Como produzir cidadãos consumidores, mal-informados e conformistas
“Qualquer um que conheça a história sabe que a desobediência é a virtude original do homem.”
Oscar Wilde
Em viagem pelos EUA, um grupo de soviéticos se espantou porque todos as notícias sobre as questões essenciais eram mais ou menos idênticas. “Em nosso país, para obter esse resultado temos uma ditadura, prendemos pessoas, arrancamos suas unhas. Aqui, vocês não têm nada disso. Então, qual é o seu segredo? Como vocês fazem?”John Pilger
Uma de minhas citações favoritas é do jornalista norte-americano T. D. Allman: “O jornalismo autenticamente objetivo é aquele que não só descreve exatamente os fatos, mas apreende o significado dos acontecimentos. Persuasivo hoje, ele sobrevive à prova do tempo. É ratificado por ?fontes confiáveis?, mas também pelo desenrolar da história. Dez, vinte, cinqüenta anos depois dos fatos, ele reflete ainda uma imagem inteligente e fiel dos acontecimentos.”
Allman escreveu esse texto em homenagem a Wilfred Burchett, que morreu em 1983, cuja carreira extraordinária e freqüentemente movimentada comporta o que foi descrito como o “furo” do século”. Enquanto, em 1945, centenas de “jornalistas embarcados” pelas forças aliadas de ocupação para o Japão foram conduzidos em tropas para a teatral cerimônia de rendição, Burchett, em suas próprias palavras, soltou sua coleira, para realizar uma viagem perigosa com destino a um lugar a partir de então gravado nas consciências humanas: Hiroshima. Primeiro jornalista ocidental a entrar na cidade após o bombardeio, sua reportagem de primeira página no Daily Express de Londres tinha essa manchete profética: “Escrevi isso como um alerta para o mundo.”
O alerta dizia respeito aos efeitos nefastos da radioatividade cuja existência era, então, negada pelas autoridades da ocupação. Burchett foi acusado, particularmente por alguns de seus colegas que participaram da propaganda e dos ataques orquestrados contra ele. Independente e corajoso, ele tinha mostrado a guerra nuclear com todo seu horror. O “desenrolar da história” deu-lhe razão.
15 anos de prisão
Os jornalistas e os apresentadores de TV não são diferentes dos historiadores e dos professores: eles interiorizam as prioridades, as modas e as conveniências do poder estabelecido
Por que esse tipo de jornalismo é tão precioso? É que, sem ele, não teríamos mais palavras para expressar o sentimento de injustiça e ninguém iria dispor das armas da informação para combater essa injustiça. O enunciado de Orwell, segundo o qual “para ser corrompido pelo totalitarismo, não é necessário viver em um país totalitário”, seria então aplicável.
Em 2003, quando o Parlamento turco votou contra as exigências de Washington e dos generais turcos, ele levava em conta a oposição esmagadora da população à participação de seu país na invasão do Iraque. Isso representa uma manifestação sem precedentes de verdadeira democracia em um país com assassinos obscuros. Foi também, em grande medida, fruto do trabalho dos jornalistas que tinham aberto o caminho, desvendando os crimes do Estado, particularmente a repressão relativa aos curdos. O editor de Ozgur Gundem (Agenda livre), Ocar Isik Yurtcu, por exemplo, purga 15 anos de prisão por ter enfrentado uma lei em virtude da qual todas as reportagens sobre a repressão e a rebelião na Turquia constituem propaganda ou “incitação ao ódio racial”. Ele é vítima típica das leis utilizadas contra os que desafiam o Estado e os militares.
Na Europa, nos Estados Unidos, no Canadá e na Austrália, os jornalistas não arriscam sua vida com freqüência. O escritor Simon Louvish conta a surpresa de um grupo de soviéticos em viagem pelos Estados Unidos na época da guerra fria. Após terem lido os jornais e assistido à TV, eles de declararam espantados porque todos as notícias sobre as questões essenciais eram mais ou menos idênticas. Eles se perguntavam por que “Em nosso país, para obter esse resultado temos uma ditadura, prendemos pessoas, arrancamos suas unhas. Aqui, vocês não têm nada disso. Então, qual é o seu segredo? Como vocês fazem?”
As previsões de Orwell
Os limites invisíveis das “informações” permitem que falsas premissas passem por bom senso ou que as fraudes oficiais sejam difundidas e ampliadas
Na introdução de Revolução dos bichos, Orwell descreve como a censura nas sociedades livres é infinitamente mais sofisticada e minuciosa do que nas ditaduras: “As idéias impopulares podem ser passadas em silêncio e os fatos incômodos permanecer na sombra sem necessidade de nenhuma proibição oficial” Meio século se passou e a mensagem nada perdeu de sua precisão.
Nada disso sugere uma “conspiração”. Ela nunca é necessária. Os jornalistas e os apresentadores de TV não são diferentes dos historiadores e dos professores: eles interiorizam as prioridades, as modas e as conveniências do poder estabelecido. Como alguns dirigentes nas altas esferas do poder, eles são direcionados ou preparados para descartarem as dúvidas muito devastadoras. Quando o ceticismo é estimulado, não o é em relação ao sistema, mas à competência dos que o dirigem, ou às reações populares tais como os jornalistas as percebem.
Na imprensa de Robert Murdoch na BBC, as regras não declaradas do clube da mídia moderna não variam muito. Os limites invisíveis das “informações” permitem que falsas premissas passem por bom senso ou que as fraudes oficiais sejam difundidas e ampliadas. A sorte de sociedades inteiras é decidida de acordo com sua utilidade para “nós”, termo freqüentemente utilizado pelo poder ocidental, e que veicula sua porção de narcisismo, de linguagem equivocada e de omissões abertas. Bons e maus terroristas, vítimas dignas ou não de interesse. Essa ortodoxia, explica Richard Falk, professor de relações internacionais na Universidade de Princeton, é transmitida “através de um anteparo moral e legal em um único sentido. Uma imagem positiva dos valores ocidentais e de uma inocência ameaçada justifica uma campanha de violência política sem limite”.
BBC em risco
Murdoch e os outros barões da mídia procuram há muito tempo o deslocamento e a privatização da BBC para que lhes advenham suas vastas “partes do mercado”
Os britânicos viverão logo a experiência australiana entre eles se a concentração da mídia continuar no ritmo de uma desregulamentação do audiovisual que evoca a “competitividade” internacional. A apropriação do governo de Anthony Blair da BBC se inscreve nesse quadro. O poder da BBC se baseia no duplo papel da mídia pública e da empresa multinacional, cujos rendimentos ultrapassam os 5 bilhões de dólares. Mais americanos assistem à BBC World do que britânicos assistem a principal cadeia da BBC. Murdoch e os outros barões da mídia, para a maioria dos norte-americanos, procuram há muito tempo o deslocamento e a privatização da BBC para que lhes advenham suas vastas “partes do mercado”. Esses padrinhos ambicionam um território, eles se mostram impacientes.
Em 2003, os ministros de Blair ameaçaram “rever” o financiamento da BBC para a concessão de TV. Sem essas receitas, a cadeia britância seria reduzida a uma variante da Australian Broadcasting Corporation, que depende das subvenções diretas do governo e é freqüentemente ameaçada.
Relata-se a gênese de tudo isso sem esforço. Em 1995, Tony e Cherie Blair viajaram de primeira classe à custa de Rupert Murdoch, rumo à Ilha Hayman, na costa de Queensland. Sob o sol tropical e de pé atrás da tribuna da News Corp., o futuro primeiro-ministro britânico extravasou sua “vontade de uma nova moral na política” e prometeu uma transição da mídia de um universo de “regulamentação pesada” para o da “empresa”. Seu anfitrião aplaudiu e lhe deu um caloroso aperto de mão. No dia seguinte, em Londres, o Sun de Murdoch comentava: “Mr. Blair vai longe, ele é determinado e fala a mesma língua que nós relativa à moralidade e aos valores da família.”
Ameaça ao jornalismo livre
A publicação, em janeiro, do relatório de lorde Hutton, que atacava a BBC e absolvia o governo no caso Gilligan, levou a questão ao espaço público. Um lorde correndo a serviço do establishment
Ainda recentemente, esses assuntos eram raramente discutidos nas páginas dos jornais britânicos, que preferiam as manobras secretas dos administradores da imprensa e sua habilidade em conceder generosas recompensas. As intrusões dos tablóides na vida privada das pessoas ricas e famosas eram objeto de desaprovações hipócritas. Idéias críticas sobre o jornalismo eram evocadas de passagem, ou em nenhum momento. A publicação, em janeiro de 2004, do relatório de lorde Hutton, que atacava a BBC e absolvia o governo no caso Gilligan, levou a questão ao espaço público1 . Um lorde correndo a serviço do establishment para sufocar um caso incômodo para o poder atual apresenta uma das mais diretas ameaças que pesam sobre o jornalismo livre.
Nos Estados Unidos, onde constitucionalmente os meios de comunicação são os mais livres do mundo, a própria idéia de uma humanidade com direitos universais é correntemente colocada em questão. Assim como os vietnamistas anteriormente, os iraquianos seriam impuros, bons para serem caçados. “Para cada GI (soldado do exército americano) morto, 20 iraquianos devem ser executados”, dizia uma carta de leitor publicada pelo Daily News de Nova York. O New York Times e o Washington Post talvez não publicassem uma correspondência como esta, mas à sua maneira também sustentam a ficção de um arsenal de armas de destruição maciça no Iraque.
Mentiras de guerra
Ao abandonar seu papel de “rascunho” de uma história, o jornalismo estimula, diretamente e por omissão, um imperialismo cujas verdadeiras intenções são, muitas vezes, pouco desvendadas
Bem antes da invasão, os dois jornais advertem sobre o perigo em nome da Casa Branca. Na primeira página do New York Times, podia-se ler as seguintes manchetes: “ARSENAL SECRETO [do Iraque]: A CAÇA ÀS BACTÉRIAS DA GUERRA”, “UM DESERTOR DESCREVE OS PROGRESSOS DA BOMBA ATÔMICA NO IRAQUE”, “UM IRAQUIANO FALA DAS RENOVAÇÕES DE LUGARES DE ARMAS QUÍMICAS E NUCLEARES” e “DESERTORES CONFIRMAM O DOSSIÊ AMERICANO CONTRA O IRAQUE, DIZEM OFICIAIS”. Todos esses artigos revelaram-se pura propaganda. Em um e-mail interno (publicado pelo Washington Post), a jornalista do New York Times, Judith Miller, admite que sua fonte principal era Ahmed Chalibi, um exilado iraquiano e prevaricador condenado pelos tribunais, que havia dirigido o Congresso Nacional Iraquiano (INC) residente em Washington e financiado pela CIA. Uma pesquisa do Congresso conclui que quase toda a informação fornecida por Chalabi e outros exilados do INC não tinham valor.
Em julho de 2003, quando a ocupação chegava a seu auge, o Times e o Post dedicaram sua primeira página à volta para casa de Jessica Lynch, 20 anos, cuidadosamente colocada em cena pela administração Bush. Durante a invasão, a jovem tinha sido ferida em um acidente na estrada e capturada. Médicos iraquianos haviam cuidado dela, provavelmente salvando-lhe a vida – e arriscando a deles – enviando-a para as forças norte-americanas. A versão oficial, segundo a qual ela havia corajosamente combatido os agressores iraquianos, era apenas uma trama de mentiras, assim como sua “salvação” em um hospital praticamente abandonado, filmado com a ajuda de câmeras infra-vermelho por um cineasta de Hollywood2 .
Isso não dissuadiu a nata do jornalismo norte-americano de se unir para sustentar a encenação da volta beatífica de Lynch a Elizabeth, na Virgínia ocidental, imagens do Epinal com o apoio e as pessoas do lugar dizendo como se sentiam satisfeitas. O Post reclamou que o caso tinha “se tornado confuso devido às declarações contraditórias dos meios de comunicação”. Já Orwell evocava as “palavras que caem sobre os fatos como neve, confundindo seus contornos e cobrindo todos os detalhes.”
Conformismo dos jornalistas
Palavras e os conceitos nobres, tais como “democracia”, “liberdade” e “libertação”, esvaziadas de seu sentido real, são colocadas a serviço da conquista
Em Washington, entrevistei sobre esse assunto Charles Lewis, ex-estrela do “60 minutos” da CBS. Lewis, que atualmente dirige uma unidade de pesquisa, o Centro pela Integridade Pública, explicou: “Você sabe, sob Bush, o conformismo e o silêncio entre os jornalistas é pior do que nos anos 1950. Rupert Murdoch é o magnata mais influente da mídia nos Estados Unidos; ele impõe a norma, e não há a menor discussão pública. Por que a maioria do público norte-americano ainda acredita que Saddam Hussein estava por trás dos atentados de 11 de setembro? Porque a mídia não parou de ecoar o discurso do governo.”
Eu lhe perguntei o que aconteceria se os meios de comunicação “mais livres do mundo” tivessem colocado em questão Bush e Donald Rumsfeld e tivessem verificado a autenticidade de suas declarações, em vez de difundirem o que se revelou pura propaganda? Sua resposta foi: “Se os meios de comunicação tivem sido mais combativos em sua busca da verdade, é bem possível que jamais teríamos entrado em guerra contra o Iraque.”
Em seu discurso diante do Congresso dos Estados Unidos em 2003, Anthony Blair declarou: “Jamais o poder dos Estados Unidos foi tão necessário e tão incompreendido. Jamais um estudo da história nos ajudou tão pouco a compreender o presente”. No caso, tratava de nos alertar contra o estudo do imperialismo, por medo que ele nos levasse a recusar o “destino manifesto” dos Estados Unidos e sua oferenda à Grã-Bretanha de um papel imperial durável, ainda que subordinado.
Palavras esvaziadas
Quando os jornalistas autorizam essa corrupção da linguagem e das idéias, eles desorientam, eles não informam
É claro que o primeiro-ministro britânico não pode advertir ninguém de maneira eficaz se ele não se beneficia do apoio das primeiras páginas dos jornais, da televisão e das rádios, que fazem ecoar suas palavras e as amplificam. Ao abandonar seu papel de “rascunho” de uma história que será escrita posteriormente, o jornalismo estimula, diretamente e por omissão, um imperialismo cujas verdadeiras intenções são, muitas vezes, pouco desvendadas. Em vez disso, as palavras e os conceitos nobres, tais como “democracia”, “liberdade” e “libertação”, esvaziadas de seu sentido real, são colocadas a serviço da conquista. Quando os jornalistas autorizam essa corrupção da linguagem e das idéias, eles desorientam, eles não informam. Ou melhor, como disse Edward S. Herman, eles “normalizam o impensável na opinião pública”.
Em junho de 2002, diante de um público de cadetes militares de West Point que se levantaram como robôs para aclamá-lo, George W. Bush desaprovou a política de “dissuasão” da guerra fria e anunciou que a partir de então os Estados Unidos lançariam uma ação preventiva contra todo inimigo potencial. Alguns meses antes, um vazamento do Pentágono havia revelado os planos de urgência da administração relativos à utilização do armamento nuclear contra o Irã, a Coréia do Norte, a Síria e a China. Na seqüência lógica, a Grã-Bretanha anunciava então, pela primeira vez, que “se necessário”, ela atacaria o armamento nuclear dos países que não tinham essa capacidade. A informação praticamente não foi retomada na imprensa, e não provocou nenhuma discussão. Mais ou menos como há cinqüenta anos, quando os serviços de informações britânicos alertaram o governo das intenções norte-americanas de partir em guerra atômica “preventiva” contra a União Soviética, e que o público não soube de nada.
De acordo com os dossiês oficiais que se tornaram públicos a partir de 1968, o público não soube que os principais projetistas britânicos foram persuadidos de que os russos não tinham a intenção de atacar o Ocidente. “A União Soviética não vai desencadear uma guerra geral ou mesmo limitada à Europa”, observaram eles ao descrever a política soviética como “prudente e realista”. A verdade privada contrastava inteiramente com o que se dizia na época para a imprensa e para o público.
O silêncio e a mentira
Em 1983, os principais meios de comunicação pertenciam a cinqüenta sociedades. Em 2002, contávamos apenas com nove conglomerados transnacionais
“Quando a verdade é substituída pelo silêncio, o silêncio é uma mentira”, dizia o poeta soviético Evgeni Evtoushenko. Reina hoje um silêncio surrealista, cheio do barulho de pequenas frases de homens políticos, que se mordem e se esbofeteiam para justificar sua hipocrisia e sua violência. O que se fala da atualidade, não é mais do que paródia ao diapasão das vozes dissonantes de jornalistas que proclamam todos quase a mesma coisa. Jamais tivemos um volume de “informações” repetitivas como essas nem tamanha apropriação por parte dos que as controlam. Desde os anos 1980, os conglomerados de mídia norte-americanos se desembaraçaram aos poucos de suas últimas obrigações de serviço público ao mesmo tempo que atacaram toda a regulamentação internacional.
Em 1983, os principais meios de comunicação pertenciam a cinqüenta sociedades. Em 2002, contávamos apenas com nove conglomerados transnacionais. Dirigida pelo filho do secretário de Estado, Colin Powell, a Comissão Federal das Comunicações (FCC, conforme a sigla em inglês) se dedica a facilitar o controle de 90% da audiência norte-americana pela Fox, de Murdoch, e quatro outros conglomerados3 . Em fevereiro de 2004, Murdoch previa que, daqui a três anos, haverá apenas três grandes sociedades de meios de comunicação, entre elas a sua. Os vinte sites mais visitados na internet pertencem a sociedades como Fox, Disney, AOL Time Warner, Viacom e um punhado de gigantes desse gênero; os catorze maiores absorvem 60% do tempo que os norte-americanos passam na tela. Sua ambição comum: produzir cidadãos mal informados e conformistas. Consumidores obedientes.
(Trad.: Wanda Caldeira Brant)