obrigado. E revanchistas, a postos para defender o “Estado de Direito” dos atuais golpistas. Não deixarão barato. A sangria há de continuar.