Como nasce um papa pop
A cobertura midiática sem precedentes da agonia e da morte de João Paulo II explica, em parte, o fervor com o qual milhões de homens e mulheres se envolveram, em Roma ou em seus lares, com seu luto. Mas sua popularidade tinha fundamentos mais profundos. Será Joseph Ratzinger capaz de prolongar esse papado carismático?Michel Cool
No dia 8 de abril último, 1 milhão de peregrinos seguiram espontaneamente para Roma, para acompanhar as exéquias de João Paulo II na praça São Pedro ou nos telões gigantes dispostos pela prefeitura na cidade e na sua periferia. Centenas de milhões de telespectadores comungaram simultaneamente, durante três horas, num evento cujo caráter simbólico excepcional eles pressentiam: o enterro do primeiro papa da globalização.
As imagens do caixão de cipreste, sobre o qual um vento fabuloso virava as páginas da Bíblia, antes de penetrar nas túnicas vermelho-sangue dos cardeais, permanecerão gravadas nas memórias. “Os homens de hoje (re)produzem o transcendente quando devem (re)produzir a ligação”, observa Régis Debray, hábil analista do fenômeno religioso1. Esta “pavana” católica para um papa morto teria então religado por um momento os continentes, as culturas, as religiões, as políticas e os povos que muitas coisas separavam e continuarão separando.
Para além da mídia
O impacto fenomenal do falecimento do primeiro papa eslavo da história não se explica apenas pelo efeito de lupa que lhe deram as mídias, com uma insistência que chegou a irritar laicos de obediência estrita e alguns cristãos. “Assistimos nas mídias uma papolatria exacerbada”, deplora Marcel Manoël, presidente da Igreja Reformada da França. Este movimento de simpatia coletiva também é ligado à atração exercida por uma personalidade fora do comum e sua personalização do papado durante os vinte e sete anos de seu pontificado.
O movimento de simpatia coletiva está ligado à atração exercida por uma personalidade fora do comum e sua personalização do papado
O destino trágico deste polonês, que se tornou órfão, “só no mundo”, aos 20 anos, em seguida testemunha em sua pátria da barbárie nazista e do totalitarismo comunista, marcou os espíritos. Ele proporciona, sobretudo, a Karol Wojtyla, eleito papa na flor da idade, aos 58 anos, no dia 16 de outubro de 1978, uma legitimidade certeira para reconciliar sua Igreja com os direitos humanos e para lembrar à cena internacional, sob o risco de perturbar sua imagem, a dignidade de todo ser humano, de sua concepção à morte.
Seu declínio físico, após o atentado do qual foi vítima na praça São Pedro no dia 13 de maio de 1981, depois sua longa agonia exposta, com complacência demais para alguns, ao olho indiscreto das câmeras, tocou muitos homens e mulheres. Sem pertencer sempre a seu rebanho, eles saudaram a coragem e a dignidade do velho pastor na sua luta contra a doença. “Mostrar sua fragilidade”, escreve Alain Vircondelet2, um dos seus biógrafos, “é uma maneira, para o Papa, de dizer a todos aqueles pregam com demasiada leviandade a eutanásia ou a relegação às casas especializadas de seus próprios avós, que a velhice permite compreender melhor o mistério da Cruz…”
Perdão e conciliação
Desde sua juventude, Karol Wojtyla é um idealista contaminado pelo vírus da ação. Ele leu Rilke, Dostoievski e seus compatriotas Adam Miekiewicz e Cyprian Norwid. Em filosofia, seus mestres são Max Scheler, Edmund Husserl, mas também Emmanuel Levinas, filósofo judeu da alteridade que, uma vez tornado Papa, ele receberia em sua residência de verão de Castel Gandolfo. De suas leituras, João Paulo II saiu convencido de que o outro não era o inferno descrito por Sartre, mas uma necessidade vital do homem. Ele seria o Papa do perdão, do arrependimento e da reconciliação.
De suas leituras, João Paulo II saiu convencido de que o outro não era o inferno descrito por Sartre, mas uma necessidade vital do homem
No dia 27 de dezembro de 1983, ele vai à prisão romana de Rebbibia e perdoa o ativista turco de extrema-direita que atirou nele duas vezes no dia 13 de maio de 1981. Ele que, no tempo em que o chamavam de Lolek, jogava futebol com seus camaradas de escola judeus, dá o maior passo jamais realizado por um Papa: no dia 13 de abril de 1986, atravessa o Tibre e visita a sinagoga de Roma, condenando assim 2 mil anos de anti-semitismo cristão. “Vocês são nossos irmãos amados e poderíamos mesmo dizer, neste sentido, nossos irmãos mais velhos”, declarou aos judeus. Ele repete o ato em 2000, implorando o perdão pelos atentados ao “povo da Promessa” no Memorial do Holocausto, em Yad Vashem e diante do Muro das Lamentações, em Jerusalém.
Um ano mais tarde, voltando-se para o Islã, ele é o primeiro sucessor de São Pedro a entrar numa mesquita em Damas. João Paulo II já havia causado surpresa, no dia 27 de outubro de 1986, ao reunir, em Assis, os principais chefes religiosos do planeta para um “dia mundial da oração pela paz”. Desafiando a reticência da ala conservadora dos cardeais e os anátemas das pregações tradicionalistas do bispo cismático Marcel Lefebvre, ele pede solenemente perdão pelos erros cometidos pelos cristãos na história, em março de 2000.
Líder de opinião
“A decisão de se arrepender é um elemento chave para se compreender o impacto da morte de João Paulo II”, observa Isabelle Richebé, ensaísta e ex-membro do Serviço Pastoral dos Estudos Políticos (SPEP) 3. “Ela proporciona a oportunidade de se pensar religiosamente o mal oriundo do mau uso feito da religião: a prática do desprezo e a utilização da força”. No alvorecer de um século marcado pela volta dos falcões, tragicamente ilustrado pelos atentados terroristas de 11 de setembro, João Paulo II se afirma como o Papa da militância pacifista e do diálogo entre as culturas.
Papa itinerante, ele “tirou o Vaticano do Vaticano”, encontrando-se com cerca de 300 milhões de pessoas no decurso de uma centena de viagens
Outra fonte de sua popularidade: ele renovou a imagem do papado. “Com ele”, avalia Gérard Defois, arcebispo de Lille, “o papa não é mais um gestor da instituição como o hierático Pio XII, ele se tornou um líder da opinião”. Papa itinerante, ele “tirou o Vaticano do Vaticano”, encontrando-se com cerca de 300 milhões de pessoas no decurso de uma centena de viagens. Papa midiático, o ex-ator de teatro da Cracóvia soube empregar com maestria a magia de seu verbo e as novas técnicas de comunicação. Papa das massas, ele reuniu, mais que qualquer outro tribuno de sua geração, multidões imensas: em Manilha, nas Filipinas, em 1995, para as Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ), foram ao seu encontro mais de 4 milhões de fiéis!
“Para mim, ele é principalmente uma referência espiritual em torno da qual eu construí uma parte da minha identidade religiosa. Ele influenciou diretamente minha vida tanto quanto um professor que me fez gostar de matemática…” Sarah4, 28 anos, professora de ciências físicas no liceu do Val-d?Oise, identifica-se assim com a “geração João Paulo II”. Membro da Comunidade Missão da França, ala da Igreja católica que atua no diálogo com os não-cristãos e os excluídos da sociedade, Sarah critica sem pestanejar as posições do Papa sobre a contracepção, a abstinência diante da Aids ou a homossexualidade. Mas dá graças a seu carisma por ter suscitado encontros e intercâmbios entre jovens de horizontes diversos. Sem demagogia nem lugares comuns, o capelão dos estudantes poloneses, amante do esqui e do caiaque, ganhou sua patente de interlocutor controverso, mas válido, para uma multidão de jovens – não todos, certamente.
Tolerância questionável
“Nossos contemporâneos têm dificuldade em se referir a um centro único de autoridade”, analisa Patrick Michel5, diretor de pesquisa do CNRS. “A genialidade de João Paulo II foi reiterar uma verdade central, reafirmada em 1993 na encíclica Splendor veritatis (esplendor da verdade), levando em conta ao mesmo tempo a realidade plural da sociedade moderna. A pluralidade de opiniões, de idades, de origens sociais e culturais dos públicos que se agregam a João Paulo II reflete bem sua personalidade heteróclita e paradoxal”.
Para Leonardo Boff, João Paulo II deixa o legado de uma Igreja “transformada num bastião do conservadorismo religioso e do autoritarismo político”
Os detratores desse pontificado, um dos três mais longos da história, não deixam de denunciar as contradições e a cegueira de um “Papa de múltiplos talentos”, mas “que tomou muitas decisões erradas”, segundo a expressão lapidar do teólogo suíço Hans Küng6, perseguido por seu zelo ecumênico. Leonardo Boff, teólogo brasileiro da libertação, silenciado pelo Vaticano em 1985, vê em João Paulo II um “papa da contra-reforma”, legando uma Igreja católica “transformada num bastião do conservadorismo religioso e do autoritarismo político”.
O caráter autoritário do pontificiado é um indicador simultâneo da autoridade natural de Karol Wojtyla e da rigidez doutrinal de seu braço direito, o cardeal alemão Joseph Ratzinger, encarregado da Congregação para a Doutrina da Fé, o ex-Santo Ofício. Ele se manifestou várias vezes. Desde 1980, um sínodo pelo controle da Igreja holandesa, vista como progressista, é convocado em Roma. Cinco anos mais tarde, Jacques Gaillot é brutalmente destituído de sua diocese de Evreux por se ter desviado do ensinamento moral e da disciplina do Magistério romano. Teólogos críticos da instituição, como Eugen Drewermann, ou audaciosos no diálogo interreligioso, como Jacques Dupuis, são colocados no index ou advertidos.
Política conservadora
Para sua primeira viagem, João Paulo II havia escolhido simbolicamente a América Latina, o continente mais povoado de católicos no mundo. O mais povoado de pobres também! No dia 28 de janeiro de 1979, em Puebla, no México, ele alerta os bispos contra os desvios “marxistas” dos teólogos da libertação. Um vasto expurgo de prelados e de teólogos se segue, em benefício das correntes mais conservadoras do catolicismo, com liderança da Opus Dei, mas também de seitas evangélicas que atraem gente do povo desesperada por sua miséria. Signo da incompreensão daquele que baixou a cortina de ferro sobre a “opção preferencial pelos pobres” dos cristãos sul-americanos: nem Dom Helder Câmara, arcebispo das favelas de Recife, nem Oscar Romero, arcebispo de San Salvador assassinado em plena missa por esquadrões da morte, foram beatificados por João Paulo II, que, no entanto, foi um grande criador de santos, sem igual nos anais do papado!
João Paulo II imobilizou a instituição num status quo inquietante a respeito dos perigos que sua “nova evangelização” não pôde atacar
“Raramente o pontificado deixou de ser regido pelo político”, constata Patrick Michel. “Seu leitmotiv, ?Não tenha medo!?, lhe serve para colocar em evidência o caráter bárbaro do que, segundo ele, a modernidade pôde produzir”. Seu processo recorrente contra a liberalização dos costumes sexuais de seus contemporâneos é sintomático de sua desconfiança em relação a uma sociedade governada pela livre escolha e pela autodeterminação do indivíduo. Sua intransigência sobre o caráter sagrado e indissolúvel do casamento, sua recusa em ordenar padres casados ou tornar os ministérios femininos, aumentou o abismo que se cavou entre muitas mulheres e a Igreja católica desde a encíclica Humanae vitae, em 1968, proibindo o uso da pílula anticoncepcional.
Ao contrário de João XXIII e Paulo VI, os papas reformadores que o precederam, João Paulo II deixa sua Igreja mais ou menos como a encontrou em 1978. Excetuada a internacionalização do colegiado dos cardeais e as promulgações de um novo código de direito canônico e de um catecismo universal clássico, que não seria capaz evidentemente de diminuir um vazio teológico sideral, ela não foi decentrada, nem descentralizada segundo a intenção de colegialidade do Concílio Vaticano II (1962-1965). Em prejuízo dos protestantes, anglicanos e ortodoxos, o poder pontifício foi até hipertrofiado, rachando o impulso ecumênico do Concílio! Conciliador quando prometeu um diálogo inter-religioso, João Paulo II não o foi mais quando imobilizou a instituição num status quo inquietante a respeito dos perigos que sua “nova evangelização” não pôde atacar: o fenômeno durável da secularização que não poupa mais os bastiões católicos, como a Polônia, tão cara ao papa; uma crise histórica das vocações na Europa e um profundo mal-estar do clero revelado pelo escândalo dos padres pedófilos nos Estados Unidos; a concorrência selvagem das Igrejas evangélicas na América Latina e a do Islã na África e na Ásia.
Herança contraditória
Ratzinger pretenderá restituir coerência e credibilidade à Igreja Católica, sempre em relações delicadas com a modernidade?
Papa singular num mundo plural, João Paulo II foi incontestavelmente beneficiado pelo colapso dos projetos coletivos, dos sonhos e das utopias que, por comparação, marcou o tom de seu discurso. Ele deixa também uma herança muito contraditória para seu sucessor7. Este último vai querer restituir uma coerência e uma credibilidade à Igreja Católica, sempre em relações delicadas com a modernidade?
“O futuro do cristianismo se desenhará na maneira como a Igreja conseguir se libertar da nostalgia da cristandade e se abrir para uma inteligência inédita de seu papel no mundo e na história”, prevê o teólogo dominicano Christian Duquoc8. O 265o sucessor do apóstolo Pedro saberá retomar, com conhecimento de causa, a interpelação cristã de seu predecessor: “Não tenha medo!”? Saberemos logo se ele será um Papa pluralista, à escuta e ao serviço de uma humanidade povoada de uma multidão de singularidades.
(Trad.: Fabio de Castro)
1 – As comunhões humanas. Para terminar com “a religião”, Fayard, Paris, 2005.
2 – A paixão de João Paulo II, Presses de la Renaissance, Paris, 2005.
3 – Testemunho cristão, Paris, 14 de abril de 2005.
Michel Cool é jornalista e autor, entre outros livros, de Messagers du silence, Paris, Albin Michel, 2008.